sábado, 7 de janeiro de 2017

A história do Jogral: capítulo três



Capítulo 3



OS PRIMEIROS DISCOS COM O SELO “O JOGRAL” QUE DEPOIS TRANSFORMOU-SE EM “DISCOS MARCUS PEREIRA”



Por Marcus Pereira



                                          Jorge Ben e Luiz Carlos Paraná


Desde que nos conhecemos, conversávamos muito sobre música brasileira e sobre sua situação de abandono, principalmente a música do povo. Desde o começo do “jogral”, Carlos, como para afrontar o descaso e a ridicularização com que a música sertaneja era tratada, cantava os clássicos de nosso cancioneiro caipira. Conhecia muito bem os principais autores, tinha um repertório variadíssimo que aprendeu com o povo do sertão, onde viveu até os vinte anos. Tinha também grande admiração por alguns autores, como Raul Torres e João Pacífico, a quem “condecorou”, mais tarde, com a “Ordem do Jogral”, homenagem que prestou também a muitos dos nossos maiores artistas populares.



Em 1967, eu dirigia uma agência que tinha meu nome, “Marcus Pereira Publicidade”, que era meu ganha-pão, confesso que era também meu ganha-uísque. Mas eu não gostava do que fazia, em sã consciência é muito difícil gostar de ser cúmplice de interesses que vivem de estimular, ao delírio, o consumo numa sociedade onde apenas a minoria tem condições de consumir, inclusive as coisas fundamentais para a vida. Mas, como diz o Henfil, era preciso sobreviver...Havia, entretanto, um pedaço grande e importante de mim que não se conformava. E eu vivia procurando saída. Tentara, antes, saídas que foram fechadas. O “Jogral” era um oásis no deserto em que muitos viviam. E nós resolvemos, então, melhorar o oásis, amplia-lo, para que ele pudesse abrigar mais gente. Decidimos gravar um disco, para ampliar a divulgação dos valores culturais nos quais acreditávamos.



Paulo Vanzolini, depois dos aborrecimentos que teve com Volta por Cima, decidiu não mais gravar e divulgar o seu trabalho de boca em boca. Logo depois que nos conhecemos, propus fazermos um disco, ele me respondeu rispidamente. Nossas relações se estreitaram depois com o apadrinhamento do Carlos, e eu me senti seguro para voltar ao assunto. E perguntei um dia: “Paulinho, vamos fazer um LP? E ele respondeu: “Com vocês faço qualquer negócio”. Como contei antes, Paulo Vanzolini já era legendário, sendo praticamente inédito. Suas músicas têm lugar seguro e de destaque em qualquer antologia de nossa música popular, por mais rigorosa e limitada que seja a seleção. O Carlos e eu resolvemos então gravar um disco com as músicas do Paulinho. Faltava arranjar o dinheiro e eu convenci uma empresa, a “Independência S.A.”, que era cliente da minha agência a patrocinar o disco e distribuí-lo como brinde de fim de ano. Seu diretor principal, Antônio Carlos de Paula Machado, era meu amigo e sensibilizou-se com a proposta. O que escondi do Antônio Carlos era que o brinde era muito mais para nós, para nossa alegria, do que para os clientes da empresa dele. A produção do disco foi do Carlos, escolhemos untos o repertório, os intérpretes: Chico Buarque gravou duas faixas (Praça Clóvis e Samba Erudito), Carlos três (Napoleão, Capoeira do Arnaldo e Leilão), Adauto Santos duas (Juízo Final e Cravo Branco), Cláudia Morena (Ronda e Morte é Paz), Maurici Moura duas (Amor de Trapo e Farrapo e Volta por Cima), Cristina Buarque de Holanda uma (Chorava no Meio da Rua). O disco foi gravado em outubro de 1967, os arranjos foram feitos por Toquinho e Portinho, seu título é “Paulo Vanzolini, onze sambas e uma capoeira”. Eu não tinha experiência, Carlos cochilou, porque o dinheiro que consegui dava para produzirmos o disco e ficarmos com a propriedade dele. Afinal, demos o dinheiro para a “Fermata”, que pagou a produção, forneceu mil discos à “Independência”, quinhentos à “Marcus Pereira Publicidade” e ficou com a fita. Hoje, o disco está no catálogo de “Discos Marcus Pereira”, mas eu pago royaltes à Fermata. Este foi o primeiro disco que gravei e com ele se inicia a história cultural da gravadora que dirijo. Transcrevo, em seguida, os depoimentos de Carlos Paraná e de Chico Buarque de Holanda impressos na contracapa do disco. Primeiro, o do Chico:



“Minha amizade com Paulo Emílio Vanzolini está fazendo vinte e um anos. Trata-se, pois, duma afinidade maior, de idade e de samba. Já naquele tempo, ele fumava cachimbo, batia caixinha e varava a noite em assuntos de garoa, amigos e boêmia. E a certa altura, Paulinho passava a conversar em rimas, numa agilidade de fazer inveja a muito repentista do Nordeste. Com meus dois anos, mal aprendendo a falar, talvez tenha herdado daí o gosto, quase vício, das rimas. Quanto à boêmia, confesso que eu ainda não era dado a tais coisas. A todos esses amores, Paulinho permanece fiel. E acumula com outro, onde prefiro não dar palpite: a Zoologia.

Mas a imagem que me ficou gravada, e certamente também na lembrança de muito paulistano, é a do sambista convicto, do grande companheiro.

Somos, então, alguns amigos que, atendendo ao toque de reunir do Marcus Pereira, nos juntamos agora para cantar seus sambas”.



Agora o depoimento do Carlos Paraná:



“Eu sou Paulo Vanzolini

Animal de muita fama

Eu tanto corro no seco

Como na vargem de lama

Mas quando o marido chega

Me escondo embaixo da cama”.



Este foi o último improviso que ouvi do Dr. Paulo Emílio Vanzolini, Diretor do Museu Zoológico de São Paulo, antes de partir mais uma vez para Harvard. Pois enquanto preparamos este LP de sambas, o compositor está dando mais um curso naquela universidade americana, pela qual é graduado em Herpetologia, ramo da biologia que trata de anfíbios e répteis, ou seja, cobras e lagartos.

Profissionalmente, ele se diz apenas biólogo. Médico, jamais clinicou. Preferiu seguir pesquisando e ensinando.

Pode um tal “homem de ciências” ser um bom sambista? Sem ter feito a pergunta, o Brasil inteiro ficou sabendo a resposta, quando ouviu aquele esplêndido Volta por Cima. Nós, seus amigos, sabemos muito mais, modéstia à parte. Por isso nos reunimos neste LP, para que mais gente saiba o que já sabemos desse nosso querido irmão. Olha aí, até o definitivo Chico Buarque deixou de lado, por um momento, seus sambas e veio aqui cantar alguns do Paulinho.

Quando voltar, Paulinho não vai gostar que tenhamos escrito essas coisas. Ele só queria que disséssemos como se faz um bom samba.

Mas isso nós não sabemos”.



O disco teve um sucesso incrível, e para documentar isto reproduzo um comentário publicado na revista Visão de 2 de fevereiro de 1968 sob o título “O muito bom só para muito poucos”:

“Duas das melhores coisas feitas no terreno da gravação nos últimos tempos não chegarão ao público, pois são iniciativas particulares sem o objetivo comercial: a primeira, a mais grandiosa, é o “Meio Século de Carnaval Carioca (1915-1965)”, que a Companhia Radiotelegráfica Brasileira (Radiobrás) lançou para ofertar a seus clientes como brinde de fim de ano; a segunda, é também um brinde da Companhia Financeira Independência S.A.: o primeiro LP de Paulo Vanzolini (“Volta por Cima”), um dos melhores e mais desconhecidos do Brasil.

Os dois lançamentos constituem um exemplo para as entidades oficiais responsáveis pela nossa música e uma aula de bom gosto e imaginação para que as nossas gravadoras, pois se chegassem ao público se transformariam em absoluto sucesso de venda.

Esse primeiro LP do compositor de Volta por Cima está passando emprestado de mão em mão, principalmente fora de São Paulo, onde ninguém sabe de nada sobre o biólogo que faz samba e boêmia. Há cerca de quatro anos, publicamos uma reportagem sobre ele. Naquela época estourava o sucesso de um samba seu, cantado por “Noite Ilustrada”: “Ali onde eu chorei, qualquer um chorava – dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava”, versos que todo mundo logo aprendeu.

Mas Vanzolini é assunto para mais de uma reportagem. Ninguém sabe, por exemplo, que no momento em que fica pronto o primeiro LP só com músicas de sua autoria, o sambista, que é diretor do Museu Zoológico de São Paulo, e está dando mais um curso na Universidade de Harvard, onde é graduado em Herpetologia. Essa ciência é um ramo da biologia que trata de anfíbios e répteis ou, como diz Paraná, cobras e lagartos. Na contracapa do disco há depoimentos de quatro de seus amigos mais queridos: Marcus Pereira, Chico Buarque de Holanda, Raul Duarte e Luís Carlos Paraná. Só quatro, porque não cabia mais. O carinho e a admiração dos amigos de Vanzolini extravasa dos depoimentos, está à vista até na produção do disco, onde cada faixa parece ter sido reivindicada por uma voz da noite paulista. Chico Buarque escolheu duas das melhores: Samba Erudito e Praça Clóvis. Em seu depoimento, declara que ouve Vanzolini desde dois anos de idade e que ele o iniciou “no gosto, quase vício, das rimas”.

Só nos resta que uma gravadora comercial ponha ao alcance de todos o que já coube ao pequeno grupo de paulistas frequentadores da boate “Jogral”: o direito de conhecer e cantar Juízo Final, Ronda, Chorava no Meio da Rua, Leilão, Cravo Branco.



Os Festivais de 1966 e 1967 tiveram uma importância enorme, de certa maneira reconciliaram o público com a música e despertaram um interesse novo por esta manifestação cultural importantíssima. Acontecimentos posteriores – como os de 1968 – criaram, entretanto, obstáculos cada vez maiores à criação, em todos os campos da cultura, dificultando cada vez mais, especialmente o trabalho do compositor, porque lhe tiravam a liberdade de criar. Os festivais posteriores, organizados pela Rede Globo de Televisão, tiveram, na mesma dimensão, pompa, insignificância e equívoco. Partindo de uma concepção falsa – do ponto de vista cultural e artístico – porque pretensiosamente apoiava-se na hipotética magnitude de uma disputa musical internacional, acabou por apresentar coisas absolutamente heterogêneas, misturando nossa música, recentemente fortalecida, com música internacional de discutibilíssima qualidade, envolvendo códigos culturais diferentes, como a língua, e resultando na mais heterogênea e lamentável colcha de retalhos que a televisão já apresentou. Os festivais anteriores da TV Record revitalizaram nossa música, criando-lhe uma tribuna de respeito; os festivais da Rede Globo, mais a Censura, destruíram-na.

Há, entretanto, um aspecto importante a considerar na ressurreição musical proporcionada pelos festivais e pelo que trouxe a fixação da sigla MPB – Música Popular Brasileira. Em primeiro lugar, era mais poesia do que música ou poesia no acompanhamento musical. Os jurados dos festivais, assim como o público, detinham-se mais na análise literária das composições concorrentes o que na sua análise musical. Os debates se fixavam neste aspecto, até porque, não apenas o meio artístico como, principalmente, o público, não tinham – como em geral não tem – condições para analisar e debater os aspectos musicais. Isto é notório, existe num bairro de Moscou ou de Viena mais solistas de flauta do que no Brasil inteiro. Portanto, essa música é mais poesia do que música. A palavra popular da sigla deve ser entendida limitadamente. O que a MPB apresenta é música produzida por um segmento da população de formação erudita ou semi-erudita de extratos principalmente uranos do País. Finalmente, a palavra brasileira da sigla é a que cada vez mais se distancia no seu sentido original, contaminada pelo “iê-iê” e pelo rock.


                                                              Luiz Carlos Paraná e Luiz Gonzaga



Depois do Festival da Record de 1967, “O Jogral” encontrava-se numa espécie de ressaca comercial e artística. Os guerreiros se extenuaram na batalha musical e estavam descansando. A Galeria Metrópole, se tinha sido uma espécie de “Quartier Latin” da música e da inteligência, estava se transformando rapidamente numa triste “Pigalle” da marginalidade e do vício. Carlos Paraná andava preocupado e me confidenciava suas preocupações. Muitos frequentadores habituais já não apareciam, porque “O Jogral” era casa de família e a Galeria já não era mais. E era, frequentemente, palco de brigas e desordens, estes acontecimentos não podiam ser background próprio para o desarmamento espiritual que era o clima permanente do “Jogral”, Carlos Paraná começou a procurar um lugar para transferir “O Jogral”, que não podia ser muito distante do Centro, parte da cidade que não dormia e onde a vida noturna era muito movimentada. Mas também não podia ficar muito perto, porque era única casa que proporcionava vida noturna espiritual, que não pode conviver com a vida noturna, digamos, fisiológica. E encontrou um local ideal, cerca de quatro vezes maior do que o local da Galeria Metrópole. “O Jogral” mudou em março de 1968 e sua inauguração antecipou o enorme sucesso que a casa viria a ter.



Carlos Paraná convidou mais alguns amigos para sócios, ficando ele e Adauto Santos – companheiro fiel e dedicado desde a fundação – com a maior parte das quotas. Os novos sócios que Carlos Paraná fez questão de que participassem do “Jogral” foram Paulo Vanzolini, Reinaldo Rizzo, Aluísio Falcão. E eu continuei, é claro. Logo, “O Jogral” teve um incrível fortalecimento. Libertado da vizinhança inconveniente da Galeria Metrópole, passou a contar com a frequência de pessoas que já conheciam a fama de sua qualidade artística e o altíssimo nível de entretenimento e participação que proporcionava. Rapidamente, o “Jogral” passou a lotar de segunda à sábado e criar a fama de que, para entrar depois das dez horas da noite, era preciso pistolão. A minha ligação com Carlos Paraná era notória e frequentemente amigos me telefonavam para perguntar qual era a “senha” para entrar no “Jogral”.



Logo que “O Jogral” começou a dar lucro, amigos comentavam: “O Paraná tem sorte, ‘O Jogral’ vive cheio!...” E Carlos escreveu, na contracapa de um LP gravado ao vivo, no “Jogral”, um texto do qual extraio o trecho que segue: “Sorte uma ova! E os quinze anos e vida sem sol, grudado ao violão, até envernizar lapelas de paletó e smokings e rasga-los na manga do lado de dentro, num lugar muito raro de se rasgar a roupa? E os violões quebrados e requebrados? E os médicos de pronto-socorro admirados de saber que a vida de artista não era tão leve assim?...”.



Criou-se logo um hábito que tornava o “Jogral” ainda mais atraente. Suas mesas eram pequenas, para quatro pessoas. Suas mesas eram pequenas, para quatro pessoas. Sabe-se, desde os tempos da antiguidade grega, que as pessoas só por coincidência andam em grupo de quatro. Normalmente, as pessoas andam acompanhadas de uma outra, frequentemente do sexo oposto, o que tem garantido a sobrevivência da humanidade e até seu crescimento. As pessoas também andam em grupos e os dicionários de lugares comuns aconselham sempre justapor o adjetivo “ruidosos” a esta expressão. Isto ocorre quando se comemora alguma coisa – um aniversário, a conquista do campeonato pelo Corinthians – evento que não beneficiou “O Jogral” uma só vez em toda a sua história. Como a frequência cresceu rapidamente, o maitre pedia licença aos ocupantes das mesas com lugares vazios e acomodava outras pessoas. Isso proporcionava imediatamente a aproximação de pessoas que não se conheciam e que, forçadas pela proximidade física, venciam o constrangimento decorrente puxando conversa e acabavam verificando que conversar é agradável, que as pessoas estranhas não mordem, que existe no mundo muito mais gente interessada e com qualidades do que nossos equívocos, nossa agressividade e nossos preconceitos informavam. Na verdade, o simples fato de estar no “Jogral” já constituía o denominador comum necessário, uma espécie de “Rotary Clube” espiritual ou de maçonaria de espírito.



O “Jogral” começou a dar muito lucro, mas os sócios minoritários, que não tinham contribuído com capital, não retiravam nada, essa tinha sido a combinação inicial. A nossa participação era afetiva, artística, boêmia e desse capital nós recebíamos dividendos astronômicos.



Quando Carlos começou a instalação do novo “Jogral”, na Rua Avanhandava, comentou comigo um dia seguinte: “É inevitável que as pessoas escrevam frases pornográficas e grosseiras nas paredes do banheiro, principalmente num bar em que a mercadoria mais vendida é álcool. Ocorreu-me a ideia de, antes que escrevam coisas apenas grosseiras, a gente escrever coisas próprias para um banheiro, mas espirituosas e inteligentes. Vou inaugurar o banheiro do “Jogral” com frases já escritas!” E rimos muito, por antecipação, seria o primeiro banheiro do mundo que nascia já devidamente pornografado. Eu houvera conhecido, no Recife, em 1963, o grande médico e amigo dos índios Noel Nutels. Tivemos três longos encontros, mas ao fim do primeiro, segundo Noel, tínhamos ficado amigos de infância. Ele me contou, então, com aquela sua imensa alegria em contar tudo, que estava colecionando o que chamou de “quadrinhas de latrina”, mas apenas as muito boas, e que já tinha recolhido dezessete. Quando chegasse a vinte, iria fazer uma doação à Comissão Nacional de Folclore. E em fez um apelo para ajuda-lo, contou-me uma que colhera, na véspera, ao mictório público do Aeroporto de Fortaleza: “Não insista, colega. A última gota é...da cueca.”. Essa foi uma das minhas contribuições para o banheiro do “Jogral”. A maioria das frases que Carlos escreveu nas paredes do banheiro, apesar de serem antes espirituosas e inteligentes, são impublicáveis neste relato, pois eu pretendo ganhar com ele o recesso do lar das famílias brasileiras. Mas as honradas famílias saberão me perdoar a liberdade que tomo transcrevendo apenas uma: “Estamos aqui para o que der e vier mas, principalmente, para o que vier e der”.



O banheiro do “Jogral” ficou logo famoso. Tinha gente que, sem nenhuma das chamadas fisiológicas a satisfazer, ia ao banheiro só para ler o que estava lá escrito. Amigas nossas nos obrigavam a ficar na porta impedindo que os homens entrassem, para elas poderem ler à vontade o que estava escrito. Mas nem todas eram pornográficas, como uma do publicitário Luís de Eça que glosava um texto do beletrista Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades, vamos acabar aderindo”. “O Jogral” tinha espírito até no banheiro quando, sabe-se, ele está ausente até das salas mais formais da maioria das nossas casas noturnas.



Nunca soube a razão pela qual Carlos Paraná, no novo “Jogral” deixou de se apresentar. Sua atitude, então, e seu comportamento, passarem a ser opostos à sua atitude e comportamento na Galeria Metrópole, quando ele era a alma do “Jogral”, a sua própria face. Na Rua Avanhandava, apresentavam-se conjuntos e artistas contratados, Carlos fazia quase que exclusivamente o papel de diretor artístico, afastando-se com o tempo até do controle diário do movimento, o que veio a lhe causar problemas graves. Fazia, também, o papel de anfitrião, o que nem sempre se harmonizava com o seu temperamento. Na fase da Rua Avanhandava, apresentaram-se no “Jogral” os seguintes artistas ou conjuntos: Mário Edson, Emílio Escobar, Ana Maria Brandão, Pedro Miguel, Geraldo Cunha, Trio Mocotó, Trio Canela, Adauto Santos, Regional do Evandro, Leo Karan, Tonicão, Oswaldinho da Cuíca.


                            Livro que Marcus Pereira publicou sobre o Jogral  


Sobre Leo Karan, velho companheiro meu, amigo de todas as noites do Carlos Paraná, dou a palavra a Paulo César Pinheiro, transcrevendo o que escreveu para a contracapa do disco “Urbana”, produzido e interpretado pelo e que lancei no meu selo:



“Leo Karan – o grande íntimo da noite paulista. Figura doce e boa. Rara pessoa em quem ainda se pode confiar por inteiro nesses nossos corrompidos tempos atuais. O bom-caráter. O companheiro de copo. O primeiro que a gente lembra de procurar quando se pretende fazer uma grande boêmia. Aquele que pinta na cabeça quando se dá falta de um amigo.

Quando ele nasceu, Deus deu um violão e uma bengala, um sorriso nos lábios, uma palavra de ânimo e uma disposição para a vida, que se já não fosse o artista que é, seria o grande mestre da arte de viver.

Eu o conheci, há alguns anos atrás, uma dessas quebradas noturnas regadas a álcool e canção, quando o espírito se enriquece e o corpo se acaba. Eu na minha missão de captar para transmitir e ele de transmitir para captar. Ele me captou então, e, além de amigos viramos parceiros, e, através dele, isto é, de sua música, eu pude também transmitir, isto é, escrever a letra que na hora havia dentro de mim.

As coisas se completas. Ele completa a madrugada de São Paulo. As pessoas que procuram refúgio nos cantos dos bares e boates se completam por intermédio de seu canto. Os homens se irmanam. Os versos os movimentam A música os tranquiliza. É essa a missão de Leo Karan: apaziguar as angústias dos homens da noite.

E que todos compreendam o que representa essa grasse de uma de suas canções: “- Nós devíamos nos conhecer antes da primeira guerra”...

E por isso eu o adoro. E por isso eu o admiro. E por isso eu assino embaixo.

Paulo César Pinheiro”.



O Carlos tinha enorme carinho pelo Leo Karan. Substituí-o no texto de contracapa do disco “Urbana”, que reproduzo a seguir:



“O meu depoimento neste disco que reúne Leo Karan como intérprete e compositor e mais Gilberto Karan, Paulo César Pinheiro e Adauto Santos como compositores, Theo de Barros como maestro e arranjador, os maestros Élcio Álvares, Erlon Chaves, Damiano Cozzela e mais alguns dos melhores músicos desta caluniada cidade de São Paulo, não é a do produtor nem a de descobridor de caminhos para a música do Brasil, em fase de perplexidade. Um comitê imparcial decidiu o lançamento do disco com o nosso selo. Eu me levantei uma suspeição, a de um antigo convívio e de uma antiga cumplicidade em bravatas e musicais, em aventuras e conspirações artísticas na penumbra do “Jogral”, sob a presidência do Carlos Paraná, friamente assassinado no dia 3 de dezembro de 1970, por uma hemorragia que desconhecia seu talento e sua grandeza humana. O Carlos – no comando do barco que navega até hoje sem nenhum furo no caso e com velas incólumes em cuja proa lê-se “O Jogral” - teve sempre nas longas vigílias, navegando noite a dentro, a companhia do Leo Karan. Um dia, convidou-o para fazer parte da tripulação e ele, como tripulante ou passageiro, prossegue a bordo. E só porque o Leo tem um desenho anatômico um pouco diferente do comum, o Carlos gostava de brincar com ele dizendo ‘o Leo Karan está para o Jogral assim como Tolouse-Lautrec estava para o Moulin Rouge’. E o Leo achava graça e nós continuávamos a viajar, copo firme na mão – o timão de cada um – emoção de plantão para o happening permanente – de cultura brasileira que sempre foi e continua sendo “O Jogral”. A imagem permanente que guardo do Leo é a de seu sorriso, porque ele sabe das coisas, e quem sabe das coisas sorri. Seu maior sorriso ficou gravado neste disco que, em forma de fita, ele me entregou e disse: ‘agora posso morrer’. Respondo, aqui, para o Leo, que a vida que ele plantou, com dificuldade maior de cada um de nós, produziu uma linda flor que nós batizamos de ‘Urbana’. Ela é também fruto do grande amor de Leo Karan pela música e de sua fé nas coisas desta vida. Carlos Paraná faria a apresentação de Leo. Devido à sua ausência, eu assino.

Marcos Pereira”.



Um conjunto que se apresentou durante muito tempo nesta fase do “Jogral” foi o regional que teve inicialmente Benedito Costa (cavaquinho) e Manuel Gomes (flauta) como figuras principais. Depois, entrou Evandro (bandolim) que permanece até hoje no “Jogral” e que, se depender de mim, nunca sairá, pois é um dos maiores instrumentistas de cordas do Brasil e, no gênero, do mundo. Certa noite eu estava no “jogral” e Manuel Gomes, que está hoje com sessenta anos, entrou tocando sua flauta, como que para anunciar o seu talento. Tive a impressão de que um pássaro cantor havia entrado e que, dando voltas no salão do “Jogral”, nos mostrava seu canto belíssimo. Manuel Gomes deu várias voltas tocando flauta e eu chamei a atenção do Carlos e sugeri que o contratasse. Carlos Paraná tinha um temperamento muito particular, era muito cioso da sua independência e de seus critérios e, para convencê-lo de uma coisa, a gente tinha que disfarçar esse objetivo. Ele não me respondeu, dias depois, novamente, Manuel Gomes voltou com sua flauta e insistiu no seu canto. Passei, depois, algum tempo sem ir ao “Jogral” e quando fui tive a surpresa agradável de ver Manezinho se apresentando no Regional. Ele continua ainda no “Jogral” e, com a juventude dos seus sessenta anos, toca divinamente sua flauta, muitas vezes acompanha-se com o corpo, dança, faz voltas.



Em 1968, exatamente no início da fase da Rua Avanhandava, voltamos a cogitar de gravar um disco. O conjunto de choro que se apresentava era uma proposta óbvia e permanente para um disco. Os festivais tinham desagravado determinado tipo de música brasileira, mas o Carlos não estava ainda satisfeito, frequentemente lamentava que gêneros belíssimos de música instrumental – como o choro – ou ricos e representativos – como a música sertaneja – continuassem esquecidos, desacreditados e caluniados.



Depois de procurar, em vão, um patrocinador, decidi a partir da ideia do Carlos, gravar um disco e chorinho e distribui-lo como brinde de fim do ano da minha finada agência de publicidade.



Carlos dizia sempre que esse gênero belíssimo da nossa música instrumental estava completamente esquecido e, quando era lembrado, surgia com deformações lamentáveis. Há muito tempo, sonhava produzir um disco de choro, já tinha o repertório na cabeça, lembro-me de que falou muito, como exemplo de grandes talentos esquecidos ou mal aproveitados, de Valdir Azevedo. Confiei a produção a ele, que me disse: “Vou fazer como se deve”. O disco foi produzido em outubro de 1968 e contém as seguintes músicas:



Lado A: Carinhoso/ Flamengo/ Gosto que me Enrosco/ Brasileirinho/ Camundongo/ Bem-te-vi Atrevido/ Primeiro Estudo. Lado B: Apanhei-te Cavaquinho/ Chiquita/ Tico-tico no Fubá/ Brejeiro/ André de Sapato Novo/ Flor do Mal/ Lamento.



Os intérpretes são: Flauta: Manuel Gomes, Cavaquinho: Benedito Costa, violões: Adauto Santos e Geraldo Cunha, Pandeiro: Fritz.



Transcrevo a seguir, o texto que escrevi para a contracapa, na sua versão original de brinde de “Marcus Pereira Publicidade”:



“Preparem seus corações para as coisas que vão ouvir. São músicas conhecidas, tradicionais, algumas até da antologia da nossa música popular. E seus corações talvez precisem de uma trégua que abrande as vibrações dos sons eletrônicos à sua volta. Os sons eletrônicos é possível que fiquem, é possível que não fiquem. Mas os sons que vão ouvir, fabricados pelo talento de intérpretes que talvez se inscrevam entre os melhores do País, em seu gênero, esses ficarão. Repare como seu coração está alegre, repare como seus pés, à sua revelia, acompanham o ritmo extraordinariamente preciso do pandeiro de Fritz. Você talvez sinta vontade de dançar, eis um sintoma frequentemente revelado em situações do gênero. Há as convenções, sim, no entanto é preciso dançar. Este disco foi possível graças, em primeiro lugar á descoberta do disco, há décadas. Depois, à existência de “O Jogral”, bar onde se pratica a mais completa e sadia boêmia musical neste País, e que vem sendo paulatinamente descoberto por brasileiros de todas as partes, principalmente de São Paulo, onde se apresentam os intérpretes deste disco. Recentemente, na redação de um jornal do Rio de Janeiro, organizou-se um concurso literário no qual o primeiro colocado ganharia como prêmio um fim de semana em São Paulo. Isto porque São Paulo tem a fama de ser uma cidade chata. Não é verdade. Quem duvidar que vá ao “Jogral”, Rua Avanhandava, 16, mesa sempre reservada para amigos como você.

Ressalvadas a descoberta do disco e a descoberta do “Jogral”, deve-se este disco, na verdade, ao surpreendente talento do Manezinho, do Dito, do Adauto, do Geraldo Cunha e do Fritz. Manezinho participou com sua flauta do show de Baden Powell, em São Paulo. Foi um sucesso. Benedito Costa, tocando para o internacionalmente conhecido guitarrista flamengo Pedro Solder, levou o artista espanhol ao espanto, tocando com incrível precisão um instrumento, o cavaquinho, que, comparado à guitarra clássica, parece uma miniatura. Adauto prometeu nunca mais lavar as mãos, depois que foi entusiasticamente cumprimentado por Duke Ellington, num show de música brasileira especialmente apresentado no “Jogral” por ocasião de sua visita a São Paulo. Geraldo Cunha, não há quem não o conheça na noite paulista. Quanto ao Fritz, não tentem tocar pandeiro como ele, porque destronca o dedo.

Este disco, meus amigos, foi produzido pelo Carlos Paraná, inventor do “Jogral” e seu maior acionista, com os nossos protestos, são minoritários. Lança o selo “O Jogral” que, um dia, pretendemos identifique música popular de qualidade”.



Como este texto documenta, o primeiro disco que produzi com intenção consequente de prosseguir, foi “Brasil, Flauta, Cavaquinho e Violão”. Este nome, também foi dado por mim. A capa fui eu quem criou, utilizando parcialmente uma foto de João Xavier. A parte musical e de produção foi do Carlos Paraná. Colocar o selo “O Jogral” também foi ideia minha e disso inteirei o Carlos posteriormente. Depois que ele morreu, e desconhecendo o rumo que tomaria “O Jogral”, coloquei nos discos o selo “Discos Marcus Pereira” para aproveitar a grande divulgação feita em favor da última produção-brinde que lancei, a coleção “Música Popular do Nordeste”.



“Discos Marcus Pereira” lançou, até a data em que escrevo, mais dez discos de música brasileira instrumental. Quatro têm a mesma capa com cores diferentes: “Brasil, Flauta, Bandolim e Violão”, com o regional do Evandro, “Brasil Seresta” com Carlos Poyares, “Brasil Trombone” com Raul de Barros, “Brasil, Sax e Clarineta”, com Abel Ferreira.



Na Rua Avanhandava “O Jogral” passou a ser frequentado por personalidades do meio artístico e da imprensa. Paulo Patarra foi assíduo nessa fase. Era comum aparecerem Elisete Cardoso, Jorge Ben – que tinha renascido com Zazueira. Carlos Paraná não gostava das letras de Jorge Ben, é fácil entender, as letras de Carlos Paraná eram de alta qualidade poética e as de Jorge Ben, frequentemente, de qualidade discutível. E Carlos era muito exigente, mais que isso era sarcástico e ferino com os deslizes da inteligência, da gramática ou do estilo. Mas, como muita gente, tinha um flanco efetivo que era sua porta de entrada. Quando Jorge Ben começou a frequentar “O Jogral” (nessa época eu ia pouco), Carlos me falou da raridade humana que tinha descoberto e suas relações com Jorge Ben se estreitaram cada vez mais.



Tocava surdo e bateria, nessa época como amador e voluntário, um jovem chamado João Gomes, cujo apelido era Joãozinho Paraíba, sobrinho do ex-Ministro da Agricultura Severo Gomes, atual Ministro da Indústria e Comércio. Fritz, cantor e pandeirista, continuava no “Jogral”. Um outro artista, Nereu Gargalo, liderava um show de grande sucesso. Jorge Ben era habitué e tinha acentuada inclinação por mulatas que se convencionou dizer que não estão no mapa. Mas o fato é que estão, Jorge Ben sabia. E Carlos Paraná, no seu papel de anfitrião do “Jogral”, circulava a noite inteira e quando passava por Jorge Bem que, eventualmente, montava guarda junto a um joelho mais exposto, dizia: “Olha o mocotó!” João Gomes, Fritz e Nereu se uniram e fundaram o Trio Mocotó para divulgação musical e anatômica de nossos valores culturais, porque mulher também é cultura.



De 1968 a 1970 “O Jogral” era frequentado por personalidades artísticas nacionais e internacionais. Era visita obrigatória dos grandes artistas que vinham ao Brasil. Lá estiveram: Sarah Vaughan, Duke Ellington, Oscar Peterson. Para Duke Ellington, então um dos artistas mais famosos e bem pagos do mundo, que superlotou algumas apresentação especial, pois sua visita tinha sido anunciada pelo Consulado Norte-Americano. Ao fim da apresentação, Duke Ellington cumprimentou entusiasticamente os artistas e Adauto Santos, particularmente elogiado, prometeu nunca mais lavar as mãos depois que recebeu cumprimentos tão efusivos e tão significativos. Espero que tenha revisto sua decisão, pois o nosso convívio é regular e gostaria que fosse higiênico.

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