quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A história do Jogral: capítulo um



Capítulo 1

MEU ENCONTRO COM CARLOS PARANÁ E A FUNDAÇÃO DO “JOGRAL”



Por Marcus Pereira


 


Contar a história do “Jogral” – compromisso que assumi com meu amigo José Eduardo Costa, hoje no seu comando – é uma tarefa que se pode chamar de temerária. Essa temeridade eu a confesso e a assumo, na tentativa de extrair das suas madrugadas sem conta que o tempo guardou, da galeria sem fim de tipos humanos que abrigaram suas mágoas e seus sonhos na sua penumbra, disso tudo extrair alguma coisa realmente fundamental. E agora eu saio caminhando dentro de mim para recolher as lembranças que restam ainda, pois minha memória não é de marca boa.



Conheci Carlos Paraná no acaso de uma madrugada, acompanhando uma amiga apaixonada que procurava seu amado esquivo e a única pista que ela tinha era ser amigo do Carlos. Depois de vãs tentativas em várias boates, o encontramos numa casa da Galeria Metrópole, cujo nome era “Open Door”. Favorecidos pelo nome do estabelecimento, adentramo-lo, como dizem os locutores esportivos, com a consciência de que era um gramado para outros esportes. O local era decorado com conjuntos de sofás formando vários ambientes que, intencionalmente, pretendiam criar um clima familiar, e a gente sabe que exista família pra tudo. Sentamo-nos, pedimos nossas bebidas (estou escrevendo essas lembranças com os meus direitos de beber cassados por uma médica da linha dura, por isso vou mudar logo de assunto) e eu fiquei aguardando os acontecimentos, cúmplice que sempre fui de todos os apaixonados que me pediram apoio. Logo mais, aproximou-se de nós um rapaz de smoking, segurando um violão desajeitadamente, e desajeitadamente nos pediu para sentar. E sentou-se desajeitadamente. A minha amiga alvoroçada com a presença de quem logo percebi que era o amigo do seu amado, e revelando já alguma intimidade com o repertório do cantor, pediu-lhe para cantar Marcha do Amor sem Esperança.



Carlos Paraná atendeu-a e cantou a lindíssima canção, cuja música é de Válter Santos. Naquela época, eu já tinha um interesse particular por música, mas a bossa-nova não me atraía muito, o iê-iê-iê me parecia falta absoluta de brio e de respeito, pessoal e nacional, e a gente estava se refugiando nas canções de Aznavour, Endrigo, Luigi Tenco, Becaud. Havia também o repertório de Lupicínio, Noel Rosa, porque naquele tempo já se tinha saudade. As músicas de sucesso eram Que c´est Triste Venice, de Aznavour, e Ho Capito che ti Amo, de Luigi Tenco. Bons tempos aqueles em que a música estrangeira era italiana e francesa. A canção de Carlos Paraná me encantou pela sua beleza literária e musical e pelo seu romantismo superlativo, que fizeram de Carlos Paraná o maior compositor romântico de todos os tempos. Surpreenderam-me a canção, a intepretação de Carlos Paraná e sua maneira muito particular de tocar violão. Logo vi que estava diante de um compositor diferenciado e interessei-me pela sua história, que ele foi contando nos intervalos das músicas que cantava e eu fui o deixando a vontade, quebrando com o martelo do elogio e do reconhecimento a sua reserva e a sua timidez iniciais.



Carlos foi lavrador até quase vinte anos e conseguiu, depois de ter sido balconista de uma loja em Ribeirão Claro, o lugar de agente do IBGE. Em seu arquivo, Marta Paraná encontrou um texto seu, datado de 2 de janeiro de 1953, ele tinha vinte e um anos: “Se conseguíssemos arrancar uma árvore secular ou com a sua miniatura – um pequeno arbusto que fosse – notaríamos que as raízes mais finas, mais sensíveis, são os principais veículos que recolhem da terra a maná de sua fertilidade, o mel da sua umidade (...) O IBGE estende sua fronde, oferece seus frutos aos que não se interessam saber-lhe a origem, enquanto tem suas raízes escondidas colhendo no fundo da terra o manancial para muitas vidas, na qualidade de pacatíssimo agente de estatística”.



Mas o agente de estatística de Ribeirão Claro não tinha muito o que fazer, o Carlos contaria depois: “Eu passava todo tempo me coçando”. Comprava, então, livros pelo reembolso postal da Livraria Católica do Colégio Arnaldo, de Belo Horizonte. Comprou livros de Contabilidade Geral, Dicionário de Rimas, Espanhol, Dicionário de Sinônimos e Antônimos, Método de Violão. Mas tarde, já com vinte e sete anos, começou a aprender inglês e francês. Em São Paulo, no começo, foi cantor, gerente e caixa da “Music Box”, pequena boate instalada numa travessa da Rua Augusta. Se um cliente pedia a conta enquanto estava cantando, Carlos se apressava, engolia estrofes para atender ao cliente.



Ele ficou conosco longo tempo naquela noite, até porque os demais frequentadores daquela boate estavam interessados em coisas mais concretas do que a terna abstração das canções românticas de Carlos Paraná. Lembro que ele cantou Nem Sequer uma Rosa, de cuja letra reproduzo parte:



“Bom seria se, pelo amor,

Nunca mais se colhesse a flor

Pois que culpa uma rosa tem

Se alguém gosta de alguém.

Será muito mais lindo

Quando a gente aprender

Cada vez que se ama

Dar a flor sem colher.

Nosso amor pequenino

Nem devia dizer-se amor

Nosso amor não valia

Que morresse uma flor.”




                                           Luiz Carlos Paraná


Depois cantou Resignação, cujo epílogo diz: “quando chegaste eu já sabia ter alguém/ quando partiste eu já sabia viver só”. Não contive meu entusiasmo e a minha alegria por aquele acaso humano e artístico e, a partir de então, passei a frequentar as casas noturnas onde Carlos cantava.



Dias depois do primeiro encontro, Carlos foi contratado por uma boate chamada “Sambalanço”, dirigida por Cláudia Barroso, que ficava logo no começo da Rua Peixoto Gomide, à esquerda, logo depois da Augusta. Foi nessa época que uma música sua, Queria, foi para as paradas de sucessos, interpretada por Carlos José, e essa música marcou de tal forma a carreira do cantor que hoje, catorze anos depois, todo mundo associa Carlos José á guarânia de Carlos Paraná.



Meses depois, Carlos passou para o bar “Zelão”, que ficava quase em frente ao “Sambalanço”. Estamos no fim de 1964. No bar “Zelão”, nome de seu proprietário e excelente cantor, cantavam também Cláudia Morena e Emílio Escobar. O bar era maior que o “Sambalanço”, com uma qualidade musical mais uniforme, pois o tom era dado pelo artista excepcional que foi Zelão.



Uma bruma teimosa turva agora minha memória, no momento em que me aproximo dos fatos ligados á fundação do “Jogral”.



No fim de 1964, e nessa altura eu e o Carlos éramos já amigos íntimos, ele chegou um dia para mim e contou que um seu amigo, mais exatamente namorado de uma sua amiga, chamado Mike, dispunha-se a financiar a montagem de um bar de música brasileira, velho sonho de Carlos.



Nossos papos naquela ocasião eram quase unicamente sobre dois temas: música e amor. Carlos reincindia frequentemente na contravenção de amar e eram amores complicados, frequentemente não correspondentes ou impossíveis. Inconfidente consigo mesmo, ele contou essas paixões nas principais músicas de seu repertório que começamos a gravar juntos, em agosto de 1970, e seu disco eu terminei sozinho depois que ele morreu no dia 3 de dezembro de 1970. Conversávamos muito também sobre a música no Brasil. Carlos vivia permanentemente revoltado com a dominação musical a que estávamos sujeitados e seu maior sonho era um dia poder ter uma trincheira mais consequente para lutar contra a imposição cultural da música estrangeira. Em 1963, a moda era o iê-iê, tolice importada, dançada e cantada. A totalidade das boates apresentava este supremo exemplo da decadência mental de países ricos apenas economicamente e que nos impingiam sua cultura emprobrecida e neurotizada por conflitos e impasses de suas sociedades superdesenvolvidas, esse lamentável superdesenvolvimentismo que se alimenta de vidas humanas mas que é insaciável porque suga o espírito dos sobreviventes, como o tamanduá chupador de cérebros que o Henfil criou.



Os amigos de Carlos advertiam-no para o fracasso certo, se ele insistisse em ser dissidente da palhaçada geral. Mas Carlos, que foi lavrador de enxada até os vinte anos, que conviveu com a cultura do nosso povo, com intimidade, lá nos campos de Ribeirão Claro, que conhecia a incrível riqueza da nossa cultura popular, que conhecia música sertaneja como poucos, não estava interessado apenas em dinheiro. É claro, o dinheiro seria instrumento – como foi – para realização de seus planos de resistência. Mas ele jamais faria alguma coisa com o objetivo único de ganhar dinheiro. Muitas vezes, depois, quando o “Jogral” já era a mais bem sucedida e a mais famosa casa noturna do Brasil, a gente comentava, com a autoridade dos bem sucedidos, que dinheiro é muito pouco, dinheiro é, na verdade, muitíssimo pouco.



A sociedade que Mike propunha era extremamente vantajosa pois se dispunha a dividir com Carlos o capital de seis mil dólares que, como todos sabem, é a moeda nacional mais digna de confiança, devendo integralizar sua parte com os futuros lucros do negócio. A proposta me surpreendeu pois casas noturnas são sabidamente mau negócio e as exceções que conhecíamos tinham o papel clássico de confirmar a regra. Se o ramo não é inteiramente mau, ou não era, comércio desse tipo sempre se caracterizou pela instabilidade e, principalmente, é vítima permanente da volubilidade dos frequentadores que fazem o sucesso e o fracasso de uma casa ao sabor das macaquices e dos modismos da ocasião. Mas o Mike tinha razões outras, parece que um homem de recursos, estava apaixonado pela amiga do Carlos, o que provou comparecendo com o chamado numerário, que é o apelido do dinheiro nas rodas contábeis.



Tinha sido inaugurada em São Paulo, anos antes, a Galeria Metrópole, de cujo lançamento eu houvera participado como funcionário da “Inter-Americana de Publicidade”, último emprego que tive como publicitário antes de fundar a minha própria casa de determinadas tolerâncias, a agência “Marcus Pereira Publicidade”, que fechei em dezembro de 1973 para dirigir “Discos Marcus Pereira”, a partir de janeiro de 1974. Carlos alugou uma pequena loja no subsolo 1, no fundo, à direita. Sua fiadora no contato foi Maria Antônia Vergueiro, amiga extraordinária e frequentadora assídua do “Jogral”. Montou o bar com simplicidade, com pequenas mesas, bancos e banquetas de desenho simples inspirado no estilo colonial. Não me lembro senão vagamente da inauguração, devemos ter bebido muito, nós que nem precisávamos de desculpa. Fora o Carlos, que só bebia leite. O “Jogral”, nessa sua primeira sede na Galeria Metrópole, abrigava, com conforto, quarenta pessoas, mas até sessenta podiam embarcar neste bravo navio da cultura brasileira, que navega firme até hoje e que frequentemente bombardeia os piratas da cultura.



No começo, o “Jogral” tinha uma frequência fiel de jornalistas, intelectuais, compositores. Ás sextas-feiras, a colônia pernambucana, atraída por mim e por Aluísio Falcão, lotava a casa. Essa fidelidade durou muitos anos. Lembro-me de Jorge Carneiro da Cunha, e sua companheira, Rose, frequentador entusiasta até hoje, cuja gargalhada sonora, longa e peculiar, era um dos “sons” do “Jogral”. Lembro-me de Ivanildo Porto, conhecedor, como poucos, do repertório dos grandes compositores de nossa música popular, de Rubinho, de Garibaldi (onde andam vocês?) de Chico Souto – a quem convoco para retornar – e outros imigrantes nordestinos que trouxeram para o “Jogral” Expedito Baracho, cantor excelente e de repertório raro. Nessa primeira fase do “Jogral”, na Galeria Metrópole, Carlos era a grande atração. Ele cantava suas músicas, cantava as músicas de Paulo Vanzolini – então compositor ainda praticamente inédito e já legendário, pois uma música sua – Volta por Cima – ficou meses nas paradas de sucessos e ainda no auge – segundo conta Paulo Vanzolini – foi assassinada pela gravadora que precisava das prensas para fabricar um disco de Ray Charles, por determinação da matriz estrangeira. Sobre Paulo Vanzolini contavam-se histórias curiosas que ilustravam a sua polimórfica personalidade, doublé de boêmio, sambista e cientista. Paulo Vanzolini passou a ser uma das atrações do “Jogral”. Assíduo como poucos, Paulo saía do Museu de Zoologia do qual era diretor e ia para o “Jogral” onde cantava, participava de desafios, contava estórias e declamava, recebendo o cachê modesto de sua cachaça com gelo.



Voltando ao Carlos, ele era a grande atração da casa. “O Jogral” desenvolveu o seu talento raríssimo ao máximo. Seu ambiente informal, a sensibilidade e o nível cultural dos frequentadores eram estímulo permanente que alimentava sua capacidade criadora. Para surpresa de todos, Carlos, que sabíamos ser um compositor excelente, revelou-se um excepcional humorista quando improvisava nos desafios, quando imitava a maneira de falar nordestina, quando dizia os monólogos de Raul Solnado melhor do que Raul Solnado. Era um imbatível criador de paródias e usava o sarcasmo e a ironia como raras vezes vi, nos eruditos e nos populares. Seu repertório era amplo e incluía os clássicos da nossa música sertaneja, deliciosas paródias e músicas maliciosas. Incluía também, Atahualpa Iupanqui que, no Brasil, ninguém conhecia ainda, além dos sucessos da ocasião e de suas próprias músicas. De repente, manipulando o anticlímax com segurança, anunciava, falando como em Portugal se fala: “E agora, alguns pensamentos filosóficos: Entre morcegos e ratos / chegou-se lá à conclusão / de que o morcego é um rato / que entrou pra aviação. E outro: Joaquim abriu um restaurante / teve um prejuízo colosso / porque das onze às catorze / Joaquim fechava pro almoço. E mais outro: Maria da Graça é uma / cachopa d´olhos em brasa / mora sozinha e não fuma / mas tem cinzeiros em casa”.



Uma música de Paulo Vanzolini, Capoeira do Arnaldo (que está no primeiro disco que gravei, produzido por Carlos, “Onze Sambas e uma Capoeira”) fazia tal sucesso que o Carlos só cantava noite adiantada para segurar a freguesia. Então no “Jogral” vários artistas se apresentaram em temporada mais curtas ou mais longas e se revezavam com o Carlos. Adauto Santos ficou praticamente todos os anos da fase da Galeria e afastou-se apenas por algumas semanas, aliciado pelo bar vizinho, pois o “Jogral” fez escola rapidamente.



Cantaram também no “Jogral” em períodos diversos Emílio Escobar – que ás vezes rompia com Carlos, afastava-se e depois voltava – Cláudia Morena, também em várias ocasiões. Expedito Baracho, que fazia com Carlos um número de extraordinário interesse, cantando, da literatura de cordel, Chegada de Lampião no Inferno, acompanhados de violão e viola. Válter Santos e Teresa Sousa eram também muito amigos de Carlos mas apareciam pouco no “Jogral”.



Outros frequentadores que marcaram essa primeira fase do “Jogral” são Antônio Martinelli, contador de anedotas impagável e improvisador habilíssimo. Certa vez, num desafio do qual participavam Martinelli, Carlos Paraná e outros dos quais não me recordo, a certa altura, na escalada habitual de provocações como é hábito nos desafios, tudo, evidentemente para fazer rir, Carlos disse: “Agora vamos para a mãe”, isso depois que todos os parentes dos três sexos do adversário já tinham recebido todas as injúrias possíveis. E fez um verso atingindo fundamente a probidade sexual da mãe de Martinelli. Estava com ele um comerciante sírio do interior, seu amigo que indignado, botou a mão na cinta para puxar o revólver que trazia e defender a honra da mãe do Martinelli. Foi uma luta convencer o homem de que tudo era brincadeira.


Outro frequentador habitual e também improvisador estupendo era Audálio Dantas, essa figura rara de inteligência, coerência e caráter, o “Presidente Dantas” como os jornalistas o chamam. Lembro-me ainda de Luís Vergueiro, Reinaldo Rizzo e Maria Teresa, Ana Maria e Eduardo Alim, Capitão Melquíades, Eduardo Leopoldo e Silva, Leo Karan e Tonicão – que cantava e era compositor. Lembro-me ainda de Fernando Pessoa, o poeta, mas não o português.



Logo o “Jogral” revelou-se bom negócio, para surpresa de todos. E isto se deveu não apenas ao seu papel pioneiro em termos de valorização de cultura brasileira e de válvula para indignação pela imposição da música estrangeira de má qualidade, mas também à habilidade e seriedade comercial de Carlos Paraná. Nessa época, eu ia ao “Jogral” quase todas as noites e acompanhava sua evolução com o maior interesse. E lembro-me que, cada semana que passava, o movimento aumentava e nas sextas-feiras batia records, e se tornou notícia frequente que o Carlos me dava no sábado: “Ontem foi o record das sextas-feiras”.


Cerca de alguns meses depois de fundado o “Jogral”, Mike, seu sócio, rompeu com a namorada, que era amiga do Carlos, certamente em boa parte responsável pelo apoio que ele houvera recebido. Suas relações com o sócio eram boas, mas Carlos um dia me confessou o seu constrangimento em ter um sócio com o qual já não tinha nenhuma relação que justificasse a situação. Convidou-me, então, para substituir o Mike na sociedade, comprando sua parte. Eu não aceitei, porque não via cabimento na minha participação em um negócio árduo, no qual o Carlos trocava o dia pela noite, e nessa troca sempre se sai perdendo, porque a noite foi inventada exatamente para a gente dormir. Mais ainda, o sucesso do “Jogral” era devido principalmente ao talento e à seriedade do Carlos, eu não me sentiria à vontade se fosse seu sócio. Aceitei apenas ter uma participação simbólica, de uma quota em cem, para o Carlos poder fazer a alteração do contrato social, e emprestei dinheiro para ele comprar a parte do Mike. Um ano depois, quando ele me pagou, insistiu para pagar juros, eu não aceitei, e mais tarde recebi em moeda, para mim muito mais importante. Maria Antônia continuou como avalista, ela foi talvez a amiga mais fiel e generosa que Carlos teve em sua vida.

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