terça-feira, 5 de setembro de 2017

PASTORES DA NOITE: Araken Peixoto





Por Alessandro Porro

Diz: “Eu olho e não olho, eu escuto e não escuto. Mas como é bonito ver o pessoal namorando, quando a gente está tocando”. Diz: “É como se você ajudasse. Não é para pensar mal: mas é como se você estivesse participando”. Diz: “Meu Deus, quantos beijos eu vi trocar numa noite só, beijos de amor improviso, de paixão instantânea: e eu tocando, e prevendo a chegada da madrugada, e do resto”.

Quem diz é Araken Peixoto, o da noite, o do pistom, o da cara de gitano sem malandrice, o poeta. Araken é também e especialmente um dos últimos artistas boêmios desta São Paulo que vive de antigas surpresas. E de sons macios que me lembraram antigos pastores da noite: o piano de Dick Farney, a voz de Maysa, o baixo sem sobressaltos de Azeitona – um pulsar de coração no limiar do amanhecer. E agora Araken, que insiste e resiste, à vontade em seu smoking preto, como se tivesse nascido nele, e você nem percebe que ele está vestindo a rigor. Diz: “A noite e coisa boa, é coisa séria, e deve ser respeitada”. Com sua música, Araken cria atmosferas irrepetíveis, sem data ou hora marcada. Ele chega e toca, nunca subindo no degrau das celebridades, mas entre as mesinhas de bar, ou apoiado ao balcão- olhando, sob os reflexos reluzentes de seu instrumento, o copo que o espera para depois do primeiro número. Outra noite, no Trianon do Hotel Maksoud, Araken tocava As Times Goes By, e de repente houve dezenas de casais que se acharam Humprey Bogart e Ingrid Bergman, os de Casablanca. Mais tarde, no One More Time, Araken inventou entrar na sala não pela porta, as descendo pela escada, já tocando as primeiras notas de Meditation: o pessoal não aguentou de prazer, e aplaudiu de pé este herdeiro de arte de Harry James nascido em Niterói há 55 anos.

Filho do compositor Elesiário, sobrinho de Nonô – o pianista de Pixinguinha -, Araken é o irmão de Cauby Peixoto, 52 anos, o inesquecível intérprete de Conceição; é o irmão de Moacyr Peixoto, 65, um dos melhores pianistas da noite brasileira; é o irmão da cantora Andyara Peixoto, 57, que já abandonou o microfone pelo conforto do lar. E é primo de Ciro Monteiro, o glorioso sambista que criava harmonias inesquecíveis (Se Acasso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues), batucando numa caixa de fósforos.

Com uma família assim – alguém poderia desconfiar -, quem não estaria em condições de vestir o smoking e assoprar um pistom? Araken já ouviu mil vezes coisas assim, e sempre reagiu – com o sorriso sorneiro, matreiro, de quem não quer briga – contando o começo da história.

VIVA O SARGENTO!

Foi em Niterói, no quartel do Exército, onde começara, aos 20 anos, o serviço militar. O irmão Moacyr lhe havia dado de presente um trompete de pistons, do qual Araken conseguia tirar três ou quatro sons, sem muito entusiasmo. Mas foi o que bastou para que o comandante do quartel nomeasse o recruta Araken Peixoto trompete do regimento. “Mas não devo a este coronel o sucesso de minha carreira. Devo agradecer é a um sargento malandro e boa praça, que permitia que eu saísse do quartel quase todas as noites, para integrar pequenas bandas que tocavam nas festas, nos bailes do interior, e nos inferninhos mais escondidos da Baixada Fluminense: foi ali que comecei a tocar realmente, e saboreando pela primeira vez o prazer do som”. Quando o soldado raso Araken Peixoto deixou o quartel, já sabia o que fazer na vida. Não se pode dizer que começou nas “casas noturnas mais elegantes do Brasil” – como diz hoje a publicidade que acompanha seu último LP, Um Pistom dentro da Noite (Selo Eldorado). “Comecei na barra pesada, onde se fazia som de verdade, sem compromisso, e as meninas desmaiavam de gosto escutando minhas músicas”, conta Araken, lembrando duas entre as casas mais endiabradas dos primeiros anos da década de 1960: o Recanto Nostálgico, na Rua Amaral Gurgel, e a Old Friends, da Avenida 9 de Julho.

Araken é um artista de muitos amigos e admiradores. Poderia ter viajado para o Exterior, e ganhar o que, ele garante, teria sido “uma grana preta”, não fosse o maldito medo de avião. Também pudera: “Nas únicas duas vezes que tentei vencer o susto, me dei mal: uma vez voei para Belém do Pará, e o avião perdeu o trem da aterrissagem. Outra vez, voltando da Bahia, os motores pararam, e eu acabei quebrando o pistom de tanto apertar: era a única coisa que eu tinha para me segurar na queda que eu previa iminente, e que não houve por mero milagre”. Assim na base dessas experiências, Araken foi obrigado a renunciar a um convite daqueles irrecusáveis, feito por Armando Manzanero, que queria organizar com ele uma volta aos bares de todo o mundo, de Nova York a Tóquio, de Paris a Roma, de Londres a Berlim. “Teria sido a glória, mas aqui também fui dando certo”, admite Araken, que no eixo Rio-São Paulo fez sua carreira e seu sucesso. E não somente nos inferninhos. Casas como o Studio do Hotel Jaraguá, o Sacha´s, o Bom Gourmet – que fizeram a lenda da noite brasileira – brigaram por meu passe. “Mas eu sempre fui muito livre: não posso deixar de tocar onde sei que há amigos me esperando”. E assim você pode escutar numa mesma noite Araken no Trianon, um dos mais requintados bares de São Paulo, no Hotel Maksoud (Al. Campinas, 150); no One More Time, novo templo noturno dos Jardins; no efervescente La Bohème, da Rua Álvaro de Carvalho, e – alta madrugada – em casa de amigos para tomar com eles o último uísque e o café da manhã; e tocar.

No Rio de Janeiro, Jorginho Guinle quis que Araken corresse para seu apartamento no Flamengo, quando namorava Kim Novak: e garante que se a coisa deu certo foi porque Araken tocou como um “grande”, comovendo a bela intérprete de Piquenique. Uma senhora carioca (Araken é um gentleman: sabe quando não deve citar nomes) queria a qualquer custo conquistar o pintor Salvador Dali, que estava visitando o Brasil. Também neste caso, Araken apareceu com seu pistom para criar a atmosfera única de que ele é capaz. A história não diz se, afinal, a madame conseguiu o que queria. O que se sabe, por certo, é que hoje uma tela do pintor espanhol ocupa uma das paredes da casa da colecionadora carioca, e que Araken recebe de todos os anos um recadinho da mesma, com uma frase simples: “Obrigada, meu amigo”.

A MÚSICA EM DISCO

O último LP de Araken Peixoto, Um Pistom dentro da Noite (o primeiro de sua carreira produzido comercialmente, pelo Estúdio Eldorado de São Paulo, mas existem outros dois realizados no Rio para venda nas casas noturnas onde Araken se apresentava), contém o melhor do repertório do pistonista mais boêmio do Brasil, uma verdadeira antologia de clássicos americanos, com apenas uma faixa brasileira (Bonita, de Tom Jobim) e outra italiana (Estate, de Bruno Martino). Com o acompanhamento de alguns dos músicos mais festejados da noite (inclusive o irmão Moacyr Peixoto, que embeleza com seu piano algumas faixas mais significativas do disco), o LP é para ser ouvido em casa, de preferência a dois, durante um papo gostoso, diante de uma boa garrafa de uísque. O som de Araken faz o resto, sem nunca ser indiscreto, sem nunca querer intervir: é a grande sacada do artista, que consegue criar um clima propício até no apartamento de amigos desconhecidos. Mas, amigos. O disco é dedicado a José Bonifácio Sobrinho, o todo-poderoso Boni da TV Globo. O motivo é comovedor, e demonstra – não bastassem outros exemplos – como o pistonista preza a amizade e sabe agradecer Araken – que é casado com Fátima há 26 anos (“Minha única mulher: uma santa acredite”) e tem três filhos – não soube e não quis transformar o sucesso em riqueza: no Trianon ganha 7 mil cruzados por mês, e o resto vem da generosidade dos amigos da noite. Nestas condições, como comprar um pistom novo, decente, que vale pelo menos 2 mil dólares? Boni, alguns meses atrás, olhou para o pistom velho de Araken e não disse nada. Mas, quando voltou de uma viagem aos Estados Unidos, trouxe para o amigo artista o melhor pistom que existe, um Vicent Bach que parece de ouro. Então, Araken tocou a música preferida de Boni, Someone to Watch Over Me, de George Gershwin, e mandou gravar no instrumento algumas palavras singelas, como ele sabe dizer: “Boni, o som agradece”. E com este pistom gravou seu LP.

Publicado originalmente na “Playboy” de agosto de 1986

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