segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Musa da Boca Débora Munhyz lança biografia



Por Matheus Trunk

São mais de 20 longas-metragens no currículo. A pernambucana Débora Munhyz tornou-se nome conhecido no cinema nos anos 1980 quando participou de diversões produções da Boca paulistana. Seu início foi com o diretor e produtor José Mojica Marins, o Zé do Caixão e prosseguiu depois trabalhando com diversos profissionais do quadrilátero. “A Boca foi a minha segunda casa. Eu escolhi viver e usufruir do lado positivo da grande indústria cinematográfica: o castelo de sonhos que virava realidade”, relembra ela com nostalgia.

A vida profissional da musa está no livro Débora Munhyz: do terror ao amor publicado pela editora Laços com organização do radialista e produtor cultural Rafael Spaca. A obra não teve lançamento oficial mas pode ser adquirida diretamente com a editora pelo email editoralacos2016@gmail.com. Débora conversou com o VSP sobre o livro e sua trajetória na sétima arte.

Como surgiu a ideia desse livro?

Débora Munhyz: A ideia do livro surgiu mais ou menos em 1999. No final da década de 1980, eu parei com tudo: cinema, teatro, atuação. Fui pro Japão trabalhar com danças e eventos e voltei pro Brasil somente em 1999. Nessa época, um jornalista chamado André Lourenço se interessou e teve a ideia de fazer um livro sobre isso. Na época, eu achava uma loucura, dizia: “Não estou preparara para isso. De jeito nenhum”. Mas ele insistiu tanto e começou a fazer pesquisas, levantou um material grande. Mas no decorrer disso tudo aconteceu uma coisa horrível que foi a morte do André. Foi um acidente e eu nem gosto de falar sobre isso. Aí deixou de existir o projeto do livro.
Muitos anos depois eu conheci o Rafael (Spaca, editor) que estava fazendo uma matéria sobre outra atriz da Boca. Ficamos conversando e ele ficou insistindo na história de fazer um livro. Aí novamente veio toda aquela história, mexeu com a minha cabeça. Mas a insistência do Rafael durou dois anos e eu comecei a pensar no pedido do André.  Então, eu resolvi aceitar o convite em homenagem a esse amigo querido. Isso foi rolando por alguns anos e agora finalmente está saindo.

Como você descobriu que queria ser atriz?
Eu descobri que queria ser atriz quando nem sabia o significado disso. Eu cresci no interior do Paraná numa fazenda e depois mudamos para a cidade chamada Itapejara do Oeste. Botaram uma televisão na praça central e foi ali que tive o primeiro contato com a atuação. É incrível que até hoje eu tenho a imagem da primeira cena que assisti: um pai pegando no braço de uma menininha atravessando a rua. Na mesma hora, eu peguei na mão do meu pai e falei: “Vou fazer aquilo”. Nem sabia do que se tratava, do que era.
Passou o tempo e vim para São Paulo quando eu tinha dez anos. Foi quando comecei a me inteirar e assistir televisão na casa de uma tia. A vontade foi aumentando a vontade de participar daquilo. Tive o acesso num primeiro anúncio do jornal que falavam das escolinhas de cinema. Nisso, eu acabei caindo na escolinha da Planeta Filmes do (cineasta) Wilson Rodrigues. Fiquei ali uns dois meses mais ou menos. De lá, o (assistente de câmera) Geraldo Damasceno me levou para a escola de atores do José Mojica Marins que na época ficava ali na (rua) Barão de Jaguara, na Mooca (zona leste de São Paulo). Aí começou toda história e me tornei aluna do Zé do Caixão.


Como foi esse começo com o José Mojica Marins? Que importância ele teve na sua carreira?
Naquela época, os cursos de interpretação eram ministrados pelos alunos mais experientes. O senhor Mojica passava somente as provas pra gente. Dividiram a gente em três grupos. Montava-se um grupo que concorria com o outro. O meu grupo acabou vencendo e foi maravilhoso. Era muito bom porque você aprendia a fazer de tudo: montagem, continuidade e sempre acabava fazendo uma pontinha em alguma produção. Mas o aprendizado com o seu Mojica não foi como atriz somente, mas principalmente como pessoa. Ele tinha um círculo de amizades muito bom e para mim era maravilhoso já que eu era adolescente ainda. Então, eu tinha muita curiosidade de aprender e ficava num cantinho ouvindo pessoas conversando como o (físico) Mário Schenberg, o (ator) Jofre Soares ou o (produtor) Wilson Garcia. O Mojica foi muito importante como uma grande universidade e a minha família mesmo não aceitava aquilo. Na época que eu entrei fiz amizades muito fortes com outras pessoas que estavam começando como o Satã ou com a Fátima Sena Porto. Então, o Mojica foi uma espécie de pai que eu respeito muito. Dele guardo muito carinho e consideração.

Como você começou a trabalhar com outros diretores de São Paulo?
O Mojica abriu um escritório no edifício Soberano na rua do Triunfo. Esse espaço funcionava para recrutar alunos para fazer a escola dele. Eu era secretária desse escritório, resolvendo de tudo um pouco. Recebíamos as pessoas de fora que procuravam a escola, fazíamos o cadastro dos futuros alunos e foi assim que conheci diversas pessoas da antiga Boca do Cinema. Foi lá que conheci o Ary Fernandes, o Elias Khouri. Resolvíamos os problemas dos filmes, o lado burocrático das viagens do Mojica. Ali começou o meu convívio diário na rua do Triunfo trabalhando no escritório e tendo contato com as pessoas que circulavam por ali.
Eu só tinha feito um filme nessa época que era A Mulher Que Põe a Pomba no Ar da Rosângela Maldonado. Nessa produção, a minha personagem chamava-se Débora. O meu nome verdadeiro é Maria das Neves. Mas diziam: “Você é a Débora do filme da Rosângela?”. E acabou ficando Débora. Esse virou meu nome artístico.

Já que você citou o Ary Fernandes, fala um pouco do convívio com ele. O que você aprendeu com ele?
O Ary foi uma das primeiras pessoas que eu conheci na Boca. Ele foi um dos primeiros amigos e protetores que eu tive na minha história ali. O primeiro filme que eu fiz com ele foi Essas Deliciosas Mulheres que foi filmado em Poços de Caldas (interior de Minas Gerais). Cheguei a fazer quatro filmes com ele como A Fábrica de Camisinhas, Taras Eróticas. Tudo participação pequena, mas era o meu começo. O Ary me ensinou como era a política do meio cinematográfico da época, como eu devia me portar com as pessoas da rua do Triunfo. Então, ele me ensinou muito da postura que eu tinha que ter como profissional.

E com o Tony Vieira? Você fez um filme com ele, certo?
O Tony Vieira foi um grande amigo. Aprendi com ele muito da vida, a ser humano e enfrentar as dificuldades. Fiz um único trabalho com ele que foi um marco na minha vida: O Último Cão de Guerra. Era uma época em que estava terminando a Ditadura e o Tony foi muito corajoso em fazer um filme com aquele tema. Era um tema sério, polêmico e filmado dentro da Base Aérea de Cumbica. Nós filmamos acho que vinte dias lá. Foi muito enriquecedor já que tivemos acesso a muitas coisas que aconteciam ali dentro. Eu costumo dizer que tanto o Tony como o Mojica foram pessoas muito interessantes e com as quais eu aprendi muito. O Mojica mais como um pai e o Tony mais como aquele amigo que me ensinou que não existe limites quando você quer algo, quando você busca algo de verdade na sua vida. Eu defino o Tony como um operário do cinema da Boca. Foi um grande amigo e me ensinou a encarar a vida sem medo de lutar em busca do que quero.

Como era pra uma mulher frequentar um ambiente como a Boca? Era muito machista?
É incrível que praticamente eu não percebi esse lado machista da Boca. Eu tinha amigos muito queridos que me protegeram lá dentro. Claro que o meio artístico da época era muito machista. O cinema sempre foi muito machista e quem trazia o grande público para as produções eram as meninas. Mas eu passei a minha adolescência na Boca. Tinha um círculo de amizades com pessoas que tinham outra cabeça, uma cabeça mais familiar. Então, eu chamo de minha família da Boca. Essas pessoas me viam primeiro como ser humano, como uma adolescente querendo aprender. Agradeço muito a Deus por ter conhecido pessoas como Ary Fernandes, Augusto de Cervantes, Jean Garrett, Satã, Mojica, Tony Vieira, Chico Cavalcanti. Esses sempre me protegeram. Então, eu tive pessoas queridas foram me cuidaram de verdade e acho que pela orientação deles eu não vi tantas pessoas que viam a mulher como objeto. Eles criaram uma redoma em volta de mim deixando muita gente sem acesso.
Quando vinham algumas cantadas eu sempre bancava a bobinha que não estava entendendo tudo. Então, enquanto me viam como boba eu trabalhava. A Boca naquele momento era a minha segunda casa. Claro que existiram muitos problemas, fofocas como todo lugar, mas nunca dei importância. Nunca alimentei o lado negativo. Eu escolhi viver e usufruir do lado positivo da história da Boca que foi a grande indústria cinematográfica: o castelo de sonhos onde podia virar realidade. Onde eu podia ir para a frente da tela fazer os meus filmes, as minhas amizades. Então, o lado ruim eu nunca levei em conta. Nunca alimentei essa coisa toda.

Você trabalhou na fase explícita. Como foi isso? Como você avalia essa parte da sua carreira?
Quando chegou filmes como Coisas Eróticas e O Império dos Sentidos ficou difícil. A Boca começou a produzir somente longas-metragens com sexo explícito. Fiquei muito tempo sem aceitar fazer. Só que o tempo foi passando e comecei a me questionar. O Ary Fernandes era um que falava muito comigo: “Vamos conversar sério. Você vai parar ou continuar? Que rumo você via dar?”. Foi quando eu recebi um convite da (produtora) Haway através do (produtor) Fernando (Gregório) pra fazer A B... Profunda. Eu fiquei seis meses pensando desde que veio a primeira proposta. Depois, acabei indo numa reunião na Haway onde inclusive conheci o (diretor ) Álvaro de Moya. Então, aí começou o questionamento interior: “O que fazer?”. Aí não era mais a questão de aceitar fazer o explícito ou não. Era a questão aceitar continuar fazendo cinema ou não e no começo foi muito difícil, a opção, aceitar fazer foi muito complicado. Mas eu pensava  muito no que o Ary Fernandes tinha me falado: “Débora se você não fizer o cinema parou”.  Foi quando eu optei em fazer. Ou seja: no momento não foi em fazer sexo explícito eu optei em continuar fazendo cinema.
O Moya sabia das dificuldades. Tanto que no primeiro dia de filmagens tive uma rejeição interna enorme. Mas eu avisei o Moya: “Se cortar eu não repito a cena. Então, fica de primeira não dá pra cortar, pra repetir não”. Ele levou isso muito a sério, colocou duas câmeras e foi. Minha cabeça entrou num turbilhão. Fiz a cena inteira e quando ele disse: “Corta”, eu desmaiei. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida no meio artístico. Depois veio inclusive um médico me visitar. Foi um dia muito difícil nas filmagens. Mas voltou ao normal e comecei a pensar na Débora que veio para vencer, que sabia o que queria da vida e cinema era a minha vida. Eu me propus a fazer cinema que era o que eu queria e se naquele momento a única forma de fazer cinema era aceitar esse tipo de segmento tudo bem. Já tinha feito o primeiro.
Naquele período eu só fazia cena explícita com um ator. Normalmente, eu fazia uma cena por filme com exceção do Gozo Alucinante do Jean Garrett com produção do Augusto de Cervantes. Essa foi uma das maiores produções de sexo explícito que teve na rua do Triunfo. Então, a partir daquele momento que aceitei, eu levantei a cabeça e falei: “Vou fazer o melhor que eu puder, mas com a responsabilidade de fazer cinema”. Depois, a maioria dos diretores passaram a se preocupar somente com as cenas de sexo explícito até que virou somente sexo explícito. Então, eu acho que na verdade o cinema da Boca foi prostituído.

Como você se adaptou ao final da Boca para ser ativa no teatro e em outros lugares?
Depois de um tempo acabei desistindo daquele cinema. Parei com tudo e fui embora pro Japão viver de dança, eventos e shows. Quando voltei de lá, encontrei com amigos queridos que estavam indo pro teatro como o diretor Roberto Rocco. Meu primeiro espetáculo nessa volta foi o Tropicanalha do Aziz Bajur. Naquele momento eu queria fazer teatro, queria fazer cinema, mas com muito cuidado e foi o que aconteceu. Fiquei muito tempo sem fazer cinema porque as coisas que vinham não me interessavam. Então, esperei vir algo que eu acabei me interessando.

Que importância teve pra você participar do curta-metragem Amor Só de Mãe do Dennison Ramalho? O que mudou na sua vida depois disso?
Eu fui conhecer o Dennison quando ele me mandou esse roteiro. Acredito que conhecer ele abriu um novo horizonte pra mim. Desde o primeiro momento vi que ele era um jovem sincero, batalhador e que buscava um cinema sério. Acho que foi a coisa mais certa que eu fiz na minha vida. Me senti respeitada como pessoa, profissional e como mulher. Então, Amor Só de Mãe foi um marco na minha vida, foi o meu retorno de forma digna porque fazia muito tempo que eu não fazia cinema. Espero muito que eu encontre outro filme, outro personagem que me dê tantas possibilidades. Um personagem como Formosa que eu fazia no Amor Só de Mãe. Pra mim, foi o melhor personagem que já fiz em cinema.

O que você espera com o livro?
Espero contar parte da minha história. Mas principalmente falar de pessoas queridas da Boca. Dessa parte da rua do Triunfo com a minha visão, da forma que eu vivi, da forma que eu convivi com pessoas que respiravam cinema e se alimentavam de cinema. A minha prioridade é lembrar dessas pessoas, muitas delas nem são lembradas hoje. Vamos dizer que seja uma homenagem a amigos queridos, essa família linda que eu tive o prazer de conviver e que pra mim é um grande orgulho. Foi um presente de Deus ter podido estar presente na história do cinema nacional na metade da década de 70 e 80. Não tenho pretensões em fazer um livro acadêmico de mostrar uma história luxuosa, não nada disso. A Boca não era nada disso: a Boca era simples, a Boca era humilde. E assim é o meu livro. 

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