segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Recortes sobre Ody Fraga




Por Nuno César Abreu

Ody Fraga era reconhecido, mesmo por uma crítica historicamente mais exigente, por ter propostas de conteúdo mais respeitável, um olhar crítico sobre a classe média, opiniões estéticas e políticas (também em relação à classe cinematográfica) articuladas. Entre seus pares, cultivava um certo cinismo e fama de preguiçoso.

Cláudio Portioli relata:

Com o Ody Fraga, eu fiz uns oito filmes. Eu gostava de trabalhar com ele. (...) Na hora de filmar, ele tinha uma preguiça que não tinha tamanho. Mas todos os roteiros dele tinham sempre uma proposta, uma coisa a mais. Dava pra sentir que havia alguma coisa no roteiro que era boa. (...) O dia em que não tinha vontade de filmar, ele relaxa (...). Dizia assim:
- Monte uma grua ali.
- Mas por que uma grua, Ody Fraga?
- Porque, enquanto eles montam a grua, a gente descansa.
O pessoal levava umas duas horas pra montar aquelas gruas velhas, caindo aos pedaços.

A despeito do perfil marcado pelo espírito crítico, cinismo, mordacidade e “preguiça”, Ody Fraga tinha a confiança irrestrita dos produtores, não só pela qualidade do seu trabalho, mas também por respeitar os prazos, trabalhar com rapidez e eficiência.



A esse respeito, diz Luiz Castillini:

Ele era prático. Era capaz de matar uma sequencia inteira num plano só. Sabia como fazer, sabia muito bem os atalhos, como chegar rápido num momento (...). Perceber o que ia render (...) e chegar rápido ao máximo do rendimento dramático, com o ator, na marcação, com a luz. Chegar num ponto em que, além dali, tentar mais alguma coisa é gastar tempo e dinheiro. Ele percebia logo o que um ator podia render e não exigia mais do que a pessoa podia dar. Também não é uma crítica ás pessoas: cada um tem o seu limite. Era realmente muito rápido, e mais: escrevia cenas muito fáceis de ser realizadas. Nada mirabolante. Ou seja, ele fazia o que o povo da época gostava.

Para quem teve uma cultivada fama de preguiçoso, é de admirar que além dos roteiros que escreveu sob encomenda para diretores e produtores, ele tinha escrito e dirigido seus próprios filmes, em quantidade apreciável mesmo para os padrões da Boca. Entre seus filmes não há um estrondoso sucesso, mas consistentes bilheterias, resultando numa folgada relação custo-benefício, tanto nos investimentos financeiros quanto nos artísticos. Entre 1976 e 1983, Ody Fraga filmou (escreveu e dirigiu) de dois a três filmes por ano, trabalhando com os principais produtores da Boca do Lixo.

Ody Fraga foi responsável pela iniciação profissional de Guilherme de Almeida Prado, um dos mais talentosos realizadores da “segunda geração” da Rua do Triunfo. Descendente da tradicional família paulista, Guilherme de Almeida Prado (Ribeirão Preto, SP, 1942) formou-se em engenharia, mas desejava faze cinema, atividade na qual já se havia exercitado quando estudante, na bitola super-8. Foi levado à Boca do Lixo por Cláudio Portioli.

Segundo Almeida Prado:

Ele me botou numa produção do David Cardoso dirigida pelo Ody Fraga. Eu assinei como assistente de direão, mas, naquele tempo, isso não existia. Nem o David Cardoso sabia o que era assistente de direção. Eu sabia, porque tinha lido, estudado. Eles precisavam era de um continuísta, queriam alguém que fizesse tudo. Eu lembro que o Portioli falou pra mim: “Tudo o que eles perguntarem você diz que sabe, que você faz. Depois me pergunta e eu te explico. Diz que faz tudo, depois a gente resolve o que vai acontecer”. Eu lembro que a única coisa que eu não topei foi fazer still (fotos de cena), porque detesto tirar fotografia. O Portioli ficou furioso, porque ele tinha dito que eu fazia e, depois, ele teve que fazer. Acabou fazendo direção de fotografia, câmera, e ainda fazia o still. O filme chamava-se E agora, José?

Com cabeça formada na engenharia, cinéfilo e estudioso, Guilherme implementaria, como assistente de direção, certas práticas de organização e administração das filmagens comuns em produções estruturadas, mas que não eram devidamente realizadas na Boca do Lixo.

Prossegue Guilherme de Almeida Prado:

O David Cardoso nunca tinha visto uma análise técnica, uma ordem do dia. Quando apareceu um cara que fazia ordem do dia, sabia fazer análise técnica, sabia o que era continuidade direitinho...Quando eu cheguei lá e fiz ordem do dia, todo mundo levou um susto. Depois o David Cardoso já queria que eu fizesse ordem do dia pra uma semana inteira seguinte, não só pro dia seguinte. O diretor de produção não sabia olhar análise técnica e entender. Então, eu fiz oito filmes em um ano e meio, na Boca (...).
O Ody foi o diretor com quem eu fiz mais filmes, com quem eu tive um relacionamento mais próximo. Ele era um personagem único. Estava sempre tirando sarro de tudo, a todo momento. O Ody era uma pessoa que tinha, com certeza, um nível cultural um pouquinho acima da Boca. E tinha bastante ascendência, tanto positiva como negativa. Só o fato de ele ter dito (a um produtor) que o meu roteiro era maravilhoso, mas não era comercial, matou o meu roteiro. E ele sabia que estava matando. (Na Boca) era melhor ele falar que era uma droga, mas comercial, entendeu?

Esse depoimento de Guilherme de Almeida Prado reitera duas ou três coisas que ficamos sabendo sobre a Boca: o recrutamento era feito de modo a colocar as pessoas em ação diante de problemas, para mostrarem se sabiam fazer ou não; a avaliação de um projeto ou roteiro era francamente comercial; um produtor bem estabelecido (para os padrões da Boca), como David Cardoso, não conhecia análise técnica – uma prática comum de produção que organiza a filmagem, a racionalidade das relações de trabalho, o uso de equipamentos, transporte etc., e, por consequência, administra a economia do filme. São fatores aparentemente contraditórios, como quase tudo na Boca do Lixo: o sistema de produção era conduzido por uma visão decisivamente comercial, mas não havia planejamento – necessário a qualquer atividade econômica -, e o recrutamento da mão-de-obra não passava por nenhum critério de competência.

A atriz Matilde Mastrangi, que trabalhou em alguns filmes dirigidos por Ody, faz interessantes revelações a respeito do seu cinema e do tipo de relações de trabalho que ele mantinha. Nelas, mais uma vez, Walter Hugo Khouri surge como referência:

Eu adorava o Ody, nunca recusei um trabalho dele, trabalhamos muito juntos. (...) Eu gostava de trabalhar com o Ody pela maneira de ele tratar a gente. (...) Quando escrevia alguma coisa, ele me ligava para ver se eu queria fazer. Quando o produtor me chamava e eu dizia que não ia fazer, o Ody me ligava, tentando me convencer.
(...) O Ody era um intelectual, lia muito. Uma pessoa que sabia mais das coisas. Você pega um roteiro dele e compara com um do Castillini, em concordância verbal, erro de português...Os do Castillini, eu, que só tenho o ginásio, corrijo. Tem gente que sabe e gente que se mete a fazer. O Khouri escrevia mais ou menos a mesma coisa que o Ody escrevia, só que o Ody levava para o popular e o Khouri queria fazer uma coisa mais elitizada. Mas o produto era a mesma coisa, o que mudava era a embalagem. O Khouri também era intelectual, uma pessoa de bom gosto, com uma estética diferente, mas ele fazia a mesma coisa que o Ody. Eu coloco os dois no mesmo patamar.

Para Luiz Castillini, Ody foi um mestre, com quem aprendeu, além da ironia, “a enxergar cinema de verdade. Não o ABC, a coisa técnica, mas o que tem por trás da técnica”. De fato, Ody Fraga enxergava por trás da técnica. Plenamente consciente de seus instrumentos de trabalho e dotado de uma aguda visão social, seus diagnósticos são sempre precisos, tanto a respeito das relações internas ao cinema da Rua do Triunfo quanto deste com o cinema brasileiro e com o Brasil, como se pode notar neste trecho da já mencionada entrevista concedida por ele em 1982 (o ano em que estamos nesta narrativa):

Eu não tenho amor pela Boca. Eu acho que ela está completando um ciclo; tem que mudar para outra fase, senão vai morrer. Uma certa produção mais barata parece que está perdendo lugar. Não só pela inflação geral e do cinema. Parece que o público está solicitando uma coisa mais fina. Mais bem acabada. E esses filmes mais bem acabados, mais interessantes, fazem puxar o resto para cinema (...) O problema é o seguinte: a Boca tem que passar para sua segunda fase. A primeira fase, o primeiro ciclo, já se completou.

Seu diagnóstico, sem dúvida, detectava problemas estruturais da Boca naquele momento. De fato, vivia-se então uma fase de esgotamento, tanto de um “estilo” (práticas significantes) como de um “modo de produção” (práticas de produção), centrados na fórmula erotismo + produção barata + título apelativo + divulgação em mídias populares, que, com níveis diversos, se estabeleceu como modelo. Os filmes não estariam acompanhando o que parecia ser uma elevação no nível de exigência do público, o que era facilmente percebido, por um lado, pela queda do movimento das bilheterias de modo geral e, por outro, pelo sucesso de produtos com melhor embalagem.

Ody Fraga- Porque a Boca dá uma idéia (de) que é um negócio meio anárquico, mas não é. Ela criou um folclore próprio, uma mitologia própria. E a realidade dela é outra. Sujeito menos avisado, que não penetra na coisa, chega na rua do Triunfo e vê um pouco da casca do que já não é mais. Houve um tempo em que o folclore disso era uma beleza. Hoje você não vê mais ninguém pela rua – o restaurante do Serafim, o bar do Ferreira, aquilo tudo acabou. Esse folclore está acabando, porque o tipo de produção que girava com esse folclore acabou. Um ciclo se completou. O negócio de se fazer muitas fitinhas, de sexo só, vai acabar. O sexo e a discussão sobre ele vão prosseguir numa segunda etapa.

FC- Qual vai ser essa segunda etapa?

Ody Fraga- Vai ser o seguinte: primeiro – melhor apuro de qualidade técnica de acabamento dos filmes. Hoje não dá mais resultado, como aconteceria até cinco anos atrás, investir um mínimo de dinheiro para tirar o máximo de resultado. Não está mais correspondendo uma coisa com a outra. As fitas de acabamento marreta estão dando resultados marretas e medíocres também. A Boca está atravessando, no momento, um dos seus períodos de crise. Um dos seus períodos agônicos. A Boca está em agonia. Eu aplico o agônico no sentido Unamuno (autor do ensaio A agonia do cristianismo): é quando todo o organismo, todo ser, começa a se convulsionar, a sofrer e entrar em pânico. A entrar em crise, não para morrer, mas para passar a uma outra etapa. Nessa passagem, muita coisa fica pelo caminho – a coisa não tem condição de sobrevivência mesmo. É bem – um pouco – a luta do mais apto. Porque, num primeiro momento, teve gente que se beneficiou de uma determinada situação. O gabarito mental era pequeno e eles tinham o fôlego e o gabarito mental na mesma dimensão. No momento em que se amplia essa dimensão, eles ficam mentalmente do mesmo tamanho. Não têm nada para crescer. Não têm perspectiva, nem visão. Não têm abertura intelectual, abertura mental para isso. Esse pessoal já está ficando no meio do caminho. (...) Hoje, estão trabalhando os produtores que se estruturaram. Hoje, estão sobrevivendo na Boca os empresários. O resto vai acabar. Em cinco anos não tem mais. Esse é o negócio.



Publicado originalmente em:

ABREU, Nuno César. Boca do lixo: cinema e classes populares. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006. Páginas 114 a 119.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Ody Fraga,um dos mestres do cinema nacional.