Por
Nuno César Abreu
Ody
Fraga era reconhecido, mesmo por uma crítica historicamente mais exigente, por
ter propostas de conteúdo mais respeitável, um olhar crítico sobre a classe
média, opiniões estéticas e políticas (também em relação à classe
cinematográfica) articuladas. Entre seus pares, cultivava um certo cinismo e
fama de preguiçoso.
Cláudio
Portioli relata:
Com o Ody Fraga, eu fiz
uns oito filmes. Eu gostava de trabalhar com ele. (...) Na hora de filmar, ele
tinha uma preguiça que não tinha tamanho. Mas todos os roteiros dele tinham
sempre uma proposta, uma coisa a mais. Dava pra sentir que havia alguma coisa
no roteiro que era boa. (...) O dia em que não tinha vontade de filmar, ele
relaxa (...). Dizia assim:
- Monte uma grua ali.
- Mas por que uma grua,
Ody Fraga?
- Porque, enquanto eles
montam a grua, a gente descansa.
O pessoal levava umas
duas horas pra montar aquelas gruas velhas, caindo aos pedaços.
A despeito do perfil marcado pelo espírito crítico, cinismo, mordacidade e “preguiça”, Ody Fraga tinha a confiança irrestrita dos produtores, não só pela qualidade do seu trabalho, mas também por respeitar os prazos, trabalhar com rapidez e eficiência.
A
esse respeito, diz Luiz Castillini:
Ele era prático. Era capaz
de matar uma sequencia inteira num plano só. Sabia como fazer, sabia muito bem
os atalhos, como chegar rápido num momento (...). Perceber o que ia render
(...) e chegar rápido ao máximo do rendimento dramático, com o ator, na
marcação, com a luz. Chegar num ponto em que, além dali, tentar mais alguma
coisa é gastar tempo e dinheiro. Ele percebia logo o que um ator podia render e
não exigia mais do que a pessoa podia dar. Também não é uma crítica ás pessoas:
cada um tem o seu limite. Era realmente muito rápido, e mais: escrevia cenas
muito fáceis de ser realizadas. Nada mirabolante. Ou seja, ele fazia o que o
povo da época gostava.
Para
quem teve uma cultivada fama de preguiçoso, é de admirar que além dos roteiros
que escreveu sob encomenda para diretores e produtores, ele tinha escrito e
dirigido seus próprios filmes, em quantidade apreciável mesmo para os padrões
da Boca. Entre seus filmes não há um estrondoso sucesso, mas consistentes
bilheterias, resultando numa folgada relação custo-benefício, tanto nos
investimentos financeiros quanto nos artísticos. Entre 1976 e 1983, Ody Fraga
filmou (escreveu e dirigiu) de dois a três filmes por ano, trabalhando com os
principais produtores da Boca do Lixo.
Ody
Fraga foi responsável pela iniciação profissional de Guilherme de Almeida
Prado, um dos mais talentosos realizadores da “segunda geração” da Rua do
Triunfo. Descendente da tradicional família paulista, Guilherme de Almeida
Prado (Ribeirão Preto, SP, 1942) formou-se em engenharia, mas desejava faze
cinema, atividade na qual já se havia exercitado quando estudante, na bitola
super-8. Foi levado à Boca do Lixo por Cláudio Portioli.
Segundo
Almeida Prado:
Ele me botou numa
produção do David Cardoso dirigida pelo Ody Fraga. Eu assinei como assistente
de direão, mas, naquele tempo, isso não existia. Nem o David Cardoso sabia o
que era assistente de direção. Eu sabia, porque tinha lido, estudado. Eles
precisavam era de um continuísta, queriam alguém que fizesse tudo. Eu lembro
que o Portioli falou pra mim: “Tudo o que eles perguntarem você diz que sabe,
que você faz. Depois me pergunta e eu te explico. Diz que faz tudo, depois a
gente resolve o que vai acontecer”. Eu lembro que a única coisa que eu não
topei foi fazer still (fotos de cena), porque detesto tirar fotografia. O Portioli
ficou furioso, porque ele tinha dito que eu fazia e, depois, ele teve que
fazer. Acabou fazendo direção de fotografia, câmera, e ainda fazia o still. O
filme chamava-se E agora, José?
Com
cabeça formada na engenharia, cinéfilo e estudioso, Guilherme implementaria,
como assistente de direção, certas práticas de organização e administração das
filmagens comuns em produções estruturadas, mas que não eram devidamente
realizadas na Boca do Lixo.
Prossegue
Guilherme de Almeida Prado:
O David Cardoso nunca tinha visto uma análise técnica, uma ordem do dia. Quando apareceu um cara que fazia ordem do dia, sabia fazer análise técnica, sabia o que era continuidade direitinho...Quando eu cheguei lá e fiz ordem do dia, todo mundo levou um susto. Depois o David Cardoso já queria que eu fizesse ordem do dia pra uma semana inteira seguinte, não só pro dia seguinte. O diretor de produção não sabia olhar análise técnica e entender. Então, eu fiz oito filmes em um ano e meio, na Boca (...).
O Ody foi o diretor com
quem eu fiz mais filmes, com quem eu tive um relacionamento mais próximo. Ele
era um personagem único. Estava sempre tirando sarro de tudo, a todo momento. O
Ody era uma pessoa que tinha, com certeza, um nível cultural um pouquinho acima
da Boca. E tinha bastante ascendência, tanto positiva como negativa. Só o fato
de ele ter dito (a um produtor) que o meu roteiro era maravilhoso, mas não era
comercial, matou o meu roteiro. E ele sabia que estava matando. (Na Boca) era
melhor ele falar que era uma droga, mas comercial, entendeu?
Esse
depoimento de Guilherme de Almeida Prado reitera duas ou três coisas que
ficamos sabendo sobre a Boca: o recrutamento era feito de modo a colocar as
pessoas em ação diante de problemas, para mostrarem se sabiam fazer ou não; a avaliação
de um projeto ou roteiro era francamente comercial; um produtor bem
estabelecido (para os padrões da Boca), como David Cardoso, não conhecia
análise técnica – uma prática comum de produção que organiza a filmagem, a
racionalidade das relações de trabalho, o uso de equipamentos, transporte etc.,
e, por consequência, administra a economia do filme. São fatores aparentemente
contraditórios, como quase tudo na Boca do Lixo: o sistema de produção era
conduzido por uma visão decisivamente comercial, mas não havia planejamento –
necessário a qualquer atividade econômica -, e o recrutamento da mão-de-obra
não passava por nenhum critério de competência.
A
atriz Matilde Mastrangi, que trabalhou em alguns filmes dirigidos por Ody, faz
interessantes revelações a respeito do seu cinema e do tipo de relações de
trabalho que ele mantinha. Nelas, mais uma vez, Walter Hugo Khouri surge como
referência:
Eu adorava o Ody, nunca
recusei um trabalho dele, trabalhamos muito juntos. (...) Eu gostava de
trabalhar com o Ody pela maneira de ele tratar a gente. (...) Quando escrevia
alguma coisa, ele me ligava para ver se eu queria fazer. Quando o produtor me
chamava e eu dizia que não ia fazer, o Ody me ligava, tentando me convencer.
(...) O Ody era um
intelectual, lia muito. Uma pessoa que sabia mais das coisas. Você pega um
roteiro dele e compara com um do Castillini, em concordância verbal, erro de
português...Os do Castillini, eu, que só tenho o ginásio, corrijo. Tem gente
que sabe e gente que se mete a fazer. O Khouri escrevia mais ou menos a mesma
coisa que o Ody escrevia, só que o Ody levava para o popular e o Khouri queria
fazer uma coisa mais elitizada. Mas o produto era a mesma coisa, o que mudava
era a embalagem. O Khouri também era intelectual, uma pessoa de bom gosto, com
uma estética diferente, mas ele fazia a mesma coisa que o Ody. Eu coloco os
dois no mesmo patamar.
Para
Luiz Castillini, Ody foi um mestre, com quem aprendeu, além da ironia, “a
enxergar cinema de verdade. Não o ABC, a coisa técnica, mas o que tem por trás
da técnica”. De fato, Ody Fraga enxergava por trás da técnica. Plenamente
consciente de seus instrumentos de trabalho e dotado de uma aguda visão social,
seus diagnósticos são sempre precisos, tanto a respeito das relações internas
ao cinema da Rua do Triunfo quanto deste com o cinema brasileiro e com o
Brasil, como se pode notar neste trecho da já mencionada entrevista concedida
por ele em 1982 (o ano em que estamos nesta narrativa):
Eu não tenho amor pela
Boca. Eu acho que ela está completando um ciclo; tem que mudar para outra fase,
senão vai morrer. Uma certa produção mais barata parece que está perdendo
lugar. Não só pela inflação geral e do cinema. Parece que o público está
solicitando uma coisa mais fina. Mais bem acabada. E esses filmes mais bem
acabados, mais interessantes, fazem puxar o resto para cinema (...) O problema
é o seguinte: a Boca tem que passar para sua segunda fase. A primeira fase, o
primeiro ciclo, já se completou.
Seu
diagnóstico, sem dúvida, detectava problemas estruturais da Boca naquele
momento. De fato, vivia-se então uma fase de esgotamento, tanto de um “estilo”
(práticas significantes) como de um “modo de produção” (práticas de produção),
centrados na fórmula erotismo + produção barata + título apelativo + divulgação
em mídias populares, que, com níveis diversos, se estabeleceu como modelo. Os
filmes não estariam acompanhando o que parecia ser uma elevação no nível de
exigência do público, o que era facilmente percebido, por um lado, pela queda
do movimento das bilheterias de modo geral e, por outro, pelo sucesso de
produtos com melhor embalagem.
Ody
Fraga- Porque a Boca dá uma idéia (de) que é um negócio meio anárquico, mas não
é. Ela criou um folclore próprio, uma mitologia própria. E a realidade dela é
outra. Sujeito menos avisado, que não penetra na coisa, chega na rua do Triunfo
e vê um pouco da casca do que já não é mais. Houve um tempo em que o folclore
disso era uma beleza. Hoje você não vê mais ninguém pela rua – o restaurante do
Serafim, o bar do Ferreira, aquilo tudo acabou. Esse folclore está acabando,
porque o tipo de produção que girava com esse folclore acabou. Um ciclo se
completou. O negócio de se fazer muitas fitinhas, de sexo só, vai acabar. O
sexo e a discussão sobre ele vão prosseguir numa segunda etapa.
FC- Qual vai ser essa
segunda etapa?
Ody Fraga- Vai ser o
seguinte: primeiro – melhor apuro de qualidade técnica de acabamento dos
filmes. Hoje não dá mais resultado, como aconteceria até cinco anos atrás,
investir um mínimo de dinheiro para tirar o máximo de resultado. Não está mais
correspondendo uma coisa com a outra. As fitas de acabamento marreta estão
dando resultados marretas e medíocres também. A Boca está atravessando, no
momento, um dos seus períodos de crise. Um dos seus períodos agônicos. A Boca
está em agonia. Eu aplico o agônico no sentido Unamuno (autor do ensaio A
agonia do cristianismo): é quando todo o organismo, todo ser, começa a se
convulsionar, a sofrer e entrar em pânico. A entrar em crise, não para morrer,
mas para passar a uma outra etapa. Nessa passagem, muita coisa fica pelo
caminho – a coisa não tem condição de sobrevivência mesmo. É bem – um pouco – a
luta do mais apto. Porque, num primeiro momento, teve gente que se beneficiou
de uma determinada situação. O gabarito mental era pequeno e eles tinham o
fôlego e o gabarito mental na mesma dimensão. No momento em que se amplia essa
dimensão, eles ficam mentalmente do mesmo tamanho. Não têm nada para crescer.
Não têm perspectiva, nem visão. Não têm abertura intelectual, abertura mental
para isso. Esse pessoal já está ficando no meio do caminho. (...) Hoje, estão
trabalhando os produtores que se estruturaram. Hoje, estão sobrevivendo na Boca
os empresários. O resto vai acabar. Em cinco anos não tem mais. Esse é o
negócio.
Publicado
originalmente em:
ABREU,
Nuno César. Boca do lixo: cinema e
classes populares. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006. Páginas 114 a
119.
Um comentário:
Ody Fraga,um dos mestres do cinema nacional.
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