segunda-feira, 9 de julho de 2018

O Imaginário da Boca parte III: a boca hoje


O Imaginário da Boca parte III: a boca hoje

A boca hoje

“...Muito forasteiro entrou no Soberano para comprar cigarro e acabou faturando um cachê numa ponta. Bastava dobrar a esquina da Boca para ter physique du rôle...” Marcos Rey

“Não adianta eu fabricar mocassins se o público quer calçar Vulcabrás. Então, eu não faço nem um, nem outro!”. (Oswaldo Massaini, fundador e diretor-presidente da Cinedistri).

Por Inimá Ferreira Simões
Seleção e transcrição: Matheus Trunk


O jovem executivo sente-se mal em plena rua movimentada. Para sua sorte está passando um amigo que resolve tudo com desembaraço. Diagnóstico – stress. Tratamento: “Instituto de Massagem”. Garças a este arranjo ficcional, o espectador está frente a uma das técnicas mais utilizadas pelo cinema – e não só nos filmes produzidos na Boca – para difundir marcas, divulgar nomes ou introduzir inovações. Claro que só raramente, o mecanismo fica tão exposto como nesse O Segredo das Massagistas, produção de Cassiano Esteves (da tradicional distribuidora Martes Filmes, dos filmes de Tarzan).

Vemos a fachada, a portaria, a marca do grupo que mantém o instituto e finalmente a câmera entra na casa, onde o ambiente é acolhedor e de bom gosto. De repente, a narrativa é suspensa e entram na tela imagens (de outro filme!) de uma cerimônia, e um senhor engravatado entrega a Mário Américo, massagista tricampeão pelo futebol brasileiro e atual vereador na capital, um troféu ou prêmio. Quem faz a entrega, ficamos sabendo, é o Dr. Newton Ribeiro, por coincidência incrível, proprietário do Instituto em que se dá a ação do filme.

As massagistas são simpáticas, alegres, joviais, sensíveis e compenetradas. A um avanço de um cliente excitado, elas charmosamente e com muita delicadeza tentam dissuadir o afoito. O jovem executivo está vivamente impressionado e pergunta à moça que lhe faz companhia: “Você é psicóloga?”. Tanta compreensão...empatia, sensibilidade...De qualquer forma, a presença da “confidente” parece acelerar seu processo de recuperação e logo, logo, ele já está à vontade para dizer à massagista que há muito tempo não via o sol nasceu ou uma rosa desabrochar. A atração entre os jovens vai num crescendo que obriga um supervisor a pigarrear seguidamente e até mesmo repreender carinhosamente a funcionária. E a história termina bem. Mas o que se divulga afinal?


Algumas possibilidades:

- cuidado com o stress. Ele pode derrubar qualquer pessoa, mesmo jovem, nessa vida agitada de cidade grade.
- diagnosticado o stress, é preciso acabar com a tensão. Um dos métodos mais eficazes é a massagem.
- as moças que trabalham nesse Instituto são simpáticas, bonitas, interessantes, inteligentes...
- uma academia de massagens não é nada daquilo que alguns jornais andaram comentando em época anterior ao lançamento do filme. Vê-se que é um ambiente de muito respeito, asséptico, de cores suaves e elegantes.
- pode-se até encontrar o amor...
- não esquecer aquele senhor que entregou os prêmios. É um empresário do ramo, tipo empreendedor...

Vale a pena destacar, além dos elementos já citados, a presença inevitável de mulheres bonitas transformadas em “garotas-propaganda” nesse filme assinado por Antonio B. Thomé. O Segredo das Massagistas não foi um sucesso excepcional de público mas mesmo assim deu lucro. E daria de qualquer maneira, pois os custos de produção foram reduzidos – filmagens rápidas, mão de obra mal remunerada – e já estavam parcialmente amortizadas a partir de associação entre produtor de cinema e Instituto de Massagem.

Dentre as estratégias colocadas em prática para reduzir os custos de produção, a mais destacada é a que incluí a participação de prefeituras do interior – hospedagem, alimentação e transporte para a equipe como mínimo oferecido – que, em troca, obtém algumas cenas do filme descrevendo as belezas locais. “Algumas vezes a compensação não se limita a uma simples citação nos letreiros, e a propaganda que se integra ao espetáculo: a câmera se demora um pouco mais sobre um produto qualquer, e os personagens conversam diante de uma agência bancária, de uma loja, de um hotel”.

Apelar para prefeituras do interior propicia, para as produtoras menores, um filão inexaurível – tantos são os municípios desse país. Provoca também atropelos na narrativa, situações absurdas, onde um corte interrompe o clímax dramático para mostrar uma placa relacionando os mais recentes feitos da administração local. Ou situações grotescas, como essa noticiada no jornal “Notícias Populares” de 31 de maio de 1976. Sob o título “Salto desperta com ‘Pesadelo Sexual’...”. Segundo a reportagem, o filme Pesadelo Sexual de Um Virgem, dirigido por Roberto Mauro, causou a maior polêmica no município por causa da participação de atores como o prefeito, o chefe de gabinete e o pároco local.

Além de obter recursos em setores alheios à atividade cinematográfica, o produtor pode também ceder participação ás empresas distribuidoras para tornar viável seu projeto. No momento em que a taxa inflacionária atinge índices elevados, o produtor se vê compelido a recuperar com rapidez ainda maior o seu investimento, na tentativa de evitar a corrosão dos lucros. Se tiver poder de barganha, vai utilizá-lo para colocar rapidamente seu filme no circuito exibidor. Mas a maioria vê-se obrigada a enfrentar os tortuosos caminhos da comercialização cinematográfica, que incluem a obtenção do certificado de censura federal, o acerto das porcentagens entre produtor/distribuidor/exibidor, preparação do material de propaganda, marcação de datas para lançamento – outra tragédia: e se o filme for lançado numa segunda-feira de carnaval? A saída então, para algumas empresas é uma só: vender a preço fixo. Numa aritmética simplista: se for gasto 1 milhão de cruzeiros, por exemplo, tenta-se vender por 3 milhões para o exibidor, e isso inclui a renúncia total aos direitos sobre o filme. O exibidor pode pagar e comercializá-lo durante os cinco anos de validade do certificado de censura, de acordo com sua política de obtenção de lucros. Mas e o produtor que vendeu? Consegue fazer outro filme? Pode ser que não.


Um raciocínio corrente é o seguinte: caso o produtor gaste no início do ano 3 milhões para fazer um filme que será lançado, se tudo correr normalmente, na segunda metade do semestre seguinte, o filme vai precisar, de acordo com os índices inflacionários, obter uma renda bruta de no mínimo 10 milhões de cruzeiros para o investidor reaver o que foi gasto, o que não é fácil! De acordo com “O desempenho do cinema brasileiro em 1979”, trabalho desenvolvido por Paulo Neves para o Sindicato dos Produtores do Rio de Janeiro, a indústria cinematográfica lançou comercialmente 109 filmes naquele ano. No seu relatório, apenas 14 alcançaram números superiores a 10 milhões de receita bruta. Vale destacar que pelo menos 6 são produção da Boca, e destes, a metade assinada por Antonio Polo Galante, filmes dos mais rentáveis da lista, que não custaram mais de 2 milhões de cruzeiros – valor abaixo do custo médio de um longa-metragem qualquer da mesma lista. Este raciocínio nos permite também concluir que o fator decisivo não é a renda bruta em si. A Batalha dos Guararapes pode ter obtido uma receita duas ou três vezes superior à de um filme produzido por Antonio Polo Galante, mas a vantagem se esvai se considerarmos que os custos são dez a quinze vezes maiores. Outro exemplo: Os Sete Gatinhos de Neville de Almeida e Convite ao Prazer dirigido por W.H. Khouri, foram lançados no primeiro semestre de 1980, em São Paulo e Rio. Embora não existam dados oficiais disponíveis, é permitido especular que o filme de Neville entre produção e promoção tenha resultado três vezes mais caro que o de Galante. O filme de Galante, antes de encerrar o primeiro semestre, já obtivera 33 milhões de cruzeiros – (4,5 milhões foi seu custo de produção). Está pago e dá lucro. De Os Sete Gatinhos não se pode dizer o mesmo.

Antonio Polo Galante foi e ainda é muito criticado. “Um comerciante” dizem...“um homem de muita sorte”...Há comentários sobre sua incrível sagacidade ou determinação em enriquecer. A sorte também não é esquecida na descrição de sua trajetória. Do seu escritório, pequeno, com duas salas e uma sacada, tem-se o melhor ponto de observação da rua do Triunfo. É um ambiente em tudo diferente de uma produtora tradicional como a Cinedistri, a poucos metros de distância. As instalações de Massaini são espaçosas, veem-se inúmeros funcionários, corredores, sala de troféus e finalmente ao fundo, a sala do fundador e diretor-presidente, forrada de comendas, diplomas, medalhas e fotos de atrizes e amigos famosos. O escritório de Galante poderia perfeitamente alojar uma imobiliária de bairro. Assistido por um ou dois ajudantes, ele dá ordens, telefona e ri quando se comenta sobre sua fama.

Antonio Polo Galante (Galante Produções Cinematográficas) é frequentemente citado como comerciante. E Galante concorda com isso?

“A minha origem foi triste e humilde. Eu tinha que ganhar meu dinheiro para manter a família, dar um padrão de vida e educar meus filhos. Uma das razões de desfazer a sociedade com o Alfredo Palácios foi que nós tínhamos concepções distintas. Eu era o comerciante e ele o político, Eu acho que cinema tem que ser comercial, senão você não aguenta. Veja que todas as produtoras faliram...Menos a Cinedistri que ganhou muito naquela época da chanchada da Atlântida...Eles montaram uma estrutura como agora eu montei a minha. Eu faço 2, 3 filmes e dificilmente vou quebrar por isso, porque tenho estúdios, equipamentos, as minhas fitas foram sempre bem e hoje eu pago todo mundo no caixa”.

Mas você não cede participação aos exibidores?

“Normalmente eu começo com o meu dinheiro. Cinema é uma roleta e você joga sempre no mesmo número, e se ele falha você vai a pique. O que eu faço e abro o jogo, porque o próprio exibidor sabe disso, é o seguinte: se um orçamento fica em 3 milhões eu forneço um de 6, porque ele é obrigado a pagar o meu know-how, que aprendi em mais de 20 anos de profissão. Então eu ofereço a fita para ele, desde que contenha, é claro, aquela coisa comercial que agrade, e ele aceita na base dos 5 ou 6. Eu tenho um certo crédito porque eu entrego o filme no prazo marcado, contrato profissionais responsáveis, pago à altura do que pedem e tenho o filme pronto para o dia que ele precisa para cumprir o decreto. Esse é o meu sucesso: 50%  do exibidor, 50% é Galante; quem paga a minha produção é o exibidor”.

Ody Fraga e Oswaldo de Oliveira dirigiram vários filmes dessa produção encomendada. São os profissionais em quem Galante confia. Terapia do Sexo foi, por exemplo, uma encomenda do exibidor com prazo marcado, que Ody deveria dirigir em 13 dias. Fez tudo em 14. O tipo do filme escrachado, com situações boladas na hora da filmagem, tudo em fundo infinito, acabamento precário, e ainda assim obteve renda bastante aceitável para a época de seu lançamento, em abril de 1978. Oswaldo de Oliveira (Carcaça) e Carlos Reichenbach, como Ody Fraga, trabalham para Galante nestas condições. Convidados para dirigir, veem-se obrigados a adaptar-se às condições concretamente oferecidas. Não já o que inventar. O roteiro está pronto, elenco escolhido e o prazo definido. Por isso; Jairo Ferreira chama a Produções Cinematográficas Galante de a RKO brasileira, epíteto que se torna mais adequado a partir da construção de três estúdios no bairro de Santana.

As ideias ou argumentos são extraídos de fontes diversas. No caso do ciclo Presídios (cinco filmes que realizou num curto intervalo de tempo: Escola Penal de Mulheres Violentadas; Internato de Meninas Virgens; Fugitivas Insaciáveis; Reformatório de Depravadas; Pensionato de Vigaristas...), o ponto de partida pode ser até banal: Galante ia ser produtor executivo de uma produtora alemã quem tencionava filmar no Brasil. Veio o diretor, alemão especializado em filmes de presídio, que lhe confessou durante um almoço: “o que dá dinheiro é grade e mulher nua atrás da grade”. Isso foi no Guarujá, enquanto procuravam locais para locação de um filme que não se realizou, dada a impossibilidade de trazer as atrizes e o equipamento. Galante não esqueceu o conselho. Redige, ele mesmo, um roteiro e inicia o ciclo com Presídio de Mulheres Violentadas...“Depois fiz Internato...Escola Penal...Pensionato e, já começou a cair a renda...Fugitivas Insaciáveis terá também um campo de concentração misto e renderá menos. Estes filmes não entram em grandes cinemas, mas têm carreira longa e garantida. Um dos filmes, por exemplo, custou mais ou menos 300 mil e rendeu mais de 6 milhões”. Ele diz que geralmente copia filmes estrangeiros. Vai ao cinema e vê alguma cena e a partir de rápida observação inventa um roteiro.


E o que dá renda hoje em dia?

“Meninas brincando de papai e mamãe. O pessoal, a classe C, se excita muito mais com isso do que com a simples visão de uma mulher nua...”.

Como se chega a essa conclusão?

“Indo ao cinema. Eu vejo muito a reação do público. O importante mesmo é a reação do público, do espectador, porque faço filmes para ele, para a massa. Você pode ver que o filme que fiz para a classe A – Guerra dos Pelados, por exemplo – só tinha homem...e eu me estrepei”.

Á maneira de Massaini, que tem nos filhos Aníbal e Oswaldinho os seus sucessores, Galante prepara o filho, estudante universitário “mais intelectual que negociante” para sucede-lo. O rapaz produziu em julho deste ano de 1980, um filme rodado em Iguape e dirigido por Carlos Reichenbach, e prometeu ao pai ia levar a coisa “a sério” e fazer uma fita para ganhar dinheiro.

Os problemas de sucessão já foram, há muito, resolvidos na Cinedistri, desde que Aníbal Massaini se revelou um produtor duplamente precoce. Eteriamente precoce, pois na época contava vinte e poucos anos, e cinematograficamente precoce, ao adotar o gênero erótico quando se associa à Sincro Filmes de Rovai, para rodar Lua de Mel e Amendoim, em 1970. Em seguida produziu, entre outros, A Infidelidade Ao Alcance de Todos; A Superfêmea; Cada Um Dá O Que Tem; Já Não se Faz Amor Como Antigamente; O Homem de Itu; Elas São do Baralho e recentemente Histórias Que As Nossas Babás Não Contavam.


“Mas o Aníbal vai fazer o seu Pagador de Promessas”, diz o pai, referindo-se ao melhor momento de sua carreira como produtor cinematográfico, ao mesmo tempo que professa alguma restrição ao tipo de cinema desenvolvido pelo filho. “Mas a culpa não é dele. A culpa é de quem vai ver...O importante para um produtor é saber o que o público quer ver. Não adianta eu fabricar mocassins, se o público quer calçar Vulcabrás. Então, eu não faço nem um nem outro”.

E prefere permanecer no terreno dos filmes “institucionais”. Primeiro Independência ou Morte, que motivou o presidente da época, General Médici, a convidar toda a equipe até Brasília para conhecê-la. Apresentados, Massaini e Médici conversaram o suficiente para o presidente opinar contrariamente sobre sua decisão de não mais produzir, e até ponderar: “Você ainda está moço para parar. Eu quero lhe sugerir um filme sobre os bandeirantes, porque a Transamazônica é uma bandeira do século XX...e eu gostaria que você filmasse os bandeirantes”. Massaini “ficou com aquilo na cabeça”, encomendou vários roteiros, e após uma seleção optou por Hernani Donato. Finalmente, em setembro de 1980, é lançado O Caçador de Esmeraldas.

Na sua definição, o produtor é um engenheiro: “o engenheiro da obra, que traça a planta do filme e depois contrata os profissionais para construí-la”. A respeito de sua hipotética acomodação ou falta de ousadia enquanto produtor, ele é taxativo: “o cinema é uma indústria caríssima que não tem valor intrínseco”.

Mas a Cinedistri atravessou bem os anos 70. Além de Independência ou Morte, que assume na Semana da Pátria a mesma função que Paixão de Cristo na Semana Santa, os outros projetos da empresa foram todos bem sucedidos comercialmente. Levando a marca do produto bem acabado, realizado por profissionais competentes, atores e atrizes de renome, os filmes de Aníbal (destaque para três: Elas São do Baralho, O Bem Dotado e As Histórias Que As Nossas Babás Não Contavam) revelam o cuidado em atentar para as oscilações de gosto e novidades do mercado. Agora com roupagens do “erotismo”, a Cinedistri faz valer a tradição conquistadas ainda na década de 50, quando produziu as comédias popularescas com Dercy Gonçalves, Arrelia, Costinha, Ankito e outros.

Tony Vieira, cujo nome verdade é Mauri Queiroz – daí as iniciais de sua produtora MQ: “Marca e Qualidade” – já fez de tudo na vida. Foi baleiro, trapezista, apresentador de circo, locutor de parque de diversões, animador dos programas de tele-catch na TV, e finalmente ator, diretor e produtor na Boca. Atravessou a década de 70 em atividade ininterrupta com Heitor Gaiotti, que faz sempre o papel de malandro cheio de ginga e bem humorado, enquanto ele é o eterno mocinho justiceiro.

Um dos primeiros trabalhos em cinema foi justamente o de ator em As Mulheres Amam por Conveniência, filme dirigido por Roberto Mauro e citado na introdução deste trabalho. É a história de um técnico de cinema abandonado pela atriz em favor de um fazendeiro, e que dando a volta por cima, torna-se diretor consagrado e reconquista a mulher. “Naquela época eu achei o filme razoável. A ideia do Roberto era fazer um drama em cima de um caso verídico que aconteceu a um amigo dele. Ainda nem se pensava em pornochanchada”.
Mas e o final, com o rapaz carregado em triunfo...?

“Aí acho que deve ter entrado a fantasia, ele deve ter fantasiado o final. Então o drama foi esse. Eu também fantasio nos meus filmes. Pego esses casos que acontecem por aí, casos verídicos, alguns até pego no DEIC e me baseio neles. Agora, tem que fantasiar, porque o que aconteceu realmente não funciona em cinema”.

E o Lúcio Flávio do Babenco?

“Aquilo está muito fantasiado...”

O esquema de produção de Tony Vieira é econômico e rentável o suficiente para continuar suas atividades. Acompanha de perto as reações do público frente aos filmes, e em função dela é que procura nortear seu trabalho. Mas por isso garante o sucesso.

“Vou dar um exemplo. A pior fita, a fita mais ordinária que eu já pude fazer foi Sob o Domínio do Sexo. Nesta fita eu tinha só 25% e foi feita em duas semanas, com catorze latas de negativo. Todo mundo na pior. Eu não tinha dinheiro, estava começando e foi tudo no sufoco...e foi a fita que mais rendeu, que mais deu o que falar. Tem até uma cena em que apareço dizendo “corta” e eu peguei aquilo e dublei outra coisa: ‘segue em frente’. No fim foi o maior sucesso, deu muito dinheiro. Então você vê, quando a gente pensa que sabe das coisas...depois eu melhorei, me aperfeiçoei, mas não fiz o mesmo sucesso de Sob o Domínio do Sexo. Quem pode explicar isso? Ninguém”.

Em situação mais sólida, pelo menos financeiramente, está a produtora de David Cardoso (Dacar), situada a alguns quarteirões da rua do Triunfo. Traz em seu currículo uma série de filmes bem sucedidos: na primeira fase de sucesso, que incluí A Ilha do Desejo, Amadas e Violentadas, contou com a colaboração decisiva de Jean Garrett; em junho de 1980 David voltou a bater recorde de renda no cine Marabá, uma das salas prediletas dos produtores da Boca. Localizada num ponto central da cidade (Av. Ipiranga quase esquina com São João), é com certeza a sala de maior renda média em todo país. Ali, A Noite das Taras atraiu verdadeiras multidões e confirmou definitivamente a vocação empresarial do “James Bond dos Pantanais”, como alguns o chamam. Atuando dentro dos limites precariamente demarcados da atual fase de liberalização da censura, o filme nos apresenta situações explícitas de sexo, condimentadas com cenas de lesbianismo, “fellatio”, etc...David cursou Direito, tirou brevê de piloto e encenou peça de muito sucesso junto ao público gay (ele aparecia praticamente nu). Periodicamente viaja ao exterior para se atualizar. Exibe ternos bem cortados, num inconfundível estilo ostentatório de quem precisa – a todo custo – se afirmar. Apoiado por empresários de São Paulo ou órgãos oficiais do Mato Grosso, exibindo em troca a paisagem do seu Estado, David tornou-se – interpretando o mocinho puro, forte, solidário e irresistível para as mulheres – uma marca de inegável sucesso no mercado. Tanto que frequentemente se confunde o ator/produtor com os personagens que interpreta. E a própria Dacar trata de misturar tudo.

A sinopse de 19 Mulheres e 1 Homem o demonstra:

“Enquanto David Cardoso vai lutando com os bandidos, os aviões vão pousando e resgatando as universitárias que conseguiram escapar daquele pesadelo tão intensamente vivido”. Vale o registro: o personagem tem o nome de Rubens.

Cláudio Cunha e Jean Garrett são outros nomes na galeria dos bem sucedidos. O primeiro, após um período de hesitação entre os negócios do posto de gasolina e as coisas do cinema, decide-se pela segunda atividade, onde obteve alguns êxitos expressivos de público: Sábado Alucinante, aproveitando a onda discoteque, Amada Amante e Vítimas do Prazer, organizando um esquema de apoio em torno do elenco formado por gente da TV – que lhe garante divulgação na revista “Amiga”. Posteriormente, associa-se a um grupo produtor e distribuidor, a Brasil Internacional Cinematográfica, que lhe garante uma infra-estrutura apreciável para viabilizar seus projetos.

Jean Garrett cumpriu trajetória extensa. Foi ator, assistente de produção em filmes de José Mojica Marins (Zé do Caixão), assistente de direção, diretor dos primeiros sucessos de David Cardoso, até sentir-se seguro para utilizar sua inegável habilidade em projetos próprios, o lhe rendeu bons resultados. Basta lembrar Excitação, Mulher, Mulher e A Força dos Sentidos.

Textos utilizados pelas produtoras para promoção de alguns filmes:

Mulher, Mulher conta a história de uma viúvas recente que parte para experiências sexuais as mais variadas, na tentativa de realização total e plena. Do arquivo de seu falecido marido, um psiquiatra, extrai as neuroses e fantasias dos relacionamentos mais diversos e dos estímulos sexuais mais diversificados. O lesbianismo, o masoquismo, o sadismo, a masturbação e até as taras por um animal de estimação, um cavalo, são vividas por Alice, o personagem central, em sua plenitude e numa linguagem direta, onde a câmara, despreocupada com a censura, documenta tudo sem nada encobrir, sem cortes, truques ou artifícios cinematográficos”.
(Mulher, Mulher – direção: Jean Garrett, MASP Filmes, 1979).

“Ao perpetuarmos e imagens cinematográficas os feitos heroicos de antepassados, estamos demonstrando porque nos orgulhamos de ser brasileiros”.
(O Caçador de Esmeraldas – produção: Oswaldo Massaini, Cinedistri, 1979).

“...19 universitárias após economizarem um ano, tentam alugar um ônibus para uma excursão de férias ao Paraguai...Auxiliado por dois meninos, David...consegue através de um rádio transmissor acionar seus amigos pilotos do Aero Clube, ao mesmo tempo que simula uma fuga para afastar os homens da fazenda, permitindo que os aviões pousem e salvem as jovens. Desta maneira, temos a mais espetacular sequencia que o cinema brasileiro conseguiu produzir e colocar nas telas, com a participação de quase vinte aviões e pilotos...”
(19 Mulheres e 1 Homem – direção: David Cardoso, Dacar, 1977)

“O elenco feminino deste filme foi formado com estudantes universitárias (sic) que nunca participaram de filmes, mas desempenharam seus papéis, tão perfeitos como as grandes atrizes.
Sinopse: Numa noite, uma discoteca de São Paulo foi atacada por uma quadrilha que tinha planos para traficar meninas para o exterior. Ameaçando todos os jovens, tirando mais de uma dezena de garotas, levando-as e aprisionando-as em um casarão abandonado. Passados alguns dias, foram colocadas em um caminhão-baú tomado rumo da Baixada Santista. Na Serra do Mar o caminhão foi atacado por uma quadrilha onde formaram um campo de batalha e durante este tiroteio algumas das meninas foram feridas mortalmente. Numa tarde a quadrilha juntamente com as meninas estava para sequestrar um veículo às margens da Via Anchieta para leva-las até o Paraguai, mas como os homens do Esquadrão já estavam na captura dos traficantes, onde travaram violento tiroteio, fizeram dos traficantes uns presuntos (sic) e outros presos. Trazendo as meninas para o Palácio da Justiça e em seguida devolvidas para seus familiares”.
(Tráfico de Fêmeas – direção: Agenor Alves, Astron Filmes, 1980).

A leitura dos textos é elucidativa. Ela indica não só a variedade de concepções presentes no conjunto da produção da Boca, como também traduz o imaginário próprio de cada filme, o subjacente processo alucinatório, claramente expostos nos press-releases enviados à imprensa. O primeiro exemplo nos traz o tratamento atualizado, contemporâneo, a suposta perda de preconceitos em favor daquilo que Foucault chamaria de positivismo decente. Em seguida vem o cinema-cívico de Oswaldo Massaini, que não dispensa os ingredientes do velho didatismo ginasiano. David Cardoso marca presença pela ostentação do novo rico. 19 Mulheres e 1 Homem se define pelo excesso de mulheres – quase vinte em generosa exposição anatômica – de lutas, explosões, de sadismo bandidal, etc. O congestionamento de situações transforma-se em densidade dramática. A caracterização tosca de personagens – universitárias em viagem de turismo ao Paraguai vivem emoções no pantanal – se transfigura em elemento de excitação sexual pois, a cada reação caprichosa das moças, corresponde um castigo exemplar imposto pelos meliantes. Com total apoio da plateia presente nos cinemas populares.

Tal reducionismo – as universitárias são mulheres mal acostumadas pela falta de um pulso firme – nem chega a ocorrer em Tráfico de Fêmeas. Aqui, a total ausência de recursos financeiros e humanos levou a uma manobra extra-cinematográfica ingênua, hoje em dia, pelo uso abusivo que se faz dela. Ao afirmas no texto de Tráfico...que o “elenco feminino desse filme foi formado por estudantes universitárias que nunca participaram de filmes, mas desempenharam seus papéis tão bem como as grandes atrizes” o que se pretende, além de insentar as moças pelos tropeços de interpretação, é misturar personagem como intérprete, no intuito de confundir o espectador. “Aquilo que se passa na tela ocorreu de verdade”.

As “estudantes universitárias” a que refere o texto de Tráfico de Fêmeas, são pessoas atraídas por anúncios convidativos, publicados com frequência nos jornais da cidade. A Astron Filmes e outras empresas, apresentam-se aos incautos oferecendo oportunidades para ingresso na carreira artística através do cinema. O interessado paga a matrícula, as fotos de que necessita para um estudo pormenizado de seu tipo e finalmente desembolsa mais algum dinheiro na formação de ator/atriz. Para se transformar, ao invés do artista, em mão-de-obra gratuita, contribuindo para reduzir ainda mais os custos de uma produção já barateada pelos acordos já firmados com boates, bares, transportadoras, hotéis, etc. Concluído o filme, ele é geralmente vendido a preço fixo, e, com o pequeno lucro obtido, a produtora prepara-se para nova arremetida em futuro próximo.

Agenor Alves e Tony Tornado, sócios na Astron Filmes, por ocasião do Tráfico..., não chegam sequer a lances originais. São inúmeros os exemplos de filmes realizados em passado segundo o mesmo figurino. Afinal, não mesmo José Mojica Marins (Zé do Caixão) escapou da síndrome das academias de intepretação. Se existe surpresa hoje em dia, ela fica por conta do caráter extemporâneo da proposta, numa época em que as condições de produção na Boca se distanciam cada vez mais do amadorismo, como argumenta J. Santana em sua coluna diária De Olho na Boca, publicada em Notícias Populares. Aproveitando a fórmula consagrada pelos colunistas de TV, Santana criou sua seção em junho de 1979 e nesse espaço, entre uma crônica e outra, dá notícias sobre a produção, divulga novidades, promove pessoas (ao falar insistentemente de algumas) e conta algumas fofofcas, estabelecendo uma comunicação entre os cineastas e o público.

Para ele, além de outros prejuízos, produções como Tráfico...terminam por ser nocivas a toda a comunidade cinematográfica, na medida em que ligam o cinema a situações que resvalam o trambique. “O passado”, diz Santana, “será a concentração, o número reduzido de empresas realizando filmes bem acabados e mais empenhados”.
                              
A Boca evoluiu, e seus porta-vozes procuram, na atualidade, difundir uma imagem de profissionalismo onde não existiria mais lugar para mocinhas ingênuas e dispostas a tudo por uma aparição momentânea. O tempo agora seria outro, a era dos profissionais, das atrizes reconhecidas nacionalmente como Aldine Muller ou Helena Ramos. Atrizes que durante anos a fio mal abriram a boca para algum diálogo, em razão da compulsoriedade da exposição anatômica, hoje em dia discutem salários, e exigem um tratamento à altura de suas famas. Atrizes que conseguem, como afirmou Galante referindo-se a Convite Ao Prazer, 100 ou 250 mil cruzeiros por filme.

Publicado originalmente em O imaginário da Boca, por Inimá Ferreira Simões. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos, 6)