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segunda-feira, 23 de julho de 2018

O Imaginário da Boca parte V: conclusões


O Imaginário da Boca parte V: conclusões

conclusões


Cinema em Close-Up tem os pés plantados na realidade de nosso cinema. Sua leitura foi recomendada para os alunos da USP”.
Paulo Emílio Salles Gomes – professor de cinema brasileiro/USP

“Sua carta, representa para nós, o reconhecimento oficial de Cinema em Close-Up. Muito obrigado pelo apoio”.

(Seção “Cartas na mesa” – Cinema em Close-Up, nº 10/1976).

Por Inimá Ferreira Simões
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

A resposta da revista à carta de Paulo Emílio, ultrapassa o mero formalismo para revelar, ainda que obliquamente, um tema tão irredutível quanto angustiante para a comunidade cinematográfica da rua do Triunfo e adjacências, e que fica claramente enunciado através da expressão-chave, reconhecimento oficial.

Que não se exijam definições, nem contornos exatos para esta expressão. Ao considerar a palavra de Paulo Emílio uma manifestação de reconhecimento oficial, a revista demonstra desconhecimento acerca da existência de correntes de pensamento divergentes, e comete assim o pecado da generalização indevida. Tal viés resulta, na verdade, de uma postura defensiva, de uma inferioridade em busca ansiosa pela legimitação oferecida pelo erudito, em detrimento de seu aliado natural, o grande público.

Como o reconhecimento oficial é servido em doses homeopáticas e a parcimônia é a condição fundamental para manter o prestígio de autoridade, de vez em quando, algum profissional é premiado. É o caso de Jean Garrett, hoje considerado pela crítica um cineasta confiável. Em função disso, a Boca elabora à sua maneira e para uso interno, a figura do self-made-man local. Esses personagens paradigmáticos, que se chamam Antonio Polo Galante, David Cardoso, Jean Garrett ou Cláudio Cunha, constituem os exemplos vivos para aplacamento das angústias locais, lembrando a todos que o sucesso financeiro existe, que é confortante e possível. Nesse contexto de fragilidade, não é de bom tom criticar algum filme produzido ali. Principalmente – gafe suprema! – se na argumentação forem citados Xica da Silva, Dona Flor ou Dama da Lotação, como exemplos do bom cinema brasileiro. A mágoa aflora de imediato e deflagra uma onda agressiva contra o que consideram tratamento do produto local. Bem feitas ou não, pornochanchadas ou não, o fato é que as lições desses “bons filmes brasileiros” frutificaram entre os próprios profissionais da rua do Triunfo. David Cardoso, por exemplo, tratou logo de rechear seus filmes com atores de renome e toda uma parafernália tecnológica, dentro dos padrões brasileiros é claro. Jean Garrett, mais recatado, permaneceu ao nível da encenação, cuidando do acabamento, caprichando na cenografia e transformando cada ambiente em sala de antiquário. E parece que valeu a pena o esforço, pois essas iniciativas provocam a admiração entre seus pares, ao mesmo tempo que têm um efeito psicológico positivo junto ao espectador, que acredita estar frente a filmes “bem feitos” e “bem acabados”...

Mas é em relação ao comportamento da crítica especializada que o caráter paradoxal do comportamento apresentado pelos profissionais da Boca alcança sua expressão mais acabada. É claro que a imprensa comete seus equívocos, seja por má consciência ou mesmo por desconhecer a realidade elementar da produção cinematográfica nacional, mas o que importa aqui é perceber qual o sentido do sentimento de injustiça que transparece nas ações e palavras dos profissionais de cinema. Um fotógrafo perguntava: será que eles, da crítica, sabem das nossas condições de trabalho? Sabem o que significa fazer um filme no prazo de 15 dias? Em geral, o profissional considera que se a crítica é “contra mim”, ela por extensão é também “contra a Boca”. Na hipótese do comentário favorável, então a crítica acertou e por isso “está comigo”, diferenciando-se de meus pares, ajudando a promover a carreira do filme.

Entre uma e outra situação, nunca se discute o papel da crítica, o porquê dela existir sob essa forma, qual a sua pertinência ou qual seria uma formulação mais adequada ás condições brasileiras.

É o pragmatismo, que permite superar todos esses “aparentes” paradoxos, que conduz a produção da Boca pelos caminhos da rentabilidade e da atualização constante com as “novidades” cinematográficas.

Ainda no primeiro semestre de 1980, quando surgiram os primeiros indícios da liberação do sexo explícito no cinema, os sismógrafos mais sensíveis detectaram um movimento trepidante na Boca, provocado pela reacomodação de suas camadas aos novos tempos das salas especiais e do sexo escancarado. Essa conduta pragmática impede que o espaço duramente ocupado no decorrer da década de 70, seja entregue de bandeja aos bagulhos de origem estrangeira à cata de novos mercados. Mesmo que a Boca adote as novas premissas do “realismo sexual” – e isso deverá vir com toda certeza – não ocorrerão alterações substanciais no seu sistema de relacionamento com o público, cujo contingente mais significativo é aquele que frequenta as grandes salas do centro tradicional de São Paulo.

A REPÚBLICA DO MARABÁ


Entre a Avenida São João, Largo do Paissandu, Praça da República e vizinhanças, acotovelaram-se dezenas de salas – Cines Ouro, Paissandu, Árcades, Rio Branco, Windsor, Art-Palácio, Ipiranga e outras – onde se destaca o velho Marabá, hoje o campeão nacional de renda média. Esses cinemas constituem o conduto básico por onde escoa o grosso da produção da Boca. Marcos Rey, romanista e autor de inúmeros roteiros filmados, na sua “ficção-memória” publicada na revista Oitenta, observa que “fila no Marabá diz mais que qualquer borderô. Se ela, no dia da estreia, chegar a vinte metros, a fita se paga. Se alcançar a praça da República é sucesso”.

O ambiente nesses cinemas – principalmente nas sessões vespertinas, quando a plateia é composta majoritariamente por desempregados, office-boys, comerciários, estudantes, soldados e homossexuais na batalha diária – é extremamente animado e ruidoso, em franca oposição ao silêncio habitual das salas elegantes da Av. Paulista e zona sul da cidade. Lembra a atmosfera densa do velho teatro de revista, que após um período esplendoroso nos anos 50, vive hoje uma fase de inevitável decadência.

Tanto no teatro de revista como nessas salas centrais da cidade, é possível assistir a dois espetáculos. Um que ocorre no palco/tela e outro que se desenvolve junto às cadeiras. A cada estímulo visual apresentado na tela, corresponde imediatamente um comentário – quase sempre de maneira jocosa. O tom de informalidade que marcava e ainda marca o nosso teatro de revista, foi o responsável pela comunicação fluente entre artista e público; aliás tão fluente que em inúmeras oportunidades estabeleciam-se diálogos inesperados entre uma vedete e o espectador mais afoito, com vantagens nítidas para a artista. Tal risco, o do espectador se sentir ridicularizado frente aos outros e eventualmente vem-se compelido a bater em retirada, não ocorre nas salas de cinema. É fácil entender porque. Além da impossibilidade física de um confronto verbal e eventualmente ver-se compelido a bater em retirada, não ocorre nas salas de cinema. É fácil entender porque. Além da impossibilidade física de um confronto verbal, adiciona-se o “fator sala escura” decisivo para a descontração e impunidade.

Nesses anos todos, o que se viu foi uma massa de espectadores que grita, fala, ri, “orienta” o galã empedernido, debocha da virgem resistente, caçoa do homossexual cheio de salamaleques e delira quando o garanhão irresistível “derrota” todos os esquemas defensivos da fêmea. E é fundamental que o herói corresponda ás expectativas, caso contrário, numa rápida operação, invertem-se os sinais e o garanhão passa a ser desprezado e merecedor da mais solene vaia. Como depositário de emoções e projeções individuais, tornadas coletivas no ambiente da sala de cinema, o personagem, tal qual o jogador de futebol em dia de clássico, não pode falhar. Entre o gol feito (ou a mulher que se rende incondicionalmente) e o gol perdido (falta de eficiência ou habilidade para “ganhar” a fêmea e confirmar a sua superioridade), está a distância que separa o êxito do fracasso.

O aficionado pela pornochanchada (ele existe sim!)  se sensibiliza ao perceber do outro lado, por detrás daquelas imagens projetadas na tela, alguém que compartilha o mesmo código e que possui habilidade suficiente para enfiar cada cena no seu “lugar privilegiado” e no momento exato, evitando frustrações desnecessárias. De maneira semelhante ao fãzoca do faroeste americano, que preencheu suas fantasias com imagens na tela, o espectador do Marabá é conivente com a liturgia desencadeada, cúmplice do garanhão e solidário com as soluções dramáticas.

Como naquele papo de bar, com aquelas velhas piadas recicladas e relatos de conquistas, atribulações com maridos e pais enraivecidos, a pornochanchada exige de que se dispõe a assisti-la, uma adesão incondicional. Adesão liberta de critérios de veracidade (para efeito dos papos de boteco) ou de verossimilhança (para os filmes).

O fato do desempenho sexual de Lírio – personagem central de O Bem Dotado – desconsiderar os limites da fisiologia humana, não tem a menor importância. Da mesma forma que o revólver de seis tiros, que dispara oito ou nove vezes sem recarregar, nunca afugentou o “curtidor” do faroeste. Nesse contexto, o desenvolvimento da trama ou a originalidade da história contada importa pouco. O que vale é histrionismo, a versão mais rica em detalhes – obtida a partir de uma decupagem, que frequentemente “esquarteja” os corpos para tratamento fetichista – e o corpo da mulher nua apoiado na oposição libertinagem/puritanismo, como ilustra Elas São do Baralho. Desta oposição, do princípio dos contrastes e das expressões de duplo sentido, é que boa parte dos filmes retira sua pimenta.

O Bem Dotado (Homem de Itu)


O Bem Dotado conta a história de um matuto ituano “descoberto” ao acaso por duas grã-finas da capital que fazem compras na cidade. Numa butique conhecem Lírio, o bem dotado, e sua condição excepcional, que vai torna-lo o centro de uma série de peripécias sexuais, envolvendo preferencialmente mulheres da alta sociedade paulistana. Ainda que se possa estabelecer algum parentesco com o romance picaresco, a verdade é que a história apenas se aproveita de um tipo extravagante para desenrolar uma série de sketches, piadinhas de bar, aquelas que por mais que sejam contadas e recontadas – em estágio de desgaste total – ainda conseguem obter alto IBOPE junto à clientela masculina.

O filme, como outros do gênero erótico, se vale de casuísmos para montar o desenvolvimento da trama. Não há necessidade de algo concatenado ou que justifique cuidadosamente. O encontro de Lírio com as madames ocorre ocasionalmente. A descoberta de seu traço inconfundível, o órgão sexual de dimensões inusitadas, também. Após a sua idade para a cidade grande, desfilam na tela carros de luxo, casas com piscina e quadras de tênis, mordomos uniformizados, trajes noturnos sofisticados, enfim, aquilo considerado pertinente ao universo do milionário paulistano.

O Homem de Itu é o nosso super-herói. Enquanto na versão americana op homem-de-aço prefere voar, carregando sua namoradinha, o bem dotado, malandro brasileiro, “sabedor das coisas”, prefere mostrar seus poderes no espaço limitado dos lençóis. Nele se manifesta uma potência ilimitada, acompanhada de uma configuração insólita. De caipirão ingênuo e meio bobo se transforma num articulado homem da cidade, vestindo roupas bem cortadas, e portanto uma dose de malícia que lhe assegura bom contato com as fêmeas, que tanto fazem juz à mística da instituição feminina, que correm sôfregas atrás dele. Trajetória semelhante à do rapaz, percorreu boa parte do público que frequenta com regularidade os filmes rotulados de pornochanchada, formando um contingente razoável de paulistanos de primeira geração. Muitos tomaram o mesmo, sentido campo-cidade. Eis a identificação. O público – irônico né? – ri da ingenuidade do caipira e “curte” deliciosamente as peripécias do urbanoide.

Numa determinada sequencia, a mulher rica e passional (Marlene França) está com Lírio (Nuno Leal Maia) quando inesperadamente chega o marido. Ele entra em casa enquanto uma música sugere suspense. Para no hall, olha para cima onde ficam os quartos e...desce até a cozinha para beber um copo de água. Volta ao hall, e após uma breve hesitação começa a subir as escadas. Neste instante há um corte, e vemos o casal dentro do quarto, lá mesmo onde são surpreendidos com a chegada inesperada do marido. O público torce pelo herói. Afinal houve uma preparação, um encaminhamento para o clímax através da música, da montagem que, se tem por finalidade aumentar a expectativa quanto à solução do episódio, não chega a diminuir a certeza de que Lírio vai se sair bem da enrascada. Caso contrário, o filme se “estragaria”. Pois bem, o marido entra, empunha um revólver e diz seriamente: “vou vender, eu não uso mesmo”. Delírio absoluto na plateia.

Essas imagens e tantas outras, vistas com alta frequência nos filmes originários da Boca, nos levam a concluir pela prevalência das soluções mágicas, seja através do prêmio lotérico, do casamento com viúva rica ou ainda por meio de alguma característica inequivocamente distintiva em relação ao grupo social. Bem ao contrário, pelo menos à primeira vista, do que preza a ética do faroeste onde o que se testemunha é a premiação do esforço individual, o castigo inevitável para o transgressor das normas, nas imagens que subsidiam o velho sonho americano. O esforço individual que nos mostra o cinema americano – sem ser o privilégio do faroeste – é o instrumento básico para a ascensão social, reservando ao indivíduo médio o papel de herói virtual dentro do sonho igualitário que não encontra, de maneira alguma, ressonância entre nós.

Se o cinema é o sonho coletivo, a projeção de toda uma comunidade, o estudo da dramatização e dos papéis sociais dos personagens da pornochanchada e outros filmes provenientes da rua do Triunfo, deve ser elucidativo para o entendimento das fantasias e projeções que compõe a auto-imagem dos próprios cineastas. Da mesma forma que Lírio em O Bem Dotado, Rubens (David Cardoso) em 19 Mulheres e 1 Homem, os tipos gaiatos interpretados por Heitor Gaiotti ou ainda a própria encarnação do herói “Boca do Lixo” que é Tony Vieira, são personagens muito marcados por características fortemente arraigadas no imaginário popular, em relação às quais seus criadores, os cineastas, não possuem a distância que querem aparentar. Embora, nas entrevistas, valorizem explicitamente o esforço, o trabalho, o estudo, o comportamento ético, como fatores responsáveis pelo sucesso, os profissionais de cinema se projetam num tipo bem marcado de herói, cuja atuação se reduz ao exercício da sagacidade ingênua e à prática da zombaria – em linha com o mito de Pedro Malazartes, o herói brasileiro por excelência e portador de imenso carisma para o grande público.

Mas a zombaria e a sagacidade, de acordo com o padrão malazarteano, são na verdade as armas de quem não tem pretensões de modificar o mundo social. O que vale é sobreviver da melhor maneira possível e nisso consiste a grande semelhança estrutural entre o comportamento dos cineastas e seus personagens.

A maioria dos cineastas e técnicos formou-se na prática, na “universidade da vida” – como gosta de dizer um veterano maquinista. Talvez isso explique, ao menos parcialmente, a ausência de um senso crítico mais acurado e consistente. A compreensão crítica do próprio trabalho ameaçaria a segurança de cada um. Torna-se então necessário manter a todo custo uma aparente harmonia, como maneira própria de enfrentar o mundo exterior, este sim, hostil e a exigir muita atenção e energia. A ocasião para o enfrentamento pode surgir com a presença de um pesquisador de cinema, de um jornalista desconhecido ou até mesmo de um recém-formado no curso de cinema da Universidade. O fechamento dessa comunidade em si mesma – cujo sintoma mais evidente é a síndrome da orfandade – é defensivo, mas não tático. A Boca não é uma entidade em busca da formulação de seus próprios códigos e esquemas de pressão, embora os realize na prática. A atitude defensiva, reconheçamos, não é muito estremada para quem desconfia que a história do cinema brasileiro vai passar a muitos quarteirões da rua do Triunfo. Da mesma maneira como evitou as chanchadas há 30 anos atrás.

A prioridade neste território é demonstrar, com todos os sinais disponíveis, a competência em ganhar dinheiro, a única forma entrevista por eles de obter prestígio e destaque pessoal, deslocando-se do anonimato em direção a uma personalidade própria e ativa. A “síndrome da orfandade” atinge em cheio o profissional da Boca que “vê” os cineastas de fora do seu território obtendo as benesses do Estado, a simpatia da crítica e outras vantagens. Esta constatação orienta a opinião dos profissionais, de maneira muito clara em relação a alguns temas:

- A questão da cultura ou do filme cultural: é de responsabilidade do governo ou de profissionais e empresas que podem se dar ao luxo de mobilizar recursos, investir em projetos cujo retorno possa ser problemático. Filme cultural (filme histórico, documentário, ou qualquer trabalho de comercialização problemática) não faz parte de suas prioridades. O que conta é divertir, oferecer entretenimento e não levar prejuízo...Assim, numa visão dicotômica, uma noção de cultura aparece totalmente desvinculada da diversão, da alegria, do lucro, etc.

- O crítico: a crítica notoriamente hostil é vista como reduto de filhinhos de papai, de gente despreparada ou cineastas frustrados, que compensam suas amarguras detratando os outros.

- Subir na vida: sobe na vida ou tem sucesso na carreira quem se dedica com afinco a tal empresa. Mesmo que para isso seja preciso associar-se a exibidores e distribuidores para obter vantagens no mercado, mesmo que pagando mal à equipe e exigindo o máximo no tempo mais reduzido possível.

O fracasso é também uma prerrogativa individual e deve-se a fatores como resistência ao aprendizado, não reconhecimento dos movimentos de gosto, dificuldade em atualizar-se, descuido na formação pessoal, falta de jeito mesmo, ou até excesso de bebida. Vitória ou fracasso são expressão de características individuais e o fracassado reconhece, neste contexto, sua inaptidão.

Para entender melhor esse universo basta citar o processo de seleção de equipes, cujos critérios informais favorecem “quem bebe pouco” ou não bebe (e que é mais flexível ás imposições do produtor), em prejuízo do que cobra mais pelo seu serviço ou tem fama de “bom copo”.

Nunca se pergunta ou se tenta entender porque se bebe muito, por exemplo, apesar de algumas explicações à mão: o técnico que trabalha ás vezes em jornadas superiores a 10, 12 horas seguidas, em condições frequentemente ruins (chuva, sol inclemente, frio), sem roupa protetora ou seguro contra acidentes, apela para a bebida.

- A evolução do gosto: é tida como um processo natural, que não se explica porque é eterno, sempre foi assim. Galante entende que a fase atual, bem ao gosto do início da década é o “papai-e-mamãe” entre mulheres. Por isso, o fundamental é estar ligado às novidades e novas soluções e apenas restringir-se a administrar com eficiência os novos dados e elementos impostos pelo mercado.
  

Nesse contingente formado por ex-malabaristas, ex-balconistas, ex-internos da FEBEM, ex-jóqueis, ex-demonstradoras de perucas Kanekalon, etc...o caso de Rajá de Aragão é exemplar. Ele foi jóquei, desenhista, aventurou-se pela África, Europa, Estados Unidos e México, ficou preso na penitenciária do Estado, escreveu sobre cinema em jornal de São Paulo e foi, nos últimos anos, um dos roteiristas mais filmados de São Paulo. Pelo menos 25 roteiros em três anos. É uma pessoa que se vê além da regulamentação burocrática da vida:

“O personagem no cinema brasileiro geralmente não tem vida própria. Ele transmite ao espectador a sua dor, a sua alegria, a sua satisfação enfim. Na cena de espancamento de Chico, no meu filme O Dia das Profissionais, o lance é tão violento que o espectador tinha a impressão de estar sendo espancado também. É onde o espectador vive o drama daquele personagem. Então, é necessário que o diretor coloque a prostituta com seu problema, e que o sujeito comece a perceber... ‘mas espera lá’. Agora, quando faço uma fita determinada, o que não admito é personagem vazio; ele tem que ter alguma razão para fazer aquela coisa. Alguém tem que pesquisar a mente desse personagem para justificar as razões por que ele faz aquilo. Também não vai sair defendendo o personagem, fazendo o Lampião sempre mocinho, porque ele era o grande f.d.p., entende? Porque todo ladrão, toda vez que vai para o cinema é herói, pombas! Herói o c..., pombas! Vivi no meio deles. Tinha que ser fuzilados, a maior parte deles, como vários que eu conheci. Cometem atos que não têm recuperação, e ainda vai dar de comer para um cara que está gordo, jogando futebol na cadeia? Não, tinha que ser executado sem processo, sem nada. Então, toda vez que se adapta a vida de um criminoso para o cinema fazem ele um herói, cheio de justificativas, foi porque a polícia espancou o pai, não sei o que mais, etc. Uma série de coisas, razões sociais. Ora pombas! Se razões sociais fizessem de um sujeito um marginal, todo favelado tinha que ser marginal. E quase todo brasileiro é favelado!

A grande cartada do cinema brasileiro chama-se Brigite Monfort; personagem do livro de bolso mais vendido do Brasil, uma espécie de 007, uma agente da CIA...na capa vem escrito Lou Carrigan, mas é escrito aqui mesmo pelo Hélio do Soveral. Brigite Monfort talvez fosse a grande cacetada do cinema brasileiro; está aí, debaixo dos olhos de todo mundo e o produtor brasileiro não vê, ele prefere fazer O Bem Dotado, Os Depravados, Reformatório das Depravadas e por aí afora. O produtor diz que o que dá dinheiro é mulher nua. Aí você assiste a uma fita do Sam Packimpah (Comboio), com 85 caminhões desfilando entrada à frente e você me diz – o sujeito quer ver mulher nua ou ver caminhão? O público quer ver uma boa fita e não simplesmente mulher nua.

- Eu aprendi a escrever sozinho; aprendi a fazer roteiro sozinho. Tentei música e foi a mesma coisa, você vê, sou letrista e faço música intuitivamente, quer dizer, de ouvido. O que eu aprendi foi por mim, mas eu trago do útero – assim falando pode até parecer cabotino – um QI alto! Eiu sou lay-out man por questão de criação, não sou um grande arte finalista porque não tive burilamento técnico. Mas a criação não me falta! Agora eu pergunto: qual o ex-marginal do mundo que faz o que eu faço? Eu sou um caso excepcional. Não sirvo de julgamento. Se eu, que até há quatro anos atrás estava num presídio, e agora sou um profissional de cinema devidamente registrado, com vários trabalhos que atestam o meu currículo, eu não posso me tomar por base...”

O indivíduo bem sucedido, e aqui a história de Antonio Polo Galante é o melhor exemplo (de garoto que cresceu no recolhimento de menores e chegou à condição de produtor-símbolo, de homem de prestígio), ilustra a trajetória idealizada por todos. O movimento de “sair lá de baixo”, sem crédito pessoal algum, e por seu esforço chegar “lá em cima”, se restringe ao êxito comercial. Dele – do êxito comercial – decorreriam todas as outras vantagens, como o respeito, a atenção especial, o reconhecimento dos colegas, a admiração dos fãs, etc; mesmo aquele que falha que não rejeita a concepção. Apenas introjeta o fracasso, sente-se incompetente ou despreparado ou ainda sem chances para provar sua capacidade.

Ser bem sucedido na carreira significa (atenção: As Mulheres Amam p-or Conveniência) obter uma avant-première com todos se vestindo a rigor. Ser bem sucedido é ser carregado pelos fãs. Ser bem sucedido não dispensa – e isso é fundamental – o testemunho de alguém que compartilhou os tempos difíceis ou que não acreditou nos eu potencial. Caso tenha sido uma mulher, que o trocou por outro homem mais bem sucedido na ocasião, a “vingança” torna-se então completa. Uma solução de acordo com a filosofia estampada naqueles plásticos que se veem em taxis ou asfixiados em padarias e bares, onde se lê: “Que Deus dê longa vida aos meus inimigos, para que eles possam assistir de pé à minha vitória”.

Pois é, a vida é uma guerra, o dia-a-dia uma batalha, e os “outros” os meus inimigos...

Em As Mulheres Amam por Conveniência, a primeira parte corresponde às filmagens onde o rapaz se vê abandonado pela atriz que preferiu ficar com o fazendeiro que hospedou a equipe. Aqui temos um material baseado, segundo depoimento de Tony Vieira, em um fato verídico. A solução final, se dá fantasiosamente. Quer dizer: as dificuldades, os percalços na carreira, embora sejam problemas reais, não compõe matéria dramática para os filmes. “É preciso fantasiar, porque o que aconteceu realmente não funciona em cinema”.

Publicado originalmente em O Imaginário da Boca, por Inimá Ferreira Simões. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos, 6)

segunda-feira, 9 de julho de 2018

O Imaginário da Boca parte III: a boca hoje


O Imaginário da Boca parte III: a boca hoje

A boca hoje

“...Muito forasteiro entrou no Soberano para comprar cigarro e acabou faturando um cachê numa ponta. Bastava dobrar a esquina da Boca para ter physique du rôle...” Marcos Rey

“Não adianta eu fabricar mocassins se o público quer calçar Vulcabrás. Então, eu não faço nem um, nem outro!”. (Oswaldo Massaini, fundador e diretor-presidente da Cinedistri).

Por Inimá Ferreira Simões
Seleção e transcrição: Matheus Trunk


O jovem executivo sente-se mal em plena rua movimentada. Para sua sorte está passando um amigo que resolve tudo com desembaraço. Diagnóstico – stress. Tratamento: “Instituto de Massagem”. Garças a este arranjo ficcional, o espectador está frente a uma das técnicas mais utilizadas pelo cinema – e não só nos filmes produzidos na Boca – para difundir marcas, divulgar nomes ou introduzir inovações. Claro que só raramente, o mecanismo fica tão exposto como nesse O Segredo das Massagistas, produção de Cassiano Esteves (da tradicional distribuidora Martes Filmes, dos filmes de Tarzan).

Vemos a fachada, a portaria, a marca do grupo que mantém o instituto e finalmente a câmera entra na casa, onde o ambiente é acolhedor e de bom gosto. De repente, a narrativa é suspensa e entram na tela imagens (de outro filme!) de uma cerimônia, e um senhor engravatado entrega a Mário Américo, massagista tricampeão pelo futebol brasileiro e atual vereador na capital, um troféu ou prêmio. Quem faz a entrega, ficamos sabendo, é o Dr. Newton Ribeiro, por coincidência incrível, proprietário do Instituto em que se dá a ação do filme.

As massagistas são simpáticas, alegres, joviais, sensíveis e compenetradas. A um avanço de um cliente excitado, elas charmosamente e com muita delicadeza tentam dissuadir o afoito. O jovem executivo está vivamente impressionado e pergunta à moça que lhe faz companhia: “Você é psicóloga?”. Tanta compreensão...empatia, sensibilidade...De qualquer forma, a presença da “confidente” parece acelerar seu processo de recuperação e logo, logo, ele já está à vontade para dizer à massagista que há muito tempo não via o sol nasceu ou uma rosa desabrochar. A atração entre os jovens vai num crescendo que obriga um supervisor a pigarrear seguidamente e até mesmo repreender carinhosamente a funcionária. E a história termina bem. Mas o que se divulga afinal?


Algumas possibilidades:

- cuidado com o stress. Ele pode derrubar qualquer pessoa, mesmo jovem, nessa vida agitada de cidade grade.
- diagnosticado o stress, é preciso acabar com a tensão. Um dos métodos mais eficazes é a massagem.
- as moças que trabalham nesse Instituto são simpáticas, bonitas, interessantes, inteligentes...
- uma academia de massagens não é nada daquilo que alguns jornais andaram comentando em época anterior ao lançamento do filme. Vê-se que é um ambiente de muito respeito, asséptico, de cores suaves e elegantes.
- pode-se até encontrar o amor...
- não esquecer aquele senhor que entregou os prêmios. É um empresário do ramo, tipo empreendedor...

Vale a pena destacar, além dos elementos já citados, a presença inevitável de mulheres bonitas transformadas em “garotas-propaganda” nesse filme assinado por Antonio B. Thomé. O Segredo das Massagistas não foi um sucesso excepcional de público mas mesmo assim deu lucro. E daria de qualquer maneira, pois os custos de produção foram reduzidos – filmagens rápidas, mão de obra mal remunerada – e já estavam parcialmente amortizadas a partir de associação entre produtor de cinema e Instituto de Massagem.

Dentre as estratégias colocadas em prática para reduzir os custos de produção, a mais destacada é a que incluí a participação de prefeituras do interior – hospedagem, alimentação e transporte para a equipe como mínimo oferecido – que, em troca, obtém algumas cenas do filme descrevendo as belezas locais. “Algumas vezes a compensação não se limita a uma simples citação nos letreiros, e a propaganda que se integra ao espetáculo: a câmera se demora um pouco mais sobre um produto qualquer, e os personagens conversam diante de uma agência bancária, de uma loja, de um hotel”.

Apelar para prefeituras do interior propicia, para as produtoras menores, um filão inexaurível – tantos são os municípios desse país. Provoca também atropelos na narrativa, situações absurdas, onde um corte interrompe o clímax dramático para mostrar uma placa relacionando os mais recentes feitos da administração local. Ou situações grotescas, como essa noticiada no jornal “Notícias Populares” de 31 de maio de 1976. Sob o título “Salto desperta com ‘Pesadelo Sexual’...”. Segundo a reportagem, o filme Pesadelo Sexual de Um Virgem, dirigido por Roberto Mauro, causou a maior polêmica no município por causa da participação de atores como o prefeito, o chefe de gabinete e o pároco local.

Além de obter recursos em setores alheios à atividade cinematográfica, o produtor pode também ceder participação ás empresas distribuidoras para tornar viável seu projeto. No momento em que a taxa inflacionária atinge índices elevados, o produtor se vê compelido a recuperar com rapidez ainda maior o seu investimento, na tentativa de evitar a corrosão dos lucros. Se tiver poder de barganha, vai utilizá-lo para colocar rapidamente seu filme no circuito exibidor. Mas a maioria vê-se obrigada a enfrentar os tortuosos caminhos da comercialização cinematográfica, que incluem a obtenção do certificado de censura federal, o acerto das porcentagens entre produtor/distribuidor/exibidor, preparação do material de propaganda, marcação de datas para lançamento – outra tragédia: e se o filme for lançado numa segunda-feira de carnaval? A saída então, para algumas empresas é uma só: vender a preço fixo. Numa aritmética simplista: se for gasto 1 milhão de cruzeiros, por exemplo, tenta-se vender por 3 milhões para o exibidor, e isso inclui a renúncia total aos direitos sobre o filme. O exibidor pode pagar e comercializá-lo durante os cinco anos de validade do certificado de censura, de acordo com sua política de obtenção de lucros. Mas e o produtor que vendeu? Consegue fazer outro filme? Pode ser que não.


Um raciocínio corrente é o seguinte: caso o produtor gaste no início do ano 3 milhões para fazer um filme que será lançado, se tudo correr normalmente, na segunda metade do semestre seguinte, o filme vai precisar, de acordo com os índices inflacionários, obter uma renda bruta de no mínimo 10 milhões de cruzeiros para o investidor reaver o que foi gasto, o que não é fácil! De acordo com “O desempenho do cinema brasileiro em 1979”, trabalho desenvolvido por Paulo Neves para o Sindicato dos Produtores do Rio de Janeiro, a indústria cinematográfica lançou comercialmente 109 filmes naquele ano. No seu relatório, apenas 14 alcançaram números superiores a 10 milhões de receita bruta. Vale destacar que pelo menos 6 são produção da Boca, e destes, a metade assinada por Antonio Polo Galante, filmes dos mais rentáveis da lista, que não custaram mais de 2 milhões de cruzeiros – valor abaixo do custo médio de um longa-metragem qualquer da mesma lista. Este raciocínio nos permite também concluir que o fator decisivo não é a renda bruta em si. A Batalha dos Guararapes pode ter obtido uma receita duas ou três vezes superior à de um filme produzido por Antonio Polo Galante, mas a vantagem se esvai se considerarmos que os custos são dez a quinze vezes maiores. Outro exemplo: Os Sete Gatinhos de Neville de Almeida e Convite ao Prazer dirigido por W.H. Khouri, foram lançados no primeiro semestre de 1980, em São Paulo e Rio. Embora não existam dados oficiais disponíveis, é permitido especular que o filme de Neville entre produção e promoção tenha resultado três vezes mais caro que o de Galante. O filme de Galante, antes de encerrar o primeiro semestre, já obtivera 33 milhões de cruzeiros – (4,5 milhões foi seu custo de produção). Está pago e dá lucro. De Os Sete Gatinhos não se pode dizer o mesmo.

Antonio Polo Galante foi e ainda é muito criticado. “Um comerciante” dizem...“um homem de muita sorte”...Há comentários sobre sua incrível sagacidade ou determinação em enriquecer. A sorte também não é esquecida na descrição de sua trajetória. Do seu escritório, pequeno, com duas salas e uma sacada, tem-se o melhor ponto de observação da rua do Triunfo. É um ambiente em tudo diferente de uma produtora tradicional como a Cinedistri, a poucos metros de distância. As instalações de Massaini são espaçosas, veem-se inúmeros funcionários, corredores, sala de troféus e finalmente ao fundo, a sala do fundador e diretor-presidente, forrada de comendas, diplomas, medalhas e fotos de atrizes e amigos famosos. O escritório de Galante poderia perfeitamente alojar uma imobiliária de bairro. Assistido por um ou dois ajudantes, ele dá ordens, telefona e ri quando se comenta sobre sua fama.

Antonio Polo Galante (Galante Produções Cinematográficas) é frequentemente citado como comerciante. E Galante concorda com isso?

“A minha origem foi triste e humilde. Eu tinha que ganhar meu dinheiro para manter a família, dar um padrão de vida e educar meus filhos. Uma das razões de desfazer a sociedade com o Alfredo Palácios foi que nós tínhamos concepções distintas. Eu era o comerciante e ele o político, Eu acho que cinema tem que ser comercial, senão você não aguenta. Veja que todas as produtoras faliram...Menos a Cinedistri que ganhou muito naquela época da chanchada da Atlântida...Eles montaram uma estrutura como agora eu montei a minha. Eu faço 2, 3 filmes e dificilmente vou quebrar por isso, porque tenho estúdios, equipamentos, as minhas fitas foram sempre bem e hoje eu pago todo mundo no caixa”.

Mas você não cede participação aos exibidores?

“Normalmente eu começo com o meu dinheiro. Cinema é uma roleta e você joga sempre no mesmo número, e se ele falha você vai a pique. O que eu faço e abro o jogo, porque o próprio exibidor sabe disso, é o seguinte: se um orçamento fica em 3 milhões eu forneço um de 6, porque ele é obrigado a pagar o meu know-how, que aprendi em mais de 20 anos de profissão. Então eu ofereço a fita para ele, desde que contenha, é claro, aquela coisa comercial que agrade, e ele aceita na base dos 5 ou 6. Eu tenho um certo crédito porque eu entrego o filme no prazo marcado, contrato profissionais responsáveis, pago à altura do que pedem e tenho o filme pronto para o dia que ele precisa para cumprir o decreto. Esse é o meu sucesso: 50%  do exibidor, 50% é Galante; quem paga a minha produção é o exibidor”.

Ody Fraga e Oswaldo de Oliveira dirigiram vários filmes dessa produção encomendada. São os profissionais em quem Galante confia. Terapia do Sexo foi, por exemplo, uma encomenda do exibidor com prazo marcado, que Ody deveria dirigir em 13 dias. Fez tudo em 14. O tipo do filme escrachado, com situações boladas na hora da filmagem, tudo em fundo infinito, acabamento precário, e ainda assim obteve renda bastante aceitável para a época de seu lançamento, em abril de 1978. Oswaldo de Oliveira (Carcaça) e Carlos Reichenbach, como Ody Fraga, trabalham para Galante nestas condições. Convidados para dirigir, veem-se obrigados a adaptar-se às condições concretamente oferecidas. Não já o que inventar. O roteiro está pronto, elenco escolhido e o prazo definido. Por isso; Jairo Ferreira chama a Produções Cinematográficas Galante de a RKO brasileira, epíteto que se torna mais adequado a partir da construção de três estúdios no bairro de Santana.

As ideias ou argumentos são extraídos de fontes diversas. No caso do ciclo Presídios (cinco filmes que realizou num curto intervalo de tempo: Escola Penal de Mulheres Violentadas; Internato de Meninas Virgens; Fugitivas Insaciáveis; Reformatório de Depravadas; Pensionato de Vigaristas...), o ponto de partida pode ser até banal: Galante ia ser produtor executivo de uma produtora alemã quem tencionava filmar no Brasil. Veio o diretor, alemão especializado em filmes de presídio, que lhe confessou durante um almoço: “o que dá dinheiro é grade e mulher nua atrás da grade”. Isso foi no Guarujá, enquanto procuravam locais para locação de um filme que não se realizou, dada a impossibilidade de trazer as atrizes e o equipamento. Galante não esqueceu o conselho. Redige, ele mesmo, um roteiro e inicia o ciclo com Presídio de Mulheres Violentadas...“Depois fiz Internato...Escola Penal...Pensionato e, já começou a cair a renda...Fugitivas Insaciáveis terá também um campo de concentração misto e renderá menos. Estes filmes não entram em grandes cinemas, mas têm carreira longa e garantida. Um dos filmes, por exemplo, custou mais ou menos 300 mil e rendeu mais de 6 milhões”. Ele diz que geralmente copia filmes estrangeiros. Vai ao cinema e vê alguma cena e a partir de rápida observação inventa um roteiro.


E o que dá renda hoje em dia?

“Meninas brincando de papai e mamãe. O pessoal, a classe C, se excita muito mais com isso do que com a simples visão de uma mulher nua...”.

Como se chega a essa conclusão?

“Indo ao cinema. Eu vejo muito a reação do público. O importante mesmo é a reação do público, do espectador, porque faço filmes para ele, para a massa. Você pode ver que o filme que fiz para a classe A – Guerra dos Pelados, por exemplo – só tinha homem...e eu me estrepei”.

Á maneira de Massaini, que tem nos filhos Aníbal e Oswaldinho os seus sucessores, Galante prepara o filho, estudante universitário “mais intelectual que negociante” para sucede-lo. O rapaz produziu em julho deste ano de 1980, um filme rodado em Iguape e dirigido por Carlos Reichenbach, e prometeu ao pai ia levar a coisa “a sério” e fazer uma fita para ganhar dinheiro.

Os problemas de sucessão já foram, há muito, resolvidos na Cinedistri, desde que Aníbal Massaini se revelou um produtor duplamente precoce. Eteriamente precoce, pois na época contava vinte e poucos anos, e cinematograficamente precoce, ao adotar o gênero erótico quando se associa à Sincro Filmes de Rovai, para rodar Lua de Mel e Amendoim, em 1970. Em seguida produziu, entre outros, A Infidelidade Ao Alcance de Todos; A Superfêmea; Cada Um Dá O Que Tem; Já Não se Faz Amor Como Antigamente; O Homem de Itu; Elas São do Baralho e recentemente Histórias Que As Nossas Babás Não Contavam.


“Mas o Aníbal vai fazer o seu Pagador de Promessas”, diz o pai, referindo-se ao melhor momento de sua carreira como produtor cinematográfico, ao mesmo tempo que professa alguma restrição ao tipo de cinema desenvolvido pelo filho. “Mas a culpa não é dele. A culpa é de quem vai ver...O importante para um produtor é saber o que o público quer ver. Não adianta eu fabricar mocassins, se o público quer calçar Vulcabrás. Então, eu não faço nem um nem outro”.

E prefere permanecer no terreno dos filmes “institucionais”. Primeiro Independência ou Morte, que motivou o presidente da época, General Médici, a convidar toda a equipe até Brasília para conhecê-la. Apresentados, Massaini e Médici conversaram o suficiente para o presidente opinar contrariamente sobre sua decisão de não mais produzir, e até ponderar: “Você ainda está moço para parar. Eu quero lhe sugerir um filme sobre os bandeirantes, porque a Transamazônica é uma bandeira do século XX...e eu gostaria que você filmasse os bandeirantes”. Massaini “ficou com aquilo na cabeça”, encomendou vários roteiros, e após uma seleção optou por Hernani Donato. Finalmente, em setembro de 1980, é lançado O Caçador de Esmeraldas.

Na sua definição, o produtor é um engenheiro: “o engenheiro da obra, que traça a planta do filme e depois contrata os profissionais para construí-la”. A respeito de sua hipotética acomodação ou falta de ousadia enquanto produtor, ele é taxativo: “o cinema é uma indústria caríssima que não tem valor intrínseco”.

Mas a Cinedistri atravessou bem os anos 70. Além de Independência ou Morte, que assume na Semana da Pátria a mesma função que Paixão de Cristo na Semana Santa, os outros projetos da empresa foram todos bem sucedidos comercialmente. Levando a marca do produto bem acabado, realizado por profissionais competentes, atores e atrizes de renome, os filmes de Aníbal (destaque para três: Elas São do Baralho, O Bem Dotado e As Histórias Que As Nossas Babás Não Contavam) revelam o cuidado em atentar para as oscilações de gosto e novidades do mercado. Agora com roupagens do “erotismo”, a Cinedistri faz valer a tradição conquistadas ainda na década de 50, quando produziu as comédias popularescas com Dercy Gonçalves, Arrelia, Costinha, Ankito e outros.

Tony Vieira, cujo nome verdade é Mauri Queiroz – daí as iniciais de sua produtora MQ: “Marca e Qualidade” – já fez de tudo na vida. Foi baleiro, trapezista, apresentador de circo, locutor de parque de diversões, animador dos programas de tele-catch na TV, e finalmente ator, diretor e produtor na Boca. Atravessou a década de 70 em atividade ininterrupta com Heitor Gaiotti, que faz sempre o papel de malandro cheio de ginga e bem humorado, enquanto ele é o eterno mocinho justiceiro.

Um dos primeiros trabalhos em cinema foi justamente o de ator em As Mulheres Amam por Conveniência, filme dirigido por Roberto Mauro e citado na introdução deste trabalho. É a história de um técnico de cinema abandonado pela atriz em favor de um fazendeiro, e que dando a volta por cima, torna-se diretor consagrado e reconquista a mulher. “Naquela época eu achei o filme razoável. A ideia do Roberto era fazer um drama em cima de um caso verídico que aconteceu a um amigo dele. Ainda nem se pensava em pornochanchada”.
Mas e o final, com o rapaz carregado em triunfo...?

“Aí acho que deve ter entrado a fantasia, ele deve ter fantasiado o final. Então o drama foi esse. Eu também fantasio nos meus filmes. Pego esses casos que acontecem por aí, casos verídicos, alguns até pego no DEIC e me baseio neles. Agora, tem que fantasiar, porque o que aconteceu realmente não funciona em cinema”.

E o Lúcio Flávio do Babenco?

“Aquilo está muito fantasiado...”

O esquema de produção de Tony Vieira é econômico e rentável o suficiente para continuar suas atividades. Acompanha de perto as reações do público frente aos filmes, e em função dela é que procura nortear seu trabalho. Mas por isso garante o sucesso.

“Vou dar um exemplo. A pior fita, a fita mais ordinária que eu já pude fazer foi Sob o Domínio do Sexo. Nesta fita eu tinha só 25% e foi feita em duas semanas, com catorze latas de negativo. Todo mundo na pior. Eu não tinha dinheiro, estava começando e foi tudo no sufoco...e foi a fita que mais rendeu, que mais deu o que falar. Tem até uma cena em que apareço dizendo “corta” e eu peguei aquilo e dublei outra coisa: ‘segue em frente’. No fim foi o maior sucesso, deu muito dinheiro. Então você vê, quando a gente pensa que sabe das coisas...depois eu melhorei, me aperfeiçoei, mas não fiz o mesmo sucesso de Sob o Domínio do Sexo. Quem pode explicar isso? Ninguém”.

Em situação mais sólida, pelo menos financeiramente, está a produtora de David Cardoso (Dacar), situada a alguns quarteirões da rua do Triunfo. Traz em seu currículo uma série de filmes bem sucedidos: na primeira fase de sucesso, que incluí A Ilha do Desejo, Amadas e Violentadas, contou com a colaboração decisiva de Jean Garrett; em junho de 1980 David voltou a bater recorde de renda no cine Marabá, uma das salas prediletas dos produtores da Boca. Localizada num ponto central da cidade (Av. Ipiranga quase esquina com São João), é com certeza a sala de maior renda média em todo país. Ali, A Noite das Taras atraiu verdadeiras multidões e confirmou definitivamente a vocação empresarial do “James Bond dos Pantanais”, como alguns o chamam. Atuando dentro dos limites precariamente demarcados da atual fase de liberalização da censura, o filme nos apresenta situações explícitas de sexo, condimentadas com cenas de lesbianismo, “fellatio”, etc...David cursou Direito, tirou brevê de piloto e encenou peça de muito sucesso junto ao público gay (ele aparecia praticamente nu). Periodicamente viaja ao exterior para se atualizar. Exibe ternos bem cortados, num inconfundível estilo ostentatório de quem precisa – a todo custo – se afirmar. Apoiado por empresários de São Paulo ou órgãos oficiais do Mato Grosso, exibindo em troca a paisagem do seu Estado, David tornou-se – interpretando o mocinho puro, forte, solidário e irresistível para as mulheres – uma marca de inegável sucesso no mercado. Tanto que frequentemente se confunde o ator/produtor com os personagens que interpreta. E a própria Dacar trata de misturar tudo.

A sinopse de 19 Mulheres e 1 Homem o demonstra:

“Enquanto David Cardoso vai lutando com os bandidos, os aviões vão pousando e resgatando as universitárias que conseguiram escapar daquele pesadelo tão intensamente vivido”. Vale o registro: o personagem tem o nome de Rubens.

Cláudio Cunha e Jean Garrett são outros nomes na galeria dos bem sucedidos. O primeiro, após um período de hesitação entre os negócios do posto de gasolina e as coisas do cinema, decide-se pela segunda atividade, onde obteve alguns êxitos expressivos de público: Sábado Alucinante, aproveitando a onda discoteque, Amada Amante e Vítimas do Prazer, organizando um esquema de apoio em torno do elenco formado por gente da TV – que lhe garante divulgação na revista “Amiga”. Posteriormente, associa-se a um grupo produtor e distribuidor, a Brasil Internacional Cinematográfica, que lhe garante uma infra-estrutura apreciável para viabilizar seus projetos.

Jean Garrett cumpriu trajetória extensa. Foi ator, assistente de produção em filmes de José Mojica Marins (Zé do Caixão), assistente de direção, diretor dos primeiros sucessos de David Cardoso, até sentir-se seguro para utilizar sua inegável habilidade em projetos próprios, o lhe rendeu bons resultados. Basta lembrar Excitação, Mulher, Mulher e A Força dos Sentidos.

Textos utilizados pelas produtoras para promoção de alguns filmes:

Mulher, Mulher conta a história de uma viúvas recente que parte para experiências sexuais as mais variadas, na tentativa de realização total e plena. Do arquivo de seu falecido marido, um psiquiatra, extrai as neuroses e fantasias dos relacionamentos mais diversos e dos estímulos sexuais mais diversificados. O lesbianismo, o masoquismo, o sadismo, a masturbação e até as taras por um animal de estimação, um cavalo, são vividas por Alice, o personagem central, em sua plenitude e numa linguagem direta, onde a câmara, despreocupada com a censura, documenta tudo sem nada encobrir, sem cortes, truques ou artifícios cinematográficos”.
(Mulher, Mulher – direção: Jean Garrett, MASP Filmes, 1979).

“Ao perpetuarmos e imagens cinematográficas os feitos heroicos de antepassados, estamos demonstrando porque nos orgulhamos de ser brasileiros”.
(O Caçador de Esmeraldas – produção: Oswaldo Massaini, Cinedistri, 1979).

“...19 universitárias após economizarem um ano, tentam alugar um ônibus para uma excursão de férias ao Paraguai...Auxiliado por dois meninos, David...consegue através de um rádio transmissor acionar seus amigos pilotos do Aero Clube, ao mesmo tempo que simula uma fuga para afastar os homens da fazenda, permitindo que os aviões pousem e salvem as jovens. Desta maneira, temos a mais espetacular sequencia que o cinema brasileiro conseguiu produzir e colocar nas telas, com a participação de quase vinte aviões e pilotos...”
(19 Mulheres e 1 Homem – direção: David Cardoso, Dacar, 1977)

“O elenco feminino deste filme foi formado com estudantes universitárias (sic) que nunca participaram de filmes, mas desempenharam seus papéis, tão perfeitos como as grandes atrizes.
Sinopse: Numa noite, uma discoteca de São Paulo foi atacada por uma quadrilha que tinha planos para traficar meninas para o exterior. Ameaçando todos os jovens, tirando mais de uma dezena de garotas, levando-as e aprisionando-as em um casarão abandonado. Passados alguns dias, foram colocadas em um caminhão-baú tomado rumo da Baixada Santista. Na Serra do Mar o caminhão foi atacado por uma quadrilha onde formaram um campo de batalha e durante este tiroteio algumas das meninas foram feridas mortalmente. Numa tarde a quadrilha juntamente com as meninas estava para sequestrar um veículo às margens da Via Anchieta para leva-las até o Paraguai, mas como os homens do Esquadrão já estavam na captura dos traficantes, onde travaram violento tiroteio, fizeram dos traficantes uns presuntos (sic) e outros presos. Trazendo as meninas para o Palácio da Justiça e em seguida devolvidas para seus familiares”.
(Tráfico de Fêmeas – direção: Agenor Alves, Astron Filmes, 1980).

A leitura dos textos é elucidativa. Ela indica não só a variedade de concepções presentes no conjunto da produção da Boca, como também traduz o imaginário próprio de cada filme, o subjacente processo alucinatório, claramente expostos nos press-releases enviados à imprensa. O primeiro exemplo nos traz o tratamento atualizado, contemporâneo, a suposta perda de preconceitos em favor daquilo que Foucault chamaria de positivismo decente. Em seguida vem o cinema-cívico de Oswaldo Massaini, que não dispensa os ingredientes do velho didatismo ginasiano. David Cardoso marca presença pela ostentação do novo rico. 19 Mulheres e 1 Homem se define pelo excesso de mulheres – quase vinte em generosa exposição anatômica – de lutas, explosões, de sadismo bandidal, etc. O congestionamento de situações transforma-se em densidade dramática. A caracterização tosca de personagens – universitárias em viagem de turismo ao Paraguai vivem emoções no pantanal – se transfigura em elemento de excitação sexual pois, a cada reação caprichosa das moças, corresponde um castigo exemplar imposto pelos meliantes. Com total apoio da plateia presente nos cinemas populares.

Tal reducionismo – as universitárias são mulheres mal acostumadas pela falta de um pulso firme – nem chega a ocorrer em Tráfico de Fêmeas. Aqui, a total ausência de recursos financeiros e humanos levou a uma manobra extra-cinematográfica ingênua, hoje em dia, pelo uso abusivo que se faz dela. Ao afirmas no texto de Tráfico...que o “elenco feminino desse filme foi formado por estudantes universitárias que nunca participaram de filmes, mas desempenharam seus papéis tão bem como as grandes atrizes” o que se pretende, além de insentar as moças pelos tropeços de interpretação, é misturar personagem como intérprete, no intuito de confundir o espectador. “Aquilo que se passa na tela ocorreu de verdade”.

As “estudantes universitárias” a que refere o texto de Tráfico de Fêmeas, são pessoas atraídas por anúncios convidativos, publicados com frequência nos jornais da cidade. A Astron Filmes e outras empresas, apresentam-se aos incautos oferecendo oportunidades para ingresso na carreira artística através do cinema. O interessado paga a matrícula, as fotos de que necessita para um estudo pormenizado de seu tipo e finalmente desembolsa mais algum dinheiro na formação de ator/atriz. Para se transformar, ao invés do artista, em mão-de-obra gratuita, contribuindo para reduzir ainda mais os custos de uma produção já barateada pelos acordos já firmados com boates, bares, transportadoras, hotéis, etc. Concluído o filme, ele é geralmente vendido a preço fixo, e, com o pequeno lucro obtido, a produtora prepara-se para nova arremetida em futuro próximo.

Agenor Alves e Tony Tornado, sócios na Astron Filmes, por ocasião do Tráfico..., não chegam sequer a lances originais. São inúmeros os exemplos de filmes realizados em passado segundo o mesmo figurino. Afinal, não mesmo José Mojica Marins (Zé do Caixão) escapou da síndrome das academias de intepretação. Se existe surpresa hoje em dia, ela fica por conta do caráter extemporâneo da proposta, numa época em que as condições de produção na Boca se distanciam cada vez mais do amadorismo, como argumenta J. Santana em sua coluna diária De Olho na Boca, publicada em Notícias Populares. Aproveitando a fórmula consagrada pelos colunistas de TV, Santana criou sua seção em junho de 1979 e nesse espaço, entre uma crônica e outra, dá notícias sobre a produção, divulga novidades, promove pessoas (ao falar insistentemente de algumas) e conta algumas fofofcas, estabelecendo uma comunicação entre os cineastas e o público.

Para ele, além de outros prejuízos, produções como Tráfico...terminam por ser nocivas a toda a comunidade cinematográfica, na medida em que ligam o cinema a situações que resvalam o trambique. “O passado”, diz Santana, “será a concentração, o número reduzido de empresas realizando filmes bem acabados e mais empenhados”.
                              
A Boca evoluiu, e seus porta-vozes procuram, na atualidade, difundir uma imagem de profissionalismo onde não existiria mais lugar para mocinhas ingênuas e dispostas a tudo por uma aparição momentânea. O tempo agora seria outro, a era dos profissionais, das atrizes reconhecidas nacionalmente como Aldine Muller ou Helena Ramos. Atrizes que durante anos a fio mal abriram a boca para algum diálogo, em razão da compulsoriedade da exposição anatômica, hoje em dia discutem salários, e exigem um tratamento à altura de suas famas. Atrizes que conseguem, como afirmou Galante referindo-se a Convite Ao Prazer, 100 ou 250 mil cruzeiros por filme.

Publicado originalmente em O imaginário da Boca, por Inimá Ferreira Simões. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos, 6)


segunda-feira, 2 de julho de 2018

O Imaginário da Boca parte II: o cinema da rua do Triunfo


O Imaginário da Boca parte II: o cinema da rua do Triunfo

O cinema da rua do Triunfo

Por Inimá Ferreira Simões
Seleção e transcrição: Matheus Trunk


“Era eu à porta do Soberano. O Soberano, bar-restaurante, é na rua do Triunfo. A rua do Triunfo é em São Paulo, CEP 01212. Alguns chamam a do Triunfo de ‘a nossa Hollywood’...Lá se enfileiram todas as empresas cinematográficas paulistanas, mais o Soberano, o Hotel Copa do Mundo e os últimos bares da cidade ainda servidos por garçonetes...” REY, Marcos. O rei da pornochanchada. In: Oitenta. Porto Alegre, LPM, 1980. P. 91-101.

“A Boca existe, e uma das possibilidades de apreendê-la é conhecer sua localização geográfica. É a mesma paisagem que circunda qualquer terminal rodoviário ou ferroviário das grandes cidades brasileiras...Tudo sugere decadência, marginalidade e um certo mistério...Então subitamente, cruza-se com uma carroça de madeira onde se que equilibram dezenas de latas de filmes. E os homens que a empurram poderiam ser confundidos com mendigos. Mas são os que levam os filmes para a Estação Rodoviária (e Ferroviária), constituindo um dos elos da distribuição cinematográfica do país: são os estivadores do cinema”.

Dessa maneira se inicia o texto de um audiovisual elaborado pelo IDART sobre a chamada “Boca de Cinema” de São Paulo, o tradicional reduto do comércio distribuidor, transformando na década de 70 em núcleo mais atuante da produção cinematográfica nacional. Para quem chega pela primeira vez à rua do Triunfo, a impressão certamente não é das melhores. Os botecos, inferninhos suarentos, hotéis de alta rotatividade e a falta típica que gravita em torno desses lugares, podem sugerir ao olhar ingênuo uma imediata relação de causa e efeito com a pornochanchada. Trata-se do primeiro e grave engano. Explica-se.

A localização da “Boca” neste pedaço da cidade obedeceu motivos puramente estratégicos. Desde os tempos da Distribuidora Matarazzo (responsável pelos Programas Matarazzo), que mantinha um escritório na Rua General Osório, lá pelos anos 20, ouve-se falar de cinema por ali. Na década seguinte, os lucros obtidos pelas importadoras brasileiras se multiplicaram em razão do crescente mercado cinematográfico brasileiro (em especial o paulista), o que levou os estúdios americanos a cuidarem de sua própria distribuição.

Oswaldo Massaini, fundador e diretor-presidente da Cinedistri conhece a região desde 1937, quando ingressou no cinema através de um cargo de auxiliar de contabilidade nos escritórios da Distribuidora Brasileira de Filmes. Ele se lembra das filiais da Fox, Universal, Columbia, RKO-Radio, United, Paramount. A maioria dos escritórios ficava nas proximidades das estações ferroviárias, para facilitar a remessa dos filmes que embarcavam para o interior e estados vizinhos como Mato Grosso, Minas, Goiás e Paraná, alcançados, naquela época, pelo trem. Muito antes então do bairro de Santa Efigênia tomar a configuração atual, ali estavam as empresas ligadas ao comércio cinematográfico. Portanto, o cinema chegou antes.

Na verdade, “A Boca de Cinema” pode ser identificada com a rua do Triunfo, onde funciona o centro das atividades, um edifício de 10 andares completamente tomado por escritórios, e cujos elevadores transportam gente e latas de filmes. Produtoras, empresas de distribuição, os sindicatos- dos Produtores, Exibidores e mais recentemente, uma sala do Sindicato dos Atores e Técnicos (que timidamente procura agir na Boca), a sede da APACI – Associação Paulista dos Cineastas, Federação dos Cineclubes e outras entidades. Em volta do prédio e nas ruas próximas se espalham mais escritórios, lojas vendendo equipamento para as salas de cinemas, oficinas de manutenção e reparos e pequenos “estúdios” de fundo de quintal, onde se fabricam e constroem equipamentos. Na esquina da Rua do Triunfo com Vitória está a filial da Embrafilme.

Os bares merecem um parágrafo à parte. É neles que, durante uma refeição à base de PF (prato feito) um maquinista ou eletricista pode arrumar trabalho para as semanas seguintes sem garantias de continuidade, o que significa, na prática, longos períodos de inatividade a então garantir ao balconista o pagamento das contas penduradas. Atores, mocinhas, acreditando no estrelato cinematográfico, figurantes, “profissionais”, produtores, jornalistas, fotógrafos, todos se encontram ali. Pode ser o Soberano ou o Bar do Ferreira. O primeiro mais tradicional e testemunhou praticamente todos os momentos de euforia e depressão dos últimos 15 anos. Ao final da tarde os bares ficam cheios de gente e chega o momento da troca de informações. Desde “dicas” sobre uma nova produção que pode dar emprego a alguns, até projetos secretos ou fofocas sobre alguma ocorrência nas filmagens.

Voltando a Oswaldo Massaini – o mais antigo personagem local – e seu início de carreira, vale lembrar que ele monta sua própria empresa em 1949, após trabalhar e conviver longo período com Adhemar Gonzaga e a Cinédia. A Cinedistri inicia suas atividades limitando-se à distribuição, e dois anos depois muda-se para a rua do Triunfo, ponto de concentração do comércio cinematográfico. Decorrem mais três anos e Massaini se lança à empreitada mais ambiciosa: a produção. Gradativamente a Cinedistri torna-se uma das empresas cinematográficas mais sólidas do país.


Numa perspectiva distanciada percebe-se o quanto, nos anos 50 e início da década seguinte, o cinema era compartimentado. Na rua do Triunfo ficava o comércio, a distribuição. Longe dali, na rua Sete de Abril, em frente ao Edifício dos Diários Associados que obrigava a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) e o Museu da Arte de São Paulo, ficava o bar “Costa do Sol” onde sentavam-se críticos, diretores, enfim, a “nata” do cinema. A divisão rigorosa começa a ser abolida a partir de 1967/1968, momento em que chegam diretores e produtores para cuidar da venda de seus filmes e terminam por se instalar ali mesmo na Boca. Caso de Luiz Sérgio Person, diretor de “São Paulo SA” (1965), que circula pela rua do Triunfo e posteriormente abre o escritório de sua produtora e distribuidora. Ali produz A Moreninha (1970) e O Caso dos Irmãos Neves (1967). Ozualdo Candeias, depois de fazer na base da amizade e poucos recursos o seu filme A Margem (1967) também passa a circular pelo Soberano e imediações. E Mojica (o Zé do Caixão), que ora monta sua escolinha de atores na Casa Verde, ora na Mooca ou Lapa, é figura constante no local.

A mudança do SAC e do Museu de Arte de São Paulo para outros pontos na cidade marca o final de uma época. E o início de outra, em que a Boca vai assumir papel central no cinema paulista. Por volta de 1967, 1968 o Soberano começa a receber estudantes de cinema, aficionados, fotógrafos e jornalistas que vão constituir o núcleo do chamado “Cinema da Boca do Lixo” (ou cinema udigrudi ou ainda cinema marginal), precocemente interrompido. Jairo Ferreira, que durante anos exerceu a crítica na “Folha de São Paulo”, participava desse grupo junto a Antônio Lima, então no “Jornal da Tarde”, Carlos Reichenbach Filho, João Callegaro, Carlos Ebert, José Agripino, J.S. Trevisan e outros. Era um pessoal jovem, não identificado com as ideias dos medalhões que viam na Boca o lugar do comércio e por isso mesmo indigno de recebe-los. Para os moços, dispostos a viabilizar suas ideias, o que importava era que ali se fazia cinema. Em meio às discussões no Soberano chegaram a postular uma estética da Boca do Lixo e redigir o manifesto do cinema cafajeste, um documento que não chegar a ter maior expressão, mas que contém ideias que serão aperfeiçoadas e transformadas nas imagens de O Bandido da Luz Vermelha dirigido por Rogério Sganzerla, hoje o clássico do movimento Boca do Lixo.

É preciso ressaltar que antes da chegada desses jovens já se produzia muito na Boca. A Cinedistri, que no início de carreira se dedicara a comédias ligeiras com Dercy Gonçalves, Ankito ou Arrelia, adquire prestígio em 1957 a partir do sucesso de crítica obtido com Absolutamente Certo e a consagração definitiva cinco anos mais tarde, quando a mesma dupla Massaini-Anselmo Duarte realiza O Pagador de Promessas, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1962.

Foi a época de ouro da Cinedistri. Os jornais publicavam diariamente novos projetos da empresa e as opiniões de Oswaldo Massaini, a esta altura já transformado em líder da classe. Cada lançamento de filme era um acontecimento social na cidade: bandas uniformizadas à porta dos cinemas, presença de autoridades, o traje de gala, etc. Sem falar dos réveillons promovidos na residência dos Massaini, que provocavam verdadeiro frisson, pelo menos nas colunas sociais, tanto os nomes famosos que participavam. A um gesto de desencanto do tradicional produtor (traduzido por Ignácio de Loyola Brandão em sua coluna na “Última Hora”), que ameaça abandonar a produção e distribuição de filmes brasileiros para dedicar-se exclusivamente ao comércio do produto estrangeiro, todos se sensibilizam, a ponto de Paulo Emílio Salles Gomes redigir um artigo “Herói, Massaini, Vítima”, na publicação “Brasil Urgente”. Mas eram outros os tempos, e a figura elegante da Massaini, um Selznick dos trópicios a proteger paternalmente seus contratados e jovens talentos, que contribuí para entidades filantrópicas e aparece constantemente nos jornais, está irremediavelmente superada pelos fatos subsequentes que transformam o cinema brasileiro.

Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante se juntam em 1968 para formar a Servicine, produtora e distribuidora. Por seu lado, Manuel Augusto Sobrado Pereira, produtor de Zé do Caixão, realiza Meu Nome É Tonho sob direção de Ozualdo Candeias. Para promover o lançamento do filem Candeias bola um coquetel no bar Soberano que é anunciado assim pelo jornal “O Dia” de 6 de novembro de 1969: “Agora que o delegado Wilson Richetti limpou a Boca do Lixo, o cineasta Ozualdo Candeias pode realizar um velho sonho seu...”. Candeias que provavelmente discorda do raciocínio jornalístico, conta como foi a organização: “...na verdade, o coquetel é só um pretexto para um bom papo. Não existe razão premeditada. É que todo pessoal está aqui noite e dia. Eu bolei essa reunião para o pessoal conhecido. Haverá cachaça sim. Trouxe 10 litros de São Carlos. A Aurora Duarte telefonou perguntando se não haveria uns salgadinhos para comer. Eu lhe disse que não, porque estava duro e isso já é ultrapassado. Aí então ela se prontificou a trazer alguma coisa por sua conta. Quem vai pagar o aluguel do salão é a Bibi Vogel, que também é a atriz principal da fita. Não fora isso, não haveria nada”.

O Grupo “Cinema da Boca do Lixo” consegue realizar seus filmes. Primeiro As Libertinas em três episódios e dirigidos por Antônio Lima, Carlos Reichenbach e João Callegaro. De acordo com o depoimento de Jairo Ferreira, a ideia era inventar alguma coisa nova, um novo filão (ainda que neste caso a inspiração tenha sido o cinema erótico francês da época) que interessasse o público. Pelo visto os resultados correspondem, pois As Libertinas permaneceu várias semanas em cartaz nos cinemas centrais. Uma das atrações e inovações do filme foi sem dúvida a divulgação e as frases promocionais boladas pelo grupo e que, ao que parece, fizeram escola. Os anúncios publicados na imprensa: “um filme SEXO de João Callegaro (sexo-diretor), Carlos Reichenbach (sexo-diretor), Antônio Lima (sexo-diretor)...Três sexo-estórias: 1º sobre sexo; 2º sobre sexo; 3º sobre sexo.. “Todos gostam da beleza! Todos apreciam a ousadia! Todos vão gostar de...As Libertinas...”.

Jairo considera As Libertinas um marco, o filme que deflagrou o movimento erótico, pelo menos na sua versão paulista. É difícil avaliar o quanto um filme como este poder ser influenciado, mas de qualquer forma o modelo – produção barata + erotismo – dera certo e nenhum produtor ou candidato a..., iria ignorar o fato. Mas o que parece ser decisivo para o incremento da produção, e isso não se pode esquecer, é a criação, em 1966, do INC (Instituto Nacional de Cinema) e o surgimento da lei de obrigatoriedade reservando uma parcela do calendário ao filme brasileiro no circuito comercial. Esses fatores representam uma garantia mínima de sobrevivência do cinema brasileiro. Além disso, o final da década de 60 anuncia claramente que o cinema erótico – pelo menos nos EUA e Europa – iria tirar muitos produtores das dificuldades dos anos anteriores. O produtor brasileiro, fiel tradutor das ondas internacionais ao “nosso jeitinho” não está desatento às novas formulações. Ele só espera que alguém comece...

Para o cinema brasileiro, ás voltas com mais uma de suas crises cíclicas, a onda erótica, via filmes franceses e comédias italianas de Viccario chega no momento exato. Até 1972, ano do sucesso de A Viúva Virgem, a produção de pornochanchada se orienta por um empirismo total. O filme de Rovai (um paulista a esta altura já radicado no Rio), considerado hoje um clássico no gênero, vai afastar as últimas hesitações que porventura persistissem, em relação à viabilidade econômica desse filão que batia à porta dos produtores. Já não existem mais dúvidas quanto às possibilidades desses filmes junto ao grande público e em São Paulo – distante dos órgãos oficiais de financiamento – é hora de investir.

A confluência na Boca, de pessoas de origem humilde distinta e manifestando pontos de vista divergentes, criou um ambiente estimulante e efervescente que durou até 1972 mais ou menos. Era possível cruzar, nas calçadas da rua do Triunfo, com Roberto Santos, Luiz Sérgio Person, João Batista de Andrade, Oswaldo Mendes, Francisco Ramalho, produtores, distribuidores, gente desempregada e, é claro, o pessoal do “cinema da Boca do Lixo” ou cinema marginal, sempre o mais ativo e disposto a movimentar o ambiente, ainda mais que era integrado por dois jornalistas que divulgaram nas suas respectivas publicações as ideias de um novo cinema. Jairo Ferreira, sob o pseudônimo de Marshall Mac Gang, escrevia no “São Paulo Shinbum”, periódico destinado à colônia japonesa, que lhe concedia espaço para escrever à vontade num livre exercício da criação. O outro era Antônio Lima, do “Jornal da Tarde”. Os jornais, que já haviam anunciado amplamente o coquetel de pinga oferecido por Candeias para o lançamento de “Meu Nome É Tonho”, dão espaço a uma nova iniciativa: o “Prêmio Ferradura” (de ouro, de prata e de bronze) destinado aos piores filmes do ano, Lima, Candeias, Bernardo Vorobov, Mojica, Carlos Reichenbach, lançam a ideia com a finalidade evidente de tirar a Boca de seu comodismo e sonolência. Os críticos da imprensa paulistana convidados a participar do júri, se mostraram reticentes. Candeias, premiado com o Air France pela direção de “A Herança”, explica através da coluna de Leon Cakoff no “Diário da Noite”, que o troféu não era depreciativo, “tanto que tem muita gente gostando da ideia”, dizia. E como acho que devemos reconhecer isso, nada melhor que começar a divulgar e ‘premiar’ os piores filmes de cada ano”. Ainda no primeiro semestre de 1972, são anunciados os prêmios para os filmes exibidos em 1970/71 na capital:

1970
Ferradura de ouro (pior filme) / As Gatinhas, dirigido por Astolfo Araújo
Ferradura de prata (filme menos pior) / Uma Pistola Para D´Jeca, Mazzaropi
Ferradura de bronze (o melhor entre os piores) / Audácia, dirigido por Antônio Lima, João Callegaro e Carlos Reichenbach

1971
Ferradura de ouro / Um Certo Capitão Rodrigo, dirigido por Anselmo Duarte
Ferradura de prata / Idílio Proibido, Konstantin Tkaczenko, Cinedistri
Ferradura de bronze / Se Meu Dólar Falasse, Carlos Coimbra

“O Oscar brasileiro, instituído pela Academia de Artes do Lixão, segundo a definição de Marshall Mac Gang, foi dado a várias tendências e nomes conhecidos, provocando imediato mal-estar, principalmente entre os laureados e aqueles que consideravam a iniciativa prejudicial ao cinema brasileiro. Foi provavelmente o derradeiro lampejo de uma era marcada pela circulação de ideias novas e pouco convencionais, que dá lugar à fase da maturidade, da prioridade absoluta ao lucro ou como diria um profissional qualquer da Boca: ‘menos conversa e mais ação’.”

Nesse interím, a produção de filmes se distribuía por vários gêneros. A Servicine, de Galante e Palácios, é o próprio ecletismo vigente: de 1968 a 1971 produziu e participou de filmes tão distintos como Cangaceiro Sanguinário, A Mulher de Todos (Rogério Sganzerla), Lance Maior (Sílvio Back), Memória de Helena (David Neves), Sertão em Festa e Rogo a Deus e Mando Bala.


Encerrando um ciclo (1968-1972) com o “Prêmio Ferradura”, a maioria dos filmes doravante vai s referir ao gênero erótico, ainda sob formulações híbridas (policial-erótico; terror-erótico; etc). Na Cinedistri, a produtora que se destacou solitariamente na década de 60, Aníbal se revelou duplamente precoce. Em 1968, o filho de Oswaldo Massaini produziu Lua de Mel e Amendoim com a Sincro Filmes de Rovai, e vai atravessar a década mantendo alta contabilidade nos filmes batizados com títulos sonoros do tipo A Infidelidade Ao Alcance de Todos, A Superfêmea, Elas São do Baralho, O Homem de Itu e o recente Histórias Que As Nossas Babás Não Contavam. O pai, fundador e chefe do clã, se mantém afastado do erotismo e neutro em relação ás formulas de Aníbal, preferindo os temas históricos. Elias Curi da Brasecan, em 1973, compra filmes inacabados abaixo do preço, termina-os de qualquer maneira e faz acordo com exibidores para obter tratamento preferencial no lançamento de seus filmes em algumas salas, ente as quais o Cine Olido.

Nem mesmo empresas tradicionais como a Paris Filmes (distribuidora brasileira com filmes nacionais e importados, e responsável pela enxurrada de Kung-Fus) se omitem, deixando notar a sua presença em Macho e Fêmea, filme dirigido por Ody Fraga em 1973, que vai antecipar uma prática recorrente na Boca – a entrada do distribuidor na produção. Essas empresas, que acompanham atentamente as oscilações e tendências do mercado, tanto interno quanto externo, importam periodicamente alguns filmes problemáticos para efeito de teste. Um filme sueco ou dinamarquês com cenas explícitas de sexo seria pouco tempo atrás interditado, daí lançar-se mão de um expediente muito simples: convoca-se um produtor que é orientado para preparar um sucedâneo, uma tradução possível para “as nossas condições”. Em outras palavras, um filme com amplas possibilidades de aprovação pela censura federal. Nesse caso, a surrada argumentação de alguns críticos e jornalistas definindo a pornochanchada como mero reflexo da censura, não deixa de ter algum sentido.

O gênero erótico não se desenvolve ao acaso. Aqui ele se aclimata de tal maneira, toma expressão tão peculiar, que após o necessário tempo de adaptação seus vínculos com os modelos europeus – principalmente com o italiano – praticamente desaparecem. Como o futebol, que importado encontrou aqui sua expressão mais criativa, a pornochanchada se tornará – ainda que na condição de bode expiatório das mazelas nacionais – o mais êxito de público em toda história do cinema brasileiro.

O segredo de sua rentabilidade, apoia-se em boa parte nos esquemas de produção barata, viáveis a partir de certas medidas: tempo de filmagem reduzido, mão de obra mal paga, anúncios velados (merchandising), associações com empresários, etc...A perspectiva de lucros certos e rápidos atrai investidores alheios ao mundo do cinema: comerciantes, fazendeiros, pequenos industriais. Aumenta a oferta de trabalho para os técnicos, alguns deles remanescentes dos estúdios da Vera Cruz e Multifilmes, outros que chegam da TV (com o fechamento da TV Excelsior, em 1970) e na premência, formam-se técnicos da noite para o dia. Subitamente novos nomes se incorporam ao elenco técnico local. Produtoras são montadas, realizam um único filme e fecham logo em seguida para reabrir com nova composição e outro nome. Cumpre-se então a rotina na rua do Triunfo e imediações, onde o aluguel barato é estímulo para a instalação de escritório.

As perspectivas otimistas não contagiam os exibidores. Gilberto Ferraz, diretor de uma empresa ligada ao ramo, explicava ao jornal Folha de São Paulo, que a reserva de mercado implicava “na redução de exibição do filme estrangeiro e o que se obtém é a menor frequência ao cinema...e que a pornochanchada (cita alguns títulos) não obteve o beneplácito do público”. Uma afirmação contraditória frente aos dados fornecidos pelo INC (Instituto Nacional de Cinema) em seu relatório de 1974, onde se mostrava que 18 salas paulistanas exibiram filmes brasileiros por mais de 120 dias, enquanto o prazo obrigatório não ultrapassava 84. Já em 1973, filmes como Os Mansos (4,3 milhões), A Viúva Virgem (5,7 milhões) e Como Era Boa A Nossa Empregada (4,1 milhões), superavam a renda de filmes estrangeiros lançados sob intensa divulgação nos meios de comunicação de massa, caso de O Destino do Poseidon (3,6 milhões), Horizonte Perdido (3,9 milhões) e Essa Pequena É Uma Parada (3,6 milhões). No ano seguinte só quatro filmes estrangeiros (O Exorcista, Papillon, Golpe de Mestre e Era Uma Vez em Hollywood) superaram as renda média das produções nacionais. As Aventuras de Rabi Jacob, de origem francesa e público garantido, não suplanta, mais, por exemplo, O Descarte ou As Mulheres Que Fazem Diferente.

De maneira geral, o exibidor, indiferente às dificuldades que enfrenta o cinema nacional, não vê com simpatia a emergência de um gênero definido e suficientemente rentável para preocupar o exportador estrangeiro, que repassa a diminuição dos lucros ao negociante brasileiro. Este, organizado que está em função do cinema americano e condicionado à “lei natural” do cabeça de lote (a grande produção que dá lucros elevados e traz na sua esteira dezenas de bagulhos), se preocupa com o avanço do cinema brasileiro no mercado. Nesse contexto, periodicamente volta à carga brandindo argumentos ás vezes razoáveis, ás vezes ridículos. O estribilho é invariável, sempre lembrando que os filmes eróticos brasileiros apelam para a nudez gratuita e por isso acabam levando o gênero ao descrédito do público.

As reclamações diminuem à medida que “esses filmes, que exploram com repetição extremada a temática sexual”, rendem acima das expectativas mais otimistas e passam, agora sistematicamente, a quebrar recordes de renda nos cinemas centrais de São Paulo. Um exemplo recente, ocorrido em junho de 1980, é A Noite das Taras – com a chamada de porta de cinema: “O título já diz tudo” – produzido por David Cardoso e dirigido por ele, mais John Doo e Ody Fraga, com renda diária acima de 300 mil cruzeiros no cine Marabá.

Há um momento, na segunda metade da década passada, que o clamor contra a pornochanchada cresce e os exibidores – sempre adotando postura ambígua – já não estão mais sozinhos. D. Vicente Scherer, cardeal de Porto Alegre, adverte contra a onda de pornografia e imoralidade. O deputado Ary Kffuri da Arena paranaense “propõe a cassação de cineastas em atendimento a uma reivindicação da União Cívica Paranaense”, e até mesmo Edson Arantes do Nascimento  (Pelé) dá o seu palpite, e confirma que a pornochanchada prejudica a imagem do Brasil no exterior. Usando a expressão cunhada por Paulo Emílio Salles Gomes é possível, neste último caso, dizer que se trata do bode exultório falando do bode expiatório.

Na mesma linha de lamentações se coloca a maioria de críticos cinematográficos. “Produto espúrio”, “subproduto”, “logro” e “lixo” são algumas das expressões mais frequentes. Ely Azeredo, comentando no “Jornal do Brasil” de 15 de dezembro de 1977 a incoerência do processo censório em vigor na época, observa que os “cortes impostos a ‘O Silêncio’ (de Bergman) demonstram a falta de visão para perceber que o filme, além de circular em faixas de público devidamente informadas, poderia, na hipótese mais ousada, produzir alguns minutos de choque salutar. A Praia do Pecado (obs: filme nacional dirigido por Roberto Mauro e estrelado por Zélia Martins, que obteve grande êxito empatando nas primeiras semanas com A Profecia) só encontrará entusiastas em faixas turvas daquela intimidade com a sordidez que caracteriza personagens da Boca do Lixo paulistana, focalizada no roteiro...”.

A pornochanchada torna-se então uma distorção comercial para o exibidor, uma distorção moral para setores conservadores do clero e da sociedade brasileira, e distorção estética para os críticos. Caso a esta altura faltem ainda argumentos, resta a saída comum a todos: culpar o espectador, que na sua eterna e santa ignorância assiste a tais filmes. Aliás não é de outra coisa que falava Mario Graciosa, então diretor da Embrafilme, ao afirmar pelo Estadão que não há filmes eróticos, pois “O espectador é que é erótico, por causa de seu estado de espírito ou por ser solteiro e ter dificuldades de encontrar um companheiro”.

Mas o que importa é perceber que os exibidores logo se associam na produção de filmes, garantindo lucros para a pornochanchada. Constatado o êxito indiscutível, até mesmo o CIC – Cinema Internacional Corporation – do truste americano Gulf-and-Western que absorveu a Paramount e a Metro, passa a realizar filmes no Brasil depois de ter adquirido inúmeras salas pelo país. A CIC produz, distribui e exibe filmes como Tangarella, a Tanga de Cristal (1975) e O Motel (1975), que satisfazem a definição legal de filme brasileiro e resolvem parcialmente as dificuldades de remessas de lucros para o exterior.

A Haway, tradicional grupo exibidor, organiza sua própria produção e passa a exibir filmes “casa”, para o preenchimento do período reservado ao filme brasileiro. Em outros casos, o distribuidor tradicional de filmes estrangeiros como a Paris e a Marte Filmes que, a partir do know-how adquirido na comercialização, investem na realização de seus próprios filmes.

A momentânea identidade de interesses entre produtor e exibidor resolve grande parte dos problemas do cinema brasileiro, o que não chega a configurar nenhuma novidade. Já na época das chanchadas da Atlântida, o grupo Severiano Ribeiro (que mantém cinemas do Rio de Janeiro até o extremo norte do país) ao lançar criteriosamente, após divulgação apropriada, os filmes em seu circuito, nada mais fazia que cuidar de seus próprios investimentos, em virtude de participação acionária na produtora. O convívio entre produtor exibidor na década de 70 se aprimora, se consolida e se sofistica até o ponto de Antônio Polo Galante, que se inicia na condição de varredor de estúdios na Maristela – e chega à condição atual de “Midas da Boca” – canalizar boa parte de sua produção no atendimento de encomendas feitas pelos grupos exibidores ou distribuidores tradicionais.

Poucos como ele, souberam aproveitar os estímulos indiretos – a conjuntura favorável – que deflagraram o boom da pornochanchada. Agindo dentro dos limites de segurança, arriscando pouco em seus empreendimentos, ele conseguiu montar uma empresa sólida, construir estúdios, comprar equipamento e se preparar para qualquer eventualidade desagradável.

A atividade cinematográfica, o retorno do investimento apresenta peculiaridades específicas e exige antes de tudo experiência, macetes e uma boa dose de arrojo, e não basta essa última característica – presente em inúmeros exemplos de comerciantes, industriais ou fazendeiros que investiram em cinema – para garantir a sobrevivência e, quem sabe, prosperidade. A estória de Lincoln, o lenhador que chegou a presidência de um país, ou a versão italiana de Sofia Loren e sua trajetória do escritório ao estrelato mundial, ilustram a natureza de certas fantasias que embalariam muitos produtores improvisados que aportaram na Boca, foram mal sucedidos e voltaram aos seus negócios de origem.

David Cardoso, Cassiano Esteves, os Massaini na Cinedistri, a Titanus (produtora da Fama Filmes), Galante, Cláudio Cunha, Fauzi Mansur, Tony Vieira, Manuel Augusto Sobrado Pereira (MASP Filmes) formam o time sobrevivente no início da década atual. Por caminhos diferentes, encarnando concepções distintas de cinema, foram mais ou menos bem sucedidos, conforme o caso. Concretamente, reuniram condições para continuar ativos. Galante, por exemplo, geralmente precisa aprontar filmes com rapidez para atender o exibidor. Para isso contrata profissionais para desempenharem funções dentro de um quadro previamente definido, e sem lugar a quaisquer tipos de veleidades. A típica produção B brasileira. Massaini, pai e filhos, consolidaram a Cindistri acima das oscilações em que vive o cinema brasileiro. Cláudio Cunha se associa à Brasil Internacional Cinematográfica, de Alfredo Cohen; David Cardoso é o protótipo do jovem empresário bem sucedido, até nos blazers que mostra em suas visitas cada vez mais esporádicas à rua do Triunfo; Manuel Augusto Sobrado (Cervantes) acertou em cheio com Mulher, Mulher, direção de Jean Garrett que custou 2 milhões e rende, em menos de um ano, vinte e cinco vezes mais, o que lhe propicia oxigênio suficiente para continuar; Fauzi Mansur, através da Virgínia Filmes, encabeça um grupo de empresários incluindo até marcas populares como a Fábrica de Móveis Brasil – para um projeto ambicioso e abrangente o suficiente para incluir até a elaboração de enlatados para a TV. Fora desse grupo restrito há poucos exemplos de prosperidade ou evolução na carreira. Talvez Jean Garrett, hoje o diretor mais ambicioso da Boca, e algumas das moças que tornam tão atraentes e decisivas para o êxito comercial dos filmes, que transcendem o circuito da pornochanchada para alcançar as páginas das revistas e jornais prestigiosos – o primeiro passou para “ser dirigida por um Nélson Pereira ou Cacá...” como elas mesmas dizem.

Do restante da população desta comunidade cinematográfica, não se pode dizer que a efervescência dos anos 70 tenha trazido maiores benefícios. Os técnicos – e eles são ás centenas – continuam sem qualquer amparo trabalhista, assinando contratos em branco, convencidos, pela força das evidências, que não vale a pena reclamar. Há casos inclusive de profissionais com aproximadamente trinta anos de carreira na função de eletricista ou maquinista, sem quaisquer condições de recorrer ao INPS ou perspectivas de requerer aposentadoria. Mas houve alguma evolução quanto ao tratamento dispensado aos técnicos, antes submetidos a uma rígida hierarquia. Souza, eletricista desde os tempos da Vera Cruz  e Miro Reis, maquinista e técnico de efeitos especiais, vivenciaram a discriminação. Durante as filmagens, reserva-se para os atores e diretores o melhor hotel. Para os técnicos restava a hospedagem na mais decadente das pensões locais. Hoje, a discriminação diminuiu muito.

O quadro que se apresenta hoje em dia, mostra basicamente de um lado os distribuidores e produtores tradicionais, e de outro a massa de técnicos, figurantes, estrelinhas...Confirmando que a Boca é apenas uma “entidade” desorganizada, anárquica, um mero aglomerado onde a coincidência de interesses produziu uma contiguidade linear.

O aumento brutal do preço de material virgem, a inflação corroendo a coragem na hora do investimento – de que adianta ganhar 3 milhões hoje, se daqui a dois meses é insuficiente para começar outro filme? – fazem acreditar que a fase da produção continuada, imediatista (o chamado cinema-pauleira) já acabou. E, ao contrário do que podem supor os autores de santos necrológicos feitos para a pornochanchada, não foi nenhuma reação negativa do público, saturação de sexo, ou qualquer coisa desse tipo que veio determinar o final de uma época. É que o cinema, como outras atividades econômicas,  se orienta segundo o modelo concentracionista. E poucas chances restarão ao pequeno produtor, que no passado recente exibia aos investidores os mapas de rendimento dos filmes, apresentava uma atriz sedutora, juntava quatrocentos mil aqui, mais duzentos lá, cedia participações e finalmente chegava as telas. A ideia de saneamento do setor é evocada no argumento de J. Santana, titular da coluna “De Olho na Boca” publicada diariamente no jornal “Notícias Populares”, espaço criado para promover e divulgar os acontecimentos da Boca: “Vai ser melhor,...Vai haver uma seleção...”.

E isso não pode ser ruim, ser prejudicial? Não pode levar a polarização ainda maior?

“Não. Não vi no trabalho do pequeno produtor vôo mais alto. Também é tudo padronizado...”.

Vamos entrar então numa fase industrial?

“Acredito que sim. O custo médio de uma produção hoje na Boca (primeiro semestre de 1980) é de 4 milhões e muitos produtores pequenos não vão aguentar...”.

“...Eu não vejo com antipatia a abertura para uma produção industrial no cinema brasileiro. Porque aí eu acho que nós vamos ter condições de fazer coisa boa. Mas claro! Eu sou favorável ao livre jogo empresarial”.

Publicado originalmente em O imaginário da boca, por Inimá Ferreira Simões. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos, 6)