quarta-feira, 6 de março de 2019

Amores de Noel: Julinha


JULINHA


Por Almirante


Era criatura elegante, de certa beleza, somente exagerando nos seus cabelos oxigenados. Atuava em revistas de o interior, especialmente excursionando em circos e pavilhões, mantendo-se em pensões de péssimas referências.


Em 1932 trabalhava em dancings na Lapa, onde conheceu Noel, que lhe dedicou intensa amizade. Residia na Penha, onde Noel inúmeras vezes pernoitou em um barracão, numa favela, sem rua e sem número.



A paixão de Noel por Julinha deu motivo à criação, inicialmente, do samba “Feitio de Oração”, aliás a primeira produção ligada ao inspirado melodista Vadico:



Batuque é um privilégio

Ninguém aprende samba no colégio

Sambar é chorar de alegria

É sorrir de nostalgia

Dentro da melodia



Por isso agora

Lá na Penha vou mandar

Minha morena pra cantar

Com satisfação

E com harmonia

Esta triste melodia

Que é meu samba

Em feitio de oração.



O samba na realidade

Não vem do morro nem lá da cidade

E quem suportar uma paixão

Saberá que o samba então

Nasce do coração





A moradia, na Penha, tão distante e cansativa, fez com que Noel conseguisse nova residência para Julinha – uma pensão, nas proximidades da rua do Riachuelo. Durante várias semanas o “casal” viveu em completa harmonia, mas Julinha descontrolava-se devido aos excessos de bebida. Surgiram, sem demora, rusgas e brigas escandalosas, de que Noel se apavorava, receoso sempre das notícias maldosas de certos jornais. A maneira irregular de vida de Julinha, unindo-se a uns e outros, amargurava Noel. Daí a criação do samba “Vai Para Casa Depressa”, melodia de Francisco Matoso:



Vai para casa depressa

Vai prevenir teu senhor

Que vim cumprir a promessa

Que fiz, de possuir teu amor.

Não quero ser um covarde

Volta pra teu barracão

Antes que seja bem tarde

Para salvarmos nossa reputação



Se a mulher desequilibrada

Dois malandros que têm fibra

Só há uma solução:

Para que brigar a toa?

Vou tirar cara ou coroa,

Com um níquel de tostão.



Se não bastar tirar a sorte

E o amor fala mais forte

Sou o dono da questão;

Para o teu antigo dono

Tu vais dar teu abandono

Dando a mim teu coração





Em certa ocasião, sendo dançarina do Cabaré Flórida, terminada desagradável cena, Julinha completamente alcoolizada, cismou de afogar-se num pequeno riacho raso, existente no Passeio Público...De outra vez, após atitudes ridículas, quebrou o violão de Noel, e numa noite, quando levada à sua pensão, durante o trajeto, no automóvel de Pará, Julinha discutiu sem cessar, aos berros, sempre irritada e embriagada; ao parar o carro, saltou dizendo impropérios, batendo a porta com estrondo, sem admitir explicações de quem quer que fosse. Na noite seguinte, Pará percorreu os pontos em que Noel poderia ser encontrado; estava justamente no Café Nice, despreocupado, palestrando com amigos. O motorista chamou-o, com reservas, e deu-lhe esta informação que tornou Noel pálido e impressionado:


- Julinha foi levada pro Pronto Socorro. Quis se matar...


Aterrado, Noel pediu-lhe que o levasse ao Pronto Socorro, a fim de que êle, Pará tomasse todas as informações possíveis. Lá chegando, Noel, nervoso, sem saltar do veículo, aguardou a volta do amigo.


- Não houve nada. Ela tomou um veneno qualquer, mas não morreu com isso. Era bebedeira...- disse Pará.


O resultado desse episódio deu origem ao samba “Cor de Cinza”, em que Noel escreveu verdadeiro relatório sobre o triste fato:


Com seu aparecimento

Todo o céu ficou cinzento

E São Pedro, zangado;

Depois um carro de praça

Partiu e fez fumaça

Com destino ignorado



Não durou muito a chuva

E eu achei uma luva

Depois que ela desceu

A luva é um documento

Com que provo o esquecimento

Daquela que me esqueceu.



Ao ver um carro cinzento

Com a cruz do sofrimento

Bem vermelha na porta,

Fugi impressionado

Sem ter perguntado

Se ela estava viva ou morta.



A poeira cinzenta

De dúvida me atormenta,

Nem sei se ela morreu

A luva é um documento

De pelica e bem cinzento

Que lembra quem me esqueceu.



O amor de Noel por Julinha foi realmente intenso e inspirou mais dois lindos sambas, de grande sucesso; o primeiro, “Pra Esquecer”:



Naquele tempo

Em que você era pobre

Eu vivia como um nobre

A gastar meu vil metal

E por minha vontade

Você foi para a cidade

Esquecendo a solidão

E da miséria daquele barracão



Tudo passou tão depressa

Fiquei sem nada de meu

Esquecendo a promessa

Você me esqueceu

E partiu com o primeiro

Que apareceu

Não querendo ser pobre como eu



E hoje em dia

Quando por mim você passa

Bebo mais uma cachaça

Com meu último tostão

Pra esquecer a desgraça

Tiro mais uma fumaça

Do cigarro que eu filei

De um ex-amigo que outrora sustentei




O segundo samba marcou de maneira indiscutível as referências existentes aos nomes de Penha e barracão. A saudade, assim vincou a memória de Noel, cirando o extraordinário “Meu Barracão”:



Faz hoje quase um ano

Que eu não vou visitar

Meu barracão lá na Penha

Que me faz sofrer e até mesmo chorar

Por lembrar a alegria

Com que eu sentia

O forte laço de amor

Que nos prendia



Não há quem tenha

Mais saudades lá da Penha

Do que eu, juro que não

Não há quem passa

Me fazer perder a bossa

Só a saudade do barracão.



Mas veio lá da Penha

Hoje uma pessoa

Que trouxe uma notícia do meu barracão

Que não foi nada boa

Já cansado de esperar

Saiu do lugar

Eu desconfio

Que ele foi me procurar.

Publicado originalmente em ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1963.

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