quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Amores de Noel: Fina e Três Apitos



Por Almirante

A rua Moju, número 5, transversal à rua Barão do Bom Retiro, residia uma família formada por dona Luiza (avó), dona Iracema e dona Terezinha (tias) e duas meninas: Josefina (Fina), com 16 anos e Noêmia (Bazinha), com 15 anos, ambas de grande beleza.

Numa das visitas à casa de Clara, Noel mostrou-se interessado pelas garotas. O Rádio já era o “abre-te Sézamo” para as apaixonadas de então e Noel, além de tocar otimamente violão, era realmente humorista, repentista, poeta, compositor e melodista. Nas primeiras palestras, ligeiras, na rua Moju, Noel apresentou logo um completo relatório de seus méritos artísticos, tornando a família seduzida por sua amizade. Dali em diante, Noel visitava apenas a família da rua Moju, afastando-se completamente da rua Barão do Bom Retiro.

Surgiram então as noitadas de violão em que Noel apresentava, além de outros amigos, artistas de rádios, cantores e violonistas. Por exemplo, tornou-se “habitué” daquelas noitadas o Alegria, que terminou ali residindo e casando.

Certa noite, tendo Fina exibido um retrato seu, Noel, terrível namorador exigiu aquela fotografia, o que obteve, dando motivo à criação do samba “Seu Riso de Criança”:

Seu riso de criança
Que me enganou
Está num retratinho
Que eu guardo e não dou
Guardei sua aliança
Pra ter a lembrança
Do meu violão
Que você empenhou

Em cada morre que passo
Um novo amor eu conheço
Cada paixão que eu esqueço
É mais um samba que eu faço.

Canto agora de passagem
Você não houve mas não vê
É a última homenagem
Que eu vou fazer a você.

Eu nascendo pobre e feio
Ia se triste o meu fim
Mas crescendo a bossa, veio
Deus, teve pena de mim.

Em certa época, as duas irmãs começaram a trabalhar em fábricas. Fina empregou-se numa fábrica de botões, da firma Hachiya – Indústria e Comércio S/A, à rua Barão de Mesquita número 781 (esquina da rua Ernesto de Souza número 13); e Bazinha tornou-se operária da América Fabril, também à rua Barão de Mesquita. Envergonhadas, porém, com suas modestas funções, jamais indicaram seus endereços. Entretanto, nas palestras da rua Moju, Noel pescava as mais possíveis informações e assim compôs os versos inexatos de seu célebre samba “Três Apitos”, dedicado a Fina:

Quando o apito
Da Fábrica de Tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
E está interessada
Em fingir que não me vê

Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito
Tão aflito
Da busina do meu carro

Sou do sereno
Poeta muito soturno
Vou virar guarda noturno
E você sabe porque

Mas só não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você

Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé com o agasalho
Nem no frio você crê
Você é mesmo
Artigo que não se imita
Quando a Fábrica apita
Fez reclame de você

Nos meus olhos você vê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
Impertinente
Que dá ordens a você.


Somente após o lançamento do “Três Apitos”, em seus programas radiofônicos (pois jamais permitiu que fosse editado ou gravado...), conseguiu apurar tantas incorreções que muito o aborreceram durante vários anos.

Uma tarde, a avó de Fina, dona Luiza, viu-se obrigada a realizar buscas do paradeiro de uma de suas filhas, Terezinha. Noel, em companhia de outros parentes, permaneceu horas a fio, em Ramos, certo de que a jovem transviada residia naquele subúrbio. O fato deu motivos aos seus humorísticos comentários sobre os trens da Central, num fox-trot, com música do saudoso pianista Jerônimo Cabral: “Estátua da Paciência”.

Seu telegrama diz:
“Regressarei brevemente”
Mas o seu trem fatalmente
Chegar não quis
Não entendi, querida,
Porque seu trem não regressou
Amenizando depressa
A minha vida.

A quem acabar com a raça dos trens
Além dos meus parabéns
Eu darei como prêmio de consolação
O relógio e o prédio da Estação.

Eu sou na Estação
A Estátua da Paciência
E acabei sendo Agência
De informação
Já sei dos trens o horário
E até o intinerário
O nome dos maquinistas
E dos foguistas

Publicado originalmente em ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1963.

Um comentário:

Unknown disse...

Uso essa música "três apitos" nas aulas geografia do segundo ano do segundo grau. Gostei de conhecer os bastidores dessa música.