terça-feira, 1 de outubro de 2019

DOMÍCIO PINHEIRO: A OBSESSÃO DE RETRATAR O GOL E O BRASIL (Club dos Homens, 1984)



O espetáculo do futebol, com seus gladiadores e bailarinos, se transforma, na câmera de Domício Pinheiro, na guerra do gol. Esse fotógrafo, que conheço de perto há vinte anos, persegue as jogadas de gol com a obsessão dos mais talentosos centroavantes: retratar a bola passando a marca fatal, brincando com as redes, é um dos ideais de Domício Pinheiro.

Por Marcos Faerman

Frank Kafka escreveu a história de um estranho trapezista. Ele mal podia respirar longe do trapézio. Um dia, se põe a chorar, o trapezista. Tinha descoberto uma coisa terrível: não vivera todos os segundos de sua vida, em cima de dois trapézios. É assim que vejo Domício, com suas câmeras nas mãos, entrando num campo de futebol. “Ele carrega a máquina como um amante carrega a namorada”, me diz o repórter paulista Vital Battaglia.

Aos 65 anos, Domício continua com a câmera na mão. Os seus cabelos foram habituados à glostora...e o terno, as unhas cuidadas. Domício não se parece nada com a rapaziada que fotografa hoje em dia. E a vida gosta de oferecer espetáculos exclusivos para os que sabem surpreender seus movimentos sutis. Pelé parecia caprichar mais se Domício o perseguia com sua câmera. Marcava gols que a câmera de Domício transformava em eternidade. Depois, corria para o lado de Domício, e fazia poses de Pelé.

DAMAS E TIROTEIOS

Mas a história desse fotógrafo não passa só pelos campos de futebol. Domício fotografou a história do Brasil dessas décadas – desde os tempos de Getúlio até Sarney. Ele esteve nos cabarés do Rio romântico e conheceu (e fotografou) os jogadores e as damas, lindas e elegantes, mas quando eram as profissionais da noite. (Principalmente elas!) Com sua inseparável máquina, enfrentou tempestades no oceano, e quantas mais. Quem diria tal destino para um rapazinho que começou na vida como garçom, no hotel Riviera, em Copacabana. Quando Copacabana ainda era a “Princesinha do Mar”...

Lá estava Domício em seu posto no Riviera, quando aconteceu um banquete “de umas trinta pessoas”, segundo lembra. Apareceu, então, um fotógrafo “de carreira”, que batia chapas e vendia as fotos, na hora. “Domício, você está perdendo tempo aí, por que não vem trabalhar comigo? Você vai ganhar dez vezes mais”. Domício deixou o hotel cheio de turista americano e foi ganhar a vida como fotógrafo de carreira. Vendeu todo primeiro serviço num casamento de igreja – e achou aquilo sensacional. Era 1939, e o Rio perdia um garçom respeitado e ganhava um fotógrafo...

...Fotógrafo...Fotógrafo...Domício nem estava alegre assim. Para ele, fotógrafos mesmo eram os rapazes da imprensa, do DIP (que era uma agência de propaganda da ditadura getulista), da “Noite Ilustrada”, do “Globo”...principalmente de “O Cruzeiro”, que vendia uma barbaridade, 700 mil exemplares, há 40 anos atrás. Naquele tempo, Domício admirava Indarlecio Vanderlei, o Curt (que tem imensa rede de revelação de filmes), o Herbert Richers, José Casal, Gervásio Batista.

Aquela rapaziada era sensacional e todo mundo sonhava, na década de quarenta, em trabalhar na imprensa do Rio (que dava de dez a zero na de São Paulo), mas ainda não era a hora de Domício. Bem, em termos...Uma grande figura do Rio, José Gomes Talarico veio com a nova: “Domício! O Ibrahim Sued vai deixar de ser fotógrafo da Folha Carioca! Vai ser cronista social”. Domício até ficou arrepiado. “Mas Talrico, você vai me jogar na fogueira...O Ibrahim é o melhor fotógrafo que tem aqui no Rio...”



O REI DO MAGNÉSIO

Que tempo aquele! O tempo do magnésio. Domício tinha ganhou fama porque era o rei do magnésio. Lembram daquelas festas de antigamente? Todo mundo enfatiotado. Aparecia o chamado batalhão de fotógrafos para bater as capas. Ficava uma fumaceira dos diabos. Domício era o homem de confiança para – pum! – explodir o magnésio. Ele fazia a contagem e dizia...Já!...Dava certo quando era o Domício a contar. Agora, o garçom chegava na imprensa...No lugar do grande turco Ibrahim. Primeiro serviço, a volta de Flávio Costa ao Flamengo. Havia um prêmio para a melhor foto. No primeiro serviço, ele ganhou dos seus ídolos. Um susto. Ganhar daqueles cobrões...Ganhar daquele ninho de cobras...

Histórias sensacionais corriam entre os bocejos dos plantões. Naquela época. Os jornais tinham sempre um cara deitado no banco das centrais de polícia ou nas redações solitárias, esperando a hora em que a vida ia chama-lo para mais algum momento espantoso. O telefone tocava, alguma grande emoção podia estar em curso...

Um tiroteio em Caxias...Tenório Cavalcanti...E Domício vai contando literalmente mais essa aventura, fins dos anos 40 rolando: “O Tenório morava nos fundos da delegacia...Num castelo, no alto de um morro...Uma fortaleza...Começou um tiroteio... E o Domício chegou lá, eram mais ou menos onze da noite, não é? E o Domício foi para os fundos da delegacia, onde havia um ônibus velho...E eu fiquei embaixo do ônibus para ver se conseguia fotografar o Tenório naquele castelo que ele tinha. Tenório atirava na delegacia e os policiais atiravam no Castelo do Tenório...Eu, no meio do tiroteio, só consegui sair de manhã cedo, sete da manhã, porque choveu jornalista”.

Naquele dia, dois policiais morreram. Mas Domício escapou. E ainda foi fotografar as metralhadoras penduradas na sala nobre de Tenório Cavalcanti. Tenório só chamava as metralhadoras de Lurdinha.

Num outro episódio, no Brasil dos anos 50, Domício foi fotografar um protesto de produtores. Cláudio Abramo, editor-chefe do “Estado de São Paulo”, onde ele veio trabalhar depois de uma passagem pela “Última Hora” advertiu Domício: “Você acaba preso, Domício? É quase impossível querer registrar certos episódios e agir com cautela. Um tanque ia saindo de um quartel em São Paulo e Domício andava lá, com sua máquina, e deu uma “flashada” no tanque, ao que o sargento de plantão ficou muito irritado e foi para cima do fotógrafo. Nosso herói tentou fugir com o filme mas o sargento foi mais rápido. E o levou para o quartel. Até que veio um tenente pedir o filme para Domício! Pra que! Um fotógrafo que foi da equipe de Samuel Wainer...Um cara desses ia entregar o filme para o tenente...Para um marechal... “O senhor toma o filme se quiser...Eu não dou...O senhor toma”.

Tomaram o filme, é claro. Domício foi “liberado” ás três da manhã.

Liberado para novas aventuras. O herói atrai as proezas. Domício estava de férias no Rio. Passava por Deodoro. Aí, explodiu aquele depósito de munições do exército. Isso era em 57, 58 e Domício se viu no meio das explosões. “Jornalista não pode ver defunto sem chorar”. Nosso Domício saiu à cata de cenas no meio das bombas, que tudo iluminavam e assustavam.



NOVOS PERIGOS

Num outro momento mais próximo? Domício sessentão enfrenta outros perigos. É um caso no mar da Bahia. “O secretário da Marinha não queria deixar nós enfrentarmos no mar para chegar ao barco Alcatraz...” “Vocês vão passar um perigo tremendo”, nos dizia o home. “Mas o senhor sabe – respondi - a imprensa tem que correr riscos”. “Tá bom”. “Ele cedeu um naviozinho e nós entramos no mar. Rapaz, era impressionante...Aquelas ondas de dez metros de altura vinham e se batiam umas contra as outras. Dava medo, por mais coragem que você tenha. Até o comandante estava agarrando nuns ferros, para escapar daquela. Eu estava com uma tele 400, agarrado...É assim. Muitos fotógrafos deram a vida por uma foto. Perdi grandes amigos em coberturas fotográficas”.

As histórias de Domício não têm uma data bem certa. São histórias, nada mais. Como agora Domício está contando mais um episódio. Aconteceu numa solenidade no Campo dos Afonsos. Um fotógrafo está muito perto de um helicóptero e tem a tentação de uma cena diferente. Ele quer fotografar a hélice de um outro ângulo. A hélice não o perdoa. (A cabeça do colega de Domício é decepada).

OS DOIS LADOS

Ser fotógrafo de jornal é viver o verso e o anverso das coisas. Em 1950, Domício estava ajoelhado no gramado do Maracanã no dia em que o Brasil fez seis a um na Espanha. A sua máquina corria no gramado muito verde nos pés de Ademir, de Zizinho. Os deuses nos sorriam e sorriam para Domício que tinha cada vez mais fama entre seus companheiros. Mas o 16 de julho de 1950 também virou fotografia para Domício. Domício estava ajoelhado no Maracanã no dia em que os uruguaios nos jogaram na cara Obdúlio Varela, Maspoli, Shiafino...Perdemos de dois a um. Nunca mais esquecemos. Ser Domício Pinheiro é fotografar a vitória e a derrota, tudo.

Tudo mesmo. E há muitos anos, muitos, se discute na imprensa se Domício tem sorte, se ele “dá azar”. O velho Domício faz uma cara de superioridade. Se ele fotografou a perna de Mirandinha na hora em que ela era quebrada, dentro de campo, cena única na história da imprensa esportiva, é porque ele sabe acompanhar as jogadas. Se ele fotografou as arquibancadas do estádio da Vila Belmiro, quando elas ruíam, é porque ele está sempre atento. Morreram 27 pessoas, dezenas de feridos, naquele jogo Corinthians e Santos. Pânico no estádio. Mas o fotógrafo tinha de fotografar! Como é que ele ia perder o maior prêmio do jornalismo, o prêmio Esso, com fotos tão inacreditáveis?


AO LADO DO REI PELÉ

Quem é o criador da foto, o fotógrafo ou o personagem? Vamos pensar nisso, agora, quando Pelé entra na vida de Domício Pinheiro. A coisa foi assim. Teve hora que Domício não resistiu ao fascínio pelo menino em que todos falavam. Pelé fazia as coisas mais lindas dentro de um campo...Pelé fazia quatro gols em jogos de quatro gols. Ele, Domício, abismado. Um deus estava nascendo? Um deus já tinha nascido?

Na época em que Domício começou no “Estado de São Paulo”, onde está há 33 anos, o jornal não tinha arquivos nem de negativos nem de fotografias. “A gente enchia a gaveta de fotografias e no fim do mês jogava fora”. Domício começou olhar as fotos dos gols, dos dribles, dos delírios de Pelé dentro de campo...Jogar fora uma grande história? Aí, ele começou a guardar tudo o que era Pelé. E a fotografar tudo o que era Pelé.

Domício é corintiano, mas nunca deixava de acompanhar o ataque do Santos de Pelé. Mesmo que fosse jogo contra o Corinthians. “O material estava nos pés dele”. Não tinha jogo decidido, se Pelé estava em campo.

Domício quando fala de Pelé parece que está sonhando. Jogavam Santos e Botafogo, naqueles tempos. O Botafogo era uma maravilha e o Santos era uma maravilha: Garrincha, Didi, Paulinho, Quarentinha e Zagallo. E o Santos...Pelé, Pagão, Pepe, Coutinho, Mengálvio, Calvete. Tantos gênios dentro de campo. E Pelé. Pelé que estava sendo marcado naquela jogada que Domício está lembrando por Nilton Santos. Apenas por Nilton Santos. Que era conhecido como “A Enciclopédia”.

Nilton Santos estava dentro da área, quando a bola foi lançada. A bola foi lançada pelo alto, e Pelé entrou. Ninguém matava a bola como Pelé. Matava no peito e deixava a bola rolar mansa pela coxa, até cair nos pés. Pelé pula, gira no ar com a bola no peito. Ele estava de costas para o gol, e fica de frente, e Nilton Santos, o maravilhoso Nilton Santos, fica nas costas do crioulo, que está de frente para o gol. A bola não chega a cair no chão, cai é nas redes do Botafogo.

Domício fez milhares de fotos de Pelé, que descobriu Domício atrás dele, em todos os campos do mundo. Um dia, Domício entrou no vestiário do Santos, e viu o rei nu. Domício fotografou Pelé daquele jeito, de costas. Aí ele falou: “Domício, ponha essa na primeira página, hem?” Outra vez, Domício estava no Rio Grande do Sul para fotografar um jogo do Santos. Pelé naquele dia fazia 23 anos. Domício entra no apartamento do hotel em que Pelé está hospedado. Pelé estava deitado. Parecia crucificado, os braços abertos na cama...Domício ia fazer a foto, quando Pelé falou: “Domício, assim não”. “Mas Pelé, hoje é seu aniversário e você está aqui, no hotel, descansando...Isso é um exemplo para todos os jogadores”. “Não, Domício...” Pelé sempre sabe muito bem o que quer, em cada instante da vida é assim. Domício fez a foto.

Quando Pelé viu o livro com as fotos de Domício contando a história de Pelé...Tudo...Puxa, Pelé ficou comovido. Ali estava toda a sua glória, os seus voos e gols, os dribles e fábulas. Pelé podia pegar Pelé nas mãos.

O fotógrafo fez o rei do futebol chorar.


Publicado originalmente na revista Club dos Homens, ano IV, número V em 1984

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