O espetáculo do
futebol, com seus gladiadores e bailarinos, se transforma, na câmera de Domício
Pinheiro, na guerra do gol. Esse fotógrafo, que conheço de perto há vinte anos,
persegue as jogadas de gol com a obsessão dos mais talentosos centroavantes:
retratar a bola passando a marca fatal, brincando com as redes, é um dos ideais
de Domício Pinheiro.
Por Marcos Faerman
Frank Kafka escreveu a
história de um estranho trapezista. Ele mal podia respirar longe do trapézio.
Um dia, se põe a chorar, o trapezista. Tinha descoberto uma coisa terrível: não
vivera todos os segundos de sua vida, em cima de dois trapézios. É assim que
vejo Domício, com suas câmeras nas mãos, entrando num campo de futebol. “Ele
carrega a máquina como um amante carrega a namorada”, me diz o repórter
paulista Vital Battaglia.
Aos 65 anos, Domício
continua com a câmera na mão. Os seus cabelos foram habituados à glostora...e o
terno, as unhas cuidadas. Domício não se parece nada com a rapaziada que
fotografa hoje em dia. E a vida gosta de oferecer espetáculos exclusivos para
os que sabem surpreender seus movimentos sutis. Pelé parecia caprichar mais se
Domício o perseguia com sua câmera. Marcava gols que a câmera de Domício
transformava em eternidade. Depois, corria para o lado de Domício, e fazia
poses de Pelé.
DAMAS
E TIROTEIOS
Mas a história desse
fotógrafo não passa só pelos campos de futebol. Domício fotografou a história
do Brasil dessas décadas – desde os tempos de Getúlio até Sarney. Ele esteve
nos cabarés do Rio romântico e conheceu (e fotografou) os jogadores e as damas,
lindas e elegantes, mas quando eram as profissionais da noite. (Principalmente
elas!) Com sua inseparável máquina, enfrentou tempestades no oceano, e quantas
mais. Quem diria tal destino para um rapazinho que começou na vida como garçom,
no hotel Riviera, em Copacabana. Quando Copacabana ainda era a “Princesinha do
Mar”...
Lá estava Domício em
seu posto no Riviera, quando aconteceu um banquete “de umas trinta pessoas”,
segundo lembra. Apareceu, então, um fotógrafo “de carreira”, que batia chapas e
vendia as fotos, na hora. “Domício, você está perdendo tempo aí, por que não
vem trabalhar comigo? Você vai ganhar dez vezes mais”. Domício deixou o hotel
cheio de turista americano e foi ganhar a vida como fotógrafo de carreira.
Vendeu todo primeiro serviço num casamento de igreja – e achou aquilo
sensacional. Era 1939, e o Rio perdia um garçom respeitado e ganhava um
fotógrafo...
...Fotógrafo...Fotógrafo...Domício
nem estava alegre assim. Para ele, fotógrafos mesmo eram os rapazes da
imprensa, do DIP (que era uma agência de propaganda da ditadura getulista), da “Noite
Ilustrada”, do “Globo”...principalmente de “O Cruzeiro”, que vendia uma
barbaridade, 700 mil exemplares, há 40 anos atrás. Naquele tempo, Domício
admirava Indarlecio Vanderlei, o Curt (que tem imensa rede de revelação de
filmes), o Herbert Richers, José Casal, Gervásio Batista.
Aquela rapaziada era sensacional e todo mundo sonhava, na década de quarenta, em trabalhar na imprensa do Rio (que dava de dez a zero na de São Paulo), mas ainda não era a hora de Domício. Bem, em termos...Uma grande figura do Rio, José Gomes Talarico veio com a nova: “Domício! O Ibrahim Sued vai deixar de ser fotógrafo da Folha Carioca! Vai ser cronista social”. Domício até ficou arrepiado. “Mas Talrico, você vai me jogar na fogueira...O Ibrahim é o melhor fotógrafo que tem aqui no Rio...”
O
REI DO MAGNÉSIO
Que tempo aquele! O
tempo do magnésio. Domício tinha ganhou fama porque era o rei do magnésio.
Lembram daquelas festas de antigamente? Todo mundo enfatiotado. Aparecia o
chamado batalhão de fotógrafos para bater as capas. Ficava uma fumaceira dos
diabos. Domício era o homem de confiança para – pum! – explodir o magnésio. Ele
fazia a contagem e dizia...Já!...Dava certo quando era o Domício a contar.
Agora, o garçom chegava na imprensa...No lugar do grande turco Ibrahim.
Primeiro serviço, a volta de Flávio Costa ao Flamengo. Havia um prêmio para a melhor
foto. No primeiro serviço, ele ganhou dos seus ídolos. Um susto. Ganhar
daqueles cobrões...Ganhar daquele ninho de cobras...
Histórias sensacionais
corriam entre os bocejos dos plantões. Naquela época. Os jornais tinham sempre
um cara deitado no banco das centrais de polícia ou nas redações solitárias,
esperando a hora em que a vida ia chama-lo para mais algum momento espantoso. O
telefone tocava, alguma grande emoção podia estar em curso...
Um tiroteio em Caxias...Tenório
Cavalcanti...E Domício vai contando literalmente mais essa aventura, fins dos
anos 40 rolando: “O Tenório morava nos fundos da delegacia...Num castelo, no
alto de um morro...Uma fortaleza...Começou um tiroteio... E o Domício chegou
lá, eram mais ou menos onze da noite, não é? E o Domício foi para os fundos da
delegacia, onde havia um ônibus velho...E eu fiquei embaixo do ônibus para ver
se conseguia fotografar o Tenório naquele castelo que ele tinha. Tenório
atirava na delegacia e os policiais atiravam no Castelo do Tenório...Eu, no
meio do tiroteio, só consegui sair de manhã cedo, sete da manhã, porque choveu
jornalista”.
Naquele dia, dois
policiais morreram. Mas Domício escapou. E ainda foi fotografar as
metralhadoras penduradas na sala nobre de Tenório Cavalcanti. Tenório só
chamava as metralhadoras de Lurdinha.
Num outro episódio, no
Brasil dos anos 50, Domício foi fotografar um protesto de produtores. Cláudio
Abramo, editor-chefe do “Estado de São Paulo”, onde ele veio trabalhar depois
de uma passagem pela “Última Hora” advertiu Domício: “Você acaba preso,
Domício? É quase impossível querer registrar certos episódios e agir com
cautela. Um tanque ia saindo de um quartel em São Paulo e Domício andava lá,
com sua máquina, e deu uma “flashada” no tanque, ao que o sargento de plantão
ficou muito irritado e foi para cima do fotógrafo. Nosso herói tentou fugir com
o filme mas o sargento foi mais rápido. E o levou para o quartel. Até que veio
um tenente pedir o filme para Domício! Pra que! Um fotógrafo que foi da equipe
de Samuel Wainer...Um cara desses ia entregar o filme para o tenente...Para um
marechal... “O senhor toma o filme se quiser...Eu não dou...O senhor toma”.
Tomaram o filme, é
claro. Domício foi “liberado” ás três da manhã.
Liberado para novas
aventuras. O herói atrai as proezas. Domício estava de férias no Rio. Passava
por Deodoro. Aí, explodiu aquele depósito de munições do exército. Isso era em
57, 58 e Domício se viu no meio das explosões. “Jornalista não pode ver defunto
sem chorar”. Nosso Domício saiu à cata de cenas no meio das bombas, que tudo
iluminavam e assustavam.
NOVOS
PERIGOS
Num outro momento mais
próximo? Domício sessentão enfrenta outros perigos. É um caso no mar da Bahia. “O
secretário da Marinha não queria deixar nós enfrentarmos no mar para chegar ao
barco Alcatraz...” “Vocês vão passar um perigo tremendo”, nos dizia o home. “Mas
o senhor sabe – respondi - a imprensa tem que correr riscos”. “Tá bom”. “Ele
cedeu um naviozinho e nós entramos no mar. Rapaz, era impressionante...Aquelas
ondas de dez metros de altura vinham e se batiam umas contra as outras. Dava
medo, por mais coragem que você tenha. Até o comandante estava agarrando nuns
ferros, para escapar daquela. Eu estava com uma tele 400, agarrado...É assim.
Muitos fotógrafos deram a vida por uma foto. Perdi grandes amigos em coberturas
fotográficas”.
As histórias de Domício
não têm uma data bem certa. São histórias, nada mais. Como agora Domício está
contando mais um episódio. Aconteceu numa solenidade no Campo dos Afonsos. Um
fotógrafo está muito perto de um helicóptero e tem a tentação de uma cena diferente.
Ele quer fotografar a hélice de um outro ângulo. A hélice não o perdoa. (A
cabeça do colega de Domício é decepada).
OS
DOIS LADOS
Ser fotógrafo de jornal
é viver o verso e o anverso das coisas. Em 1950, Domício estava ajoelhado no
gramado do Maracanã no dia em que o Brasil fez seis a um na Espanha. A sua
máquina corria no gramado muito verde nos pés de Ademir, de Zizinho. Os deuses
nos sorriam e sorriam para Domício que tinha cada vez mais fama entre seus
companheiros. Mas o 16 de julho de 1950 também virou fotografia para Domício.
Domício estava ajoelhado no Maracanã no dia em que os uruguaios nos jogaram na
cara Obdúlio Varela, Maspoli, Shiafino...Perdemos de dois a um. Nunca mais
esquecemos. Ser Domício Pinheiro é fotografar a vitória e a derrota, tudo.
Tudo mesmo. E há muitos
anos, muitos, se discute na imprensa se Domício tem sorte, se ele “dá azar”. O
velho Domício faz uma cara de superioridade. Se ele fotografou a perna de
Mirandinha na hora em que ela era quebrada, dentro de campo, cena única na
história da imprensa esportiva, é porque ele sabe acompanhar as jogadas. Se ele
fotografou as arquibancadas do estádio da Vila Belmiro, quando elas ruíam, é
porque ele está sempre atento. Morreram 27 pessoas, dezenas de feridos, naquele
jogo Corinthians e Santos. Pânico no estádio. Mas o fotógrafo tinha de
fotografar! Como é que ele ia perder o maior prêmio do jornalismo, o prêmio
Esso, com fotos tão inacreditáveis?
AO
LADO DO REI PELÉ
Quem é o criador da
foto, o fotógrafo ou o personagem? Vamos pensar nisso, agora, quando Pelé entra
na vida de Domício Pinheiro. A coisa foi assim. Teve hora que Domício não resistiu
ao fascínio pelo menino em que todos falavam. Pelé fazia as coisas mais lindas
dentro de um campo...Pelé fazia quatro gols em jogos de quatro gols. Ele,
Domício, abismado. Um deus estava nascendo? Um deus já tinha nascido?
Na época em que Domício
começou no “Estado de São Paulo”, onde está há 33 anos, o jornal não tinha
arquivos nem de negativos nem de fotografias. “A gente enchia a gaveta de
fotografias e no fim do mês jogava fora”. Domício começou olhar as fotos dos gols,
dos dribles, dos delírios de Pelé dentro de campo...Jogar fora uma grande
história? Aí, ele começou a guardar tudo o que era Pelé. E a fotografar tudo o
que era Pelé.
Domício é corintiano,
mas nunca deixava de acompanhar o ataque do Santos de Pelé. Mesmo que fosse
jogo contra o Corinthians. “O material estava nos pés dele”. Não tinha jogo
decidido, se Pelé estava em campo.
Domício quando fala de
Pelé parece que está sonhando. Jogavam Santos e Botafogo, naqueles tempos. O
Botafogo era uma maravilha e o Santos era uma maravilha: Garrincha, Didi,
Paulinho, Quarentinha e Zagallo. E o Santos...Pelé, Pagão, Pepe, Coutinho,
Mengálvio, Calvete. Tantos gênios dentro de campo. E Pelé. Pelé que estava
sendo marcado naquela jogada que Domício está lembrando por Nilton Santos.
Apenas por Nilton Santos. Que era conhecido como “A Enciclopédia”.
Nilton Santos estava dentro da área, quando a bola foi lançada. A bola foi lançada pelo alto, e Pelé entrou. Ninguém matava a bola como Pelé. Matava no peito e deixava a bola rolar mansa pela coxa, até cair nos pés. Pelé pula, gira no ar com a bola no peito. Ele estava de costas para o gol, e fica de frente, e Nilton Santos, o maravilhoso Nilton Santos, fica nas costas do crioulo, que está de frente para o gol. A bola não chega a cair no chão, cai é nas redes do Botafogo.
Domício fez milhares de
fotos de Pelé, que descobriu Domício atrás dele, em todos os campos do mundo.
Um dia, Domício entrou no vestiário do Santos, e viu o rei nu. Domício
fotografou Pelé daquele jeito, de costas. Aí ele falou: “Domício, ponha essa na
primeira página, hem?” Outra vez, Domício estava no Rio Grande do Sul para
fotografar um jogo do Santos. Pelé naquele dia fazia 23 anos. Domício entra no
apartamento do hotel em que Pelé está hospedado. Pelé estava deitado. Parecia
crucificado, os braços abertos na cama...Domício ia fazer a foto, quando Pelé
falou: “Domício, assim não”. “Mas Pelé, hoje é seu aniversário e você está
aqui, no hotel, descansando...Isso é um exemplo para todos os jogadores”. “Não,
Domício...” Pelé sempre sabe muito bem o que quer, em cada instante da vida é
assim. Domício fez a foto.
Quando Pelé viu o livro
com as fotos de Domício contando a história de Pelé...Tudo...Puxa, Pelé ficou
comovido. Ali estava toda a sua glória, os seus voos e gols, os dribles e
fábulas. Pelé podia pegar Pelé nas mãos.
O fotógrafo fez o rei do futebol chorar.
Publicado
originalmente na revista Club dos Homens,
ano IV, número V em 1984
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