quarta-feira, 20 de maio de 2020

OITO ANOS SEM RODRIGO MONTANA: “O homem de dentro da casca”


"Aqui é a Broadway de São Paulo", exclamava rindo. "Por isso, quero fazer o calçadão e manter a Boca como ponto de cultura". Vestido de camisa bicolor aberta, óculos escuros e botas sertanejas, ele impunha respeito. Com poucas palavras trocadas, percebia-se que tratava-se de um sujeito imponente. "Eu trouxe a moda country pro Brasil", vivia repetindo para os amigos, conhecidos e desconhecidos. Os últimos anos de vida passaram-se num acanhado escritório da rua dos Andradas, na Boca paulistana. Ali ele recebia dezenas de conhecidos. Amigos do cinema, cantores, compositores, estudantes, exibidores esquecidos pelo tempo, jornalistas, pesquisadores. Cariolano Rodrigues Mineiro (1940-2012), o Rodrigo Montana, dirigiu durante anos a Associação São Paulo, a Cidade e o Cinema, instituição empenhada na preservação da produção cinematográfica paulista. Quando estava no escritório, Montana passava muito tempo falando sobre a sétima arte. Gostava de relembrar os filmes em que trabalhou e os que gostaria de ter realizado.
O curioso é que a própria vida de Montana daria um filme. Mas não uma fita com mocinho e bandido como os faroestes de que ele tanto gostava. Mas sim um filme com momentos dramáticos e engraçados. Cariolano Rodrigues Mineiro nasceu em 21 de junho de 1940 em Assis, cidade localizada a 434 quilômetros de São Paulo. Era o mais novo de cinco irmãos. De sua infância sabe-se muito pouco. Seus pais morreram cedo e os irmãos foram separados, cada um sendo criado num lugar. "Eu fui viver com a minha madrinha", explica Irma Rodrigues Albuquerque, irmã mais velha de Rodrigo. "Não sei como ele conseguiu se empregar como boiadeiro e foi trabalhar no Mato Grosso".
Montava teve pouca educação formal. Ainda menor, tornou-se peão de boiadeiro. Desde cedo demonstrou grande aptidão em dominar os animais. Essa habilidade iria acompanha-lo durante toda sua trajetória. A maioria dos filmes em que Montana trabalhou eram fitas de temática rural, faroestes e dramas rodados em fazendas do interior. Conduzir o gado por longas estradas foi uma escola e tanto para o jovem Rodrigo.
Uma enrascada aconteceu numa das primeiras vezes que o jovem boiadeiro chegou em São Paulo. Montana e seus companheiros iam descer a boiada num frigorífico localizado no bairro Anhanguera, zona noroeste de São Paulo. Eles vinham trazendo os bois de trem. A confusão começou no desembarque na Estação da Luz. O Juizado de Menores ia prender Rodrigo. "Isso só aconteceu porque eu era menor e andava armado", relembrou ele anos depois. O clima não era dos mais amistosos para Rodrigo e seus amigos. Os bois estavam nervosos devido á exaustiva viagem. Os animais não haviam feito a alimentação da maneira correta. O Juizado de Menores tinha impossibilitado qualquer desembarque na cidade de São Paulo. O boiadeiro bem que tentou se explicar. O jeito foi improvisar. Montana e seus colegas fizeram o desembarque em outro frigorífico, este localizado no bairro dos Pimentas, em Guarulhos. Os bois só chegariam ao destino final dias depois. Houve prejuízo e dor de cabeça para os peões. "Era complicado esse trabalho. Eles não divulgam a verdadeira vida do peão de boiadeiro. Esse é um camarada que não teve estudo e faz seu trabalho com sol, chuva, frio. Sempre em cima de lombo de burro".

Nos anos 50, enquanto trabalhava pra frigoríficos, Montana reencontrou sua irmã, Irma. Ela estava casada com Saul, ferramenteiro. Os dois moravam em Poá, cidade localizada na Grande São Paulo. Bastante carinhosa com o irmão e sentindo responsabilidade por ele estar num serviço rústico, Irma aconselhou-o a ter outra ocupação. A solução encontrada foi Montana ir trabalhar no clube social do Sport Club Corinthians Paulista. O padrasto de Saul, Acácio Pereira, era diretor do clube. Dentro da agremiação, não existia trabalho impossível para Rodrigo. Ele era um autêntico faz-tudo: mecânico, pintor, carpinteiro, arrumava as instalações, supervisionava a piscina. Aquele jovem de 1,90 m de altura tinha disposição para o serviço pesado. "Sempre mexi com brutalidade. Na lei do Mato Grosso, se o cara dá um grito com você, você tem que dar três com ele. Lá dentro do Corinthians ganhei o apelido de Boiadeiro".
Montana gostou do novo emprego. Dessa maneira, ele conseguiu conhecer e conviver com ídolos do clube alvinegro como Baltazar (Cabeça de Ouro), Luizinho Pequeno Polegar e Oreco. Uma personalidade que chamou a atenção do jovem foi um senhor barbudo que era candidato a deputado ou vereador. Ele chamava-se Jarbas. Vivia rodeado de puxa-sacos. Montana acreditava que aquele homem era alguém importante e poderia indica-lo para um emprego melhor. Afinal, o rapagão criado no sertão de Mato Grosso não queria passar a vida limpando piscina de bacana. Um dia, o jovem criou coragem e conversou com Jarbas:
- O senhor não arruma outro trabalho pra mim?
- Mas o que você quer fazer?
Montana sabia bem o que queria fazer. Seu maior desejo era tornar-se estrela de cinema. Ele admirava os faroestes em que seu ídolo Roy Rogers acabava com os bandoleiros dos planaltos norte-americanos.
- Quero trabalhar com cinema. Eu sei lidar com cavalo melhor que o Roy Rogers.
- Vou ver se consigo te arrumar.
Montana achava que seria impossível aquele homem ajudá-lo. "Esse pessoal só ajuda grã-fino. Nunca vão arrumar algo pra um cara do interior como eu". Ledo engano. Uma semana depois, Jarbas foi falar com ele. Havia conseguido que o rapaz participasse de um teste para o longa-metragem O Capanga (1957), aventura dirigida pelo italiano Alberto Severi. Rodrigo começou a suar. Ele nunca achava que poderia realizar seu sonho: trabalhar com a sétima arte. Montana relembrou que ficou muito nervoso antes de participar do teste. "Marinheiro de primeira viagem tem que se cuidar. Por isso, antes de ir lá eu passei num bar. Pedi umas balas de hortelã e tomei uma cachaça".

O teste foi realizado num escritório na rua Sete de Abril, centro de São Paulo. O local ficava perto do bar Costa do Sol, estabelecimento conhecido por ser frequentado pelo pessoal do cinema no final dos anos 1950 e início dos 1960. Mesmo nervoso, o jovem boiadeiro agradou o pessoal e fez uma figuração no filme. O rapaz voltou a Poá alucinado. De peão de boiadeiro tinha se tornado artista. Após um período no Corinthians, Montana conseguiu emprego numa agência do Banco Auxiliar, localizada na Vila Maria, zona norte de São Paulo. O boiadeiro ia ganhando a cidade grande. Mas seu sonho continuava sendo a sétima arte. Por isso, Rodrigo continuou participando de testes e fazendo cursos de formação de atores. Foi num desses cursos que ele conheceu jovens como Luiz Gonzaga dos Santos e Pio Zamuner, ambos nomes que iriam se consagrar no cinema da Boca anos depois.
Com o passar dos anos, a rua do Triunfo tornou-se o centro de produção cinematográfica de São Paulo. Montana passou a frequentar o local. Seu tipo de boiadeiro chamou a atenção de todos. Foi nesse ambiente que Cariolano Rodrigues Mineiro passou a ser conhecido como Rodrigo Montana. O boiadeiro se entendeu muito bem com o polonês Edward Freund, que realizou alguns faroestes numa fazenda em Sabaúna, na região de Mogi das Cruzes. Rodrigo participou de longas-metragens realizados na fazenda de Francisco Assis Soares, o Comendador. Isso aconteceu em produções como Um Pistoleiro Chamado Caviúna e Gringo, o Último Matador. "Sempre quando tinha bangue-bangue eles me chamavam. Principalmente quando tinha cavalo ou outros animais, porque eu sempre cuidei deles com carinho".
O tipo sertanejo e a impressionante habilidade com cavalos foram fazendo Rodrigo tornar-se um homem de confiança dos produtores da Boca. Apesar de ser um homem sem estudos formais, Montana compensava isso com uma impressionante disposição para acumular diversas funções e uma dedicação intensa. Rodrigo não possuía vícios. Nas horas de folga, gostava de tomar uma cachaça. Mas nada que afetasse seu trabalho. Sua presença é constante em filmes de temática rural como Trindad é Meu NomeO Poder do Desejo e D´Gajão Mata Para Vingar. Esse último um dos filmes preferidos de Montana como ator. "Foi um filme muito bom de se trabalhar. Gosto da maneira do Mojica trabalhar. Ele é um cineasta calmo, não grita com a gente. O resultado ficou muito bom. Parece bangue-bangue americano".
Em 1975, Rodrigo passou a desempenhar uma função diferente dentro do cinema da Boca. O antigo boiadeiro foi convidado para ser diretor de produção do longa-metragem Bonecas Diabólicas, de Flávio Ribeiro Nogueira. "O diretor contou o roteiro pra mim. Eu achava que conseguia realizar a produção em 30 dias. Mas acabei fazendo apenas dezoito. Foi o filme mais rápido realizado na rua do Triunfo".
Montana acabou ganhando certo destaque na nova ocupação. Ás vezes, atuava como diretor, outras como gerente e assistente de produção. Com o tempo, tornou-se homem de confiança do diretor e produtor Fauzi Mansur. Ambos trabalharam juntos inúmeras vezes. Mansur era um homem de prestígio dentro do cinema paulista. Realizador versátil, Fauzi conseguia dirigir dramas e comédias bem acabadas que ganhavam destaque no cinema da rua do Triunfo. "Ele é 100%. Nunca vi ele ficar nervoso ou xingar qualquer ator. O Fauzi conversa, bate papo, fazia a cabeça deles".
Rodrigo foi homem de confiança de Mansur na realização de dois longas-metragens: Sedução e Guarani. O cineasta José Adalto Cardoso trabalhou nesses dois filmes como assistente de direção. Ele destaca a entrega de Rodrigo como colaborador de Fauzi. "Dentro de uma produção, o Montana era um autêntico cão de guarda. Ele sempre foi um profissional valente e dedicado. Lembro que no Guarani o Montana ficou três dias sem dormir, trabalhando direto". Adalto acredita que o antigo boiadeiro tenha sido um assistente de luxo nessas duas produções. "Acho que era o cara de produção preferido do Fauzi. Era do tipo de pessoa que não media esforço para realizar sua função".
Um filme que marcou Rodrigo dentro do cinema da Boca foi o longa-metragem Os Três Boiadeiros (1979) de Waldir Kopezky. A fita foi estrelada pela dupla caipira Pedro Bento e Zé da Estrada. O antigo boiadeiro atuou como ator e dirigiu a produção da película. "Foi ali que eu comecei a pensar numa produção que abordasse o rodeio. Eu queria juntar uma história sobre a festa de peão de boiadeiro e a moda country".
No final daquele ano, Montana encomendou o roteiro deste filme para o roteirista Rajá de Aragão. "A ideia era correr rodeios em tudo quanto é estado pra ver quais os melhores peões. A finalíssima seria em Barretos". O longa-metragem ganhou o título de Rodeio de Bravos: Onde o Chão é o Limite. Do elenco, o único nome conhecido era o veterano Henricão, compositor de samba e colaborador de filmes do comediante Mazzaropi.
Montana era audacioso. O realizador queria filmar a produção em diversos estados como Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais e Goiás. Mas seu orçamento era controlado. Dessa maneira, Rodrigo filmou em Barretos, Bauru, Terra Roxa e Vacaria (RS). "O normal era eles fazerem na Boca filmes com dez, vinte latas de negativo. Logo no começo eu comprei 80 latas".
O diretor gostava de comparar sua produção com outros filmes do segmento sertanejo. "Eu consegui uma coisa única dentro do cinema brasileiro: a cor da boiada. Nos outros filmes todos os bois são brancos. Os peões ficam sentados em cavalo, ninguém em burro. No meu filme tem boi de todas as cores: malhado, vermelho, branco". Vivenciar as estradas e o mundo dos peões de boiadeiro marcou Montana de maneira definitiva. Pode-se dizer que Rodeio de Bravos era a própria biografia do seu diretor. "Era a vida que eu levei. Fiz esse filme para mostrar para as pessoas como é a vida do peão de boiadeiro".
Rodeio de Bravos é um filme com classificação livre. Pode ser visto por crianças, jovens, famílias inteiras. Infelizmente, Montana não conseguiu lançar seu filme comercialmente. A chegada do cinema de sexo explícito condenou o tipo de cinema praticado por diversos realizadores da Boca. Os exibidores só queriam filmes pornográficos. Alguns donos de cinema pressionaram Montana a incluir cenas de sexo explícito em sua produção. Dessa maneira, o longa-metragem poderia ser lançado com lucro fácil. Montana negou-se a fazer isso. "A pornografia entrou e me derrubou. Os distribuidores queriam que eu colocasse cenas de sexo explícito na minha fita. Nunca".
Rodeio de Bravos foi terminado em 1982. Praticamente inédito, o filme ganhou algumas exibições especiais em cidades distantes dos grandes centros. Eram locais onde Montana produzia e realizava rodeios. O realizador exibiu seu filme para pequenas plateias em cidades como Pedralva (MG), Rio Brilhante (MS), Amabaí (MS), Caarapó (MS), Francisco Alves (PR) e Santa Rita do Sapucaí (MG).
Durante todo tempo em que fui próximo de Rodrigo tentei diversas vezes convencê-lo a comercializar seu longa-metragem para o Canal Brasil. Ele recusava. Dizia que queria algum produtor para relançar o filme numa sessão especial em Barretos, cidade onde a maior parte da trama foi rodada. Rodrigo dizia que a exibição da histórica produção seria um evento de alto gabarito com a presença de personalidades do meio artístico. Nos últimos tempos, seu maior desejo era filmar o romance sertanejo Castelo de Amor. A produção era baseada numa canção do Trio Parada Dura. Infelizmente, o filme precisava de um orçamento elevado. Rodrigo não teve tempo de concluir este projeto. Cariolano Rodrigues Mineiro morreu no dia 31 de julho de 2012. Um ataque fulminante matou o cineasta em seu escritório localizado na rua dos Andradas. Por uma ironia do destino, Montana acabou morrendo em seu lugar de trabalho de muitos anos.
Entre seus contemporâneos de cinema Rodrigo era tido como um homem rústico. Afinal, sua origem era o campo. Montana conhecia muito do mundo rural, a vida dos grotões do Brasil. Mas para a irmã mais velha, Irma, Rodrigo (ou Rô, como ela o chamava) não pode ser resumido dessa maneira. Ela afirma que Rodrigo era uma pessoa bastante sensível. "Tudo isso dele ser durão a casca do ovo. Apenas aparência", garante emocionado ao se recordar do irmão. "Eu posso dizer pra você uma coisa: o Rô era um sonhador. Ele viveu a vida que ele quis".
Este é um dos capítulos do livro “Dossiê Boca: personagens e história do cinema paulista”, de minha autoria publicado pela editora Giostri em 2014.

Um comentário:

Alexandre Miyazato disse...

Olá Matheus! Certa vez em 2011, estava perambulando pela Rua Andradas e me deparei com uma placa: "Associação São Paulo, a Cidade e o Cinema" e uma porta entreaberta que dava acesso a escadas. Toquei a campainha e me deparei com um sujeito cabeludo, com óculos escuros, com fivela de cowboy, me lembrava cantores sertanejos como José Rico, uma figura excêntrica e carismática, mas era exatamente como imaginava que fosse um artista da Boca. Na época tinha acabado de entrar na biblioteca da Cinemateca(do qual sai em abril do ano passado), então aquilo muito me fascinou, mas a cordialidade daquela figura forte que me cativou a primeira vista era imensa! Apresentou-se como Rodrigo Montana, pediu para eu sentar, colocou seus pés na mesa e começou a falar comigo. Falou de sua próxima produção com Sérgio Reis e Mulher Melão. Não me recordo do título, mas era uma produção a la faroeste feijoada produzida pela Boca. Não tardou muito e o papo foi interrompido pela campainha. Eram três belas estudantes de Cinema, não me recordo se eram da FAAP ou Anhembi, pouco importa, o que importa foi a expressão no rosto do Rodrigo Montana, ele tirou óculos para observar as três estudantes, uma chamou sua atenção, ele ficou parado olhando pra ela, enquanto as colegas anotavam tudo que ele falava sobre o cinema da Boca. Ao encarar olho a olho lhe: "Você já pensou em ser atriz de cinema?" Ela balbuciou algo como não sei,com olhos arregalados de surpresa, enquanto as colegas riam. "Você daria uma ótima atriz para meu próximo filme!". Percebi que talvez estivesse estragando o momento de Rodrigo Montana de contar a sua história para as três jovens. Achei melhor me retirar, elas anotavam freneticamente. Me despedi rapidamente. Sei que fiquei com a sensação de estar diante de uma figura histórica para a Boca do Lixo. Logo fui procurar sobre e não achei informações do quanto gostaria. Até conhecer você Matheus e o seu excelente trabalho, que talvez tenha sido o único a reconhecer a figura potente que era o Rodrigo Montana. E também o único a prestar homenagens póstumas ao Rodrigo Montana. A última vez que trombei contigo no Bar do Adão perto da FESPSP, você disse algo como: "os meus amigos estão morrendo". Não eles não estão morrendo, você está mantendo eles vivos em cada livro ou texto que publica.
Vida longa ao cinema paulista! Viva Rodrigo Montana! Viva Gaucho! Viva Mojica! Viva Sternheim! Viva Candeias! Viva Indio! Viva Fauzi! E todos os outros que fizeram da Boca um lugar de suma importância pro cinema brasileiro!
Abraço, Alexandre