sábado, 26 de setembro de 2020

Biografia de Capitão Furtado IV de VI: Os anos dourados de uma carreira

Por J.L. Ferrete

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

Hoje temos rela-bruxo...

Viva a farra, macacada!

Pelo jeito, a pagodeira

Vai ser mesmo animada!

As macacas convidaram

O leão e a onça-pintada

Até bichos prafrentex,

Completando a bicharada

 

Entre os bichos de respeito

Penetrou um trans...viado!

Entrou com um tal de ‘plei-bôi’

Um bezerro desmamado...

As macacas do auditório

Já correram pro seu lado;

Então lhe pediram vira,

Pra apreciar seu rebolado

(Planeta das macacas, letra inédita de Capitão Furtado)

 


Começava o ano de 1936. A música rural ou caipira já havia conquistando importantes espaços nos suplementos das gravadoras, estando em grande destaque, então, Raul Torres, Antenógenes Silva, Zico Dias e Ferrinho, Olegário e Lourenço, Mandy e Sorocabinha, Mariano e Caçula e Laureano e Soares. Grandes clássicos, porém, ainda estavam por surgir, sendo a maior parte do repertório constituída de alguns escorços com significação meramente ‘típica’. Paradoxalmente, suscitava interesse – em especial no interior de São Paulo e Minas – a já indefectível estilização citadina de material musical rural, conquanto as duplas acima mencionadas tivessem um público entusiasta e fiel, prestigiando suas gravações através de ótimos índices de vendagem.

 

A moda de viola começava a predominar sobre todos os gêneros. Seu som característico de duas vozes cantando em terça, bom como o acompanhamento típico – violão e viola caipira afinada em ré, sol, ré, sol, si, ré – distinguem-na de tudo quanto se conhecesse até então na criação musical brasileira e a associavam imediatamente á zona rural. Sem instrumentos de percussão e exibida em estilo narrativo corrente, ás vezes melodicamente paupérrimo, a moda de viola fascinava seu público exatamente por isso: contava com canto uma história que independia do grau expressivo melódico. Parecia um retorno às canções trovadorescas da Idade Média, em cotejo que até hoje intriga os estudiosos. Ariovaldo Pires iria acrescentar algo a mais a essa narrativa, como veremos logo a seguir: a fala junto com canto.

 

Como foi esclarecida anteriormente, a gravadora Odeon havia mostrado interesse em registrar 0, que na sátira de Capitão Furtado, fazia grande sucesso em São Paulo através de Nhá Zefa. Como esta tivera sua gravação impedida de sair, por absurdo obstáculo oposto pela marca onde fazia discos, Capitão Furtado decidiu entregar a letra para Alvarenga e Ranchinho musicarem. E indicou-os à direção artística da Odeon no Rio, para a gravação.

 

Como estava disposto a deixar São Paulo, porém, combinou com a dupla que os três iriam juntos para o Rio. Começava, destarte, a fase mais brilhante da carreira deste trio, embora, mais tarde, cada qual seguisse seu próprio rumo.


Capitão Furtado e seus dois apadrinhados devem ter chegado na capital do país no dia 15 de março de 1936, um domingo. É que, consoante depoimento feito em 1979 por Ariovaldo, a gravação de Itália e Abissínia foi realizada no dia seguinte ao da chegada dos três no Rio de Janeiro – e essa data é 16 de março de 36, conforme os arquivos da Odeon. Provavelmente para aproveitar o dia de folga, os três decidiram ir conhecer a Rádio Tupi do Rio, PRG-3.

 

“Fomos ao Largo de São Francisco – conta Ariovaldo Pires -, tomamos um bonde de um tostão que ia para o bairro da Saúde e chegamos ao velho barracão onde funcionava a Tupi. Apresentamo-nos timidamente a quem nos recebeu na porta e pedimos para falar com o diretor. Na sala desta, entretanto, estava uma paulista de Sorocaba, D. Sílvia Autuori, que era famosa Tia Chiquinha da Hora do Guri. Ao ouvir meu nome e conhecendo meu trabalho em São Paulo, ela própria veio receber-me e manifestou sua alegria pelo encontro. Apresentou-me ao dr. Aires de Andrade, o diretor, e já fomos escalados para o que eles chamavam de programa de visita. Eu e Alvarenga e Ranchinho apresentamos uns três números de fala e canto, mas, logicamente, sem pretensão alguma de chamar a atenção de alguém. Não estávamos sabendo, contudo, que o dono da emissora, dr. Assis Chateuabriand, nos ouvia naquele instante. Ele gostou e deu ordens ao dr. Aires para que nos contratasse – isto é, que ‘contratasse os meninos’. Estreamos em maio de 1936, como a Trinca do Bom Humor”.

 

Tudo estava dando certo para o Capitão Furtado, mas, obviamente, da mesma maneira para a dupla Alvarenga e Ranchinho. No dia 16 de março de 1936, conforme observamos, os dois antigos cantadores de paródias de tango já transformados numa dupla caipira, gravaram na Odeon a moda de viola (em tempo de fandango) Itália e Abissínia. Tratava-se de uma paródia em que a preta Bastiana e o italiano Beppe simbolizavam, no “fecha” que estavam no “fundo de quintár”, a guerra entre Itália e Etiópia (na época conhecida como Abissínia). Do outro lado, Alvarenga e Ranchinho registraram um cateretê de sua autoria: Liga das nações.

 

No mês seguinte – 17 e 18 de abril -, Alvarenga e Ranchinho voltaram mais uma vez ao estúdio da Odeon para gravar outras faces de 78 rpm pois, na época, quando o artista vinha de fora para registrar no Rio, aproveitava a ocasião para deixar uma porção de gravações. Depois, a direção artística ia distribuindo esses registros na medida das conveniências de suplemento. Em algumas dessas gravações, Ariovaldo Pires (também co-autor, com a dupla) estrava declamando ou falando: Meu coração, Futebol, Repartindo um boi e A baixa do café.

 

Curiosamente, em todos esses discos Ariovaldo Pires só aparecia com seu nome civil como autor. Na interpretação era o Capitão Furtado. Iria ser sempre assim: Ariovaldo Pires como autor e Capitão Furtado intérprete.

 

No dia 23 de abril de 1936 os três voltaram a registrar outras composições deles na Odeon: Lição de geografia e A moda do beijo. E em maio, dia 27, Ariovaldo Pires fazia estrear em dueto consigo a atriz Jurema Magalhães, no diálogo de Campos Negreiros intitulado Adoração. “Foi a primeira vez que Jurema gravou um disco”, contou-nos ele. “Eu a tinha visto num espetáculo do teatro Casa do Caboclo e achei-a espetacular como intérprete. Com que emoção ela ouviu sua própria voz naquele registro!”. No dia seguinte, dia 28, Alvarenga e Ranchinho gravaram o outro lado desse 78 rpm – um cateretê deles e de Ariovaldo denominado Caboclo viajado. Vale observar, desde já, que o importante nesses registros não era propriamente a blague, quando havia. Foi a novidade da narrativa e da música em pouco menos de três minutos de gravação – devida, como dissemos, ao Capitão Furtado.

 

Os três – Ariovaldo, Alvarenga e Ranchinho – já se haviam instalado terminantemente no Rio. Morando todos numa pensão (parece que no Catete) passaram a desenvolver inúmeras atividades em rádio, teatro e discos. Na Tupi, onde Ariovaldo Pires só foi registrado em carteira a partir de 1 de junho de 1936 com o salário de 350 mil-réis, o já definitivo Capitão Furtado criou o seu Repouso, programa que, em síntese, representava uma espécie de estância onde Capitão, numa espécie de ‘retiro interiorano’, recebia seus convidados: Carlos Galhardo, Alzirinha Camargo, Carmen Barbosa, Benedito Lacerda, Carolina Cardoso Menezes, Horacina Correia, Laureano (um dos maiores violeiros da época) e, naturalmente, Alvarenga e Ranchinho.

 

Ariovaldo, aliás, não conseguia conter seu extraordinário dinamismo criativo. Havendo-se ‘descoberto’ também como aplaudido contador de histórias e anedotas caipiras, comparecia em todas as apresentações públicas onde o homem rural estivesse em foco, obtendo, em geral, vastos elogios da crítica. Suas gravações na Odeon, por outro lado, não faziam sucesso somente em São Paulo e no interior: obtinham expressiva vendagem no próprio Rio de Janeiro, onde o Capitão Furtado já era conhecido como ‘o maior humorista caipira do Brasil’.

 

No dia 11 de novembro de 1936 Ariovaldo mudou de gravadora, fazendo seu primeiro disco na RCA Victor: Natal do sertão, um ‘flagrante de festa’ composto por Osvaldo Frota Pessoa e Lucília Guimarães Villa-Lobos (mulher do famoso compositor), no qual atuava ao lado de Tia Chiquinha e do Coro dos Apiacás da Hora do Guri, da Rádio Tupi, sendo regente a própria Lucília Villa-Lobos. “Nesse coro de crianças – esclarece Ariovaldo Pires – começou o depois famoso Lúcio Alves”.

 

A estada na RCA, entretanto, foi curta. Estendeu até maio de 1937 e teve, como não podia deixar de ser, a companhia de Alvarenga e Ranchinho. Uma de suas gravações mais admiráveis nessa ocasião foi da poesia de Campos Negreiros intitulada Italianinha, na qual, com acompanhamento da Orquestra Victor Brasileira sob a direção de Radamés Gnattali, ele aparecia com seu nome de batismo: Ariovaldo Pires.

 

O maestro Radamés Gnattali (1906-1988)

No próprio mês de maio de 37, ele e Alvarenga e Ranchinho retornaram à Odeon. Nesse meio tempo, Ranchinho seria substituído provisoriamente por Bentinho, mas logo a seguir a dupla original se recomporia. Sozinho ou com a companhia de Alvarenga e Ranchinho, Alda Garrido, Nhá Zefa e Nhô Pai e dos Irmãos Laureano, o Capitão Furtado revelaria trabalhos satíricos em linguajar caipira do mais alto nível, valendo destacar Caipira em Hollywood (onde célebres astros de época eram chamados como Lioner Barromóle, Wallace Bérro, Adorfo Minjô, Marta Égua e Juão Kiempurra, por exemplo), Descobrimento da América (no qual “Cristóvo Colombo” havia servido com ele na “mêrma tropa da Cavalaria da Marinha”), Em redor do mundo, Modos de cumprimentar e Psicologia dos nome.

 

Alguns desses trabalhos, por sinal, estavam sendo tirados de um livro que Ariovaldo Pires fez lançar em 1 de abril de 1937, Lá vem mentira, e cujo sucesso foi extraordinário. Escrevendo sobre esse trabalho no Correio Paulistano (11 de agosto de 1938), Lellis Vieira comentava: “Francamente, no gênero nacionalismo, nesta época de frenesi basílico, abrasileirendo-se brasileiramente a brasilidade em toda a extensão brasílica do brasilismo brasilante, não há dúvida que o caboclo, matéria-prima do país, está dignamente interpretado no esplêndido livro Lá vem mentira. “A primeira edição esgotou-se em um mês. Houve necessidade urgente de uma segunda, de tantos pedidos que as livrarias recebiam”.

 

O incrível estava ocorrendo. Em plena capital do país, em ambiente onde imperava rígido intelectualismo voltado para as próprias realidades sociais locais e em que se traçavam os rumos da cultura nacional, um caipira de Tietê movimentava o noticiário dos jornais, fazia-se campeão de audiência em programas radiofônicos e conseguia fazer sair a segunda edição de um livro onde se massacrava o dialeto consagrado.

 

Em julho de 1937, por sinal, organizou-se em São Paulo um Congresso de Língua Nacional Cantada (entre os dias 7 e 14), no qual se buscou discutir em especial os vários modismos linguísticos que começavam a tomar conta do país, havendo uma longa sessão que cuidou do caipirismo. Ao fim e ao cabo, congressistas como Antenor Nascentes, Cândido Jucá Filho, Manuel Bandeira, Júlio de Mesquita Filho e Gomes Cardim concluíram pela adoção do nacional “modo de falar carioca”, que seria, segundo a maioria, o “ideal”. O caipirismo não chegou a ser criticado frontalmente, mas, pelo que se depreendeu das conclusões do congresso, ameaçava a pureza da língua com sua alienação crescente. Era um “modismo” perigoso, embora característico, de consequências “retrocessivas”.

 

A música rural, como se percebe, ganhava corpo no repertório nacional, inclusive através de autores urbanos que se louvavam nela para penetrar em mercados que lhe eram sensíveis. Mais ainda que no tempo de Catulo da Paixão Cearense, o caboclo e a cabocla, bem como o rancho e a choça ao luar, constituíam temas prediletos dos poetas de cidade ou compositores de canções e sambas-canções, em demonstração de que o habitat do ‘homem do mato’ exercia enorme fascínio sobre todos os tipos de artista e, em especial, sobre os consumidores em geral.

 

O compositor e poeta Catulo da Paixão Cearense

Ariovaldo Pires não ‘imitava’ aproximadamente o tipo exercem-te do fascínio. Ele próprio era um tipo. Daí o interesse com que foi acolhido em sua temporada no Rio de Janeiro, merecendo páginas e páginas de variados comentários mais importantes jornais e revistas. É verdade que Alvarenga e Ranchinho prosseguiram a partir do ponto em que ele estancou, fixando no Cassino da Urca aquela imagem tão do agrado do carioca e que, como se sabe, lhes deu fama. Seria Ariovaldo Pires, porém, o pioneiro, pois foi o primeiro a encarar com coragem um meio que a priori parecia hostil a tudo quanto ele representava, logrando triunfar sem descer a níveis desaconselháveis. Seu humor sempre foi sadio, mesmo no duplo sentido. E sua seriedade ombreou em imagens felizes os maiores poetas populares do Brasil.


O exemplo do Capitão Furtado estimulou letristas de talento tão grande quanto o seu à produção, não se podendo esquecer, neste ponto, a brilhante figura de João Pacífico, a quem devemos algumas das melhores páginas rurais destes últimos quarenta anos. Juntamente com Raul Torres e Serrinha, João Pacífico foi a solução encontrada pela RCA Victor para preencher o espaço que Alvarenga e Ranchinho e o Capitão Furtado haviam deixado em seu elenco ao larga-lo em 1937, sendo dessa época, por sinal, o seu clássico Chico Mulato (toada feita com Raul Torres), no qual debuta em gravações (RCA Victor, número 34.196). Cabocla Teresa, toada histórica que João fez em parceria com Raul Torres, só aparecia em gravação deste, com Florêncio, em 1944, pela RCA Victor (disco número 80-0230).

 

Há quem diga, por sinal, que João Pacífico tenha feito evoluir, como excelente letrista que sempre foi, aquilo que coube ao Capitão Furtado plantar. A sutil ironia de ambos ou as imagens belíssimas que os dois sempre souberam estabelecer em seus enredos musicais não parecem linhas paralelas, ao contrário, assemelham-se a um trabalho artesanal alternado a duas mãos de atividade independente e continuada. “Conheci o Capitão Furtado em 1932 – contou-nos João Pacífico recentemente – e com ele sempre me identifiquei em colocações poéticas e pontos de vista artísticos. Temos até uma parceria!”.

 

Em fevereiro de 1939, Ariovaldo Pires deixou a Rádio Tupi do Rio. Dia 1 de março começava na Rádio Nacional. “Foi um mau negócio”, admitia ele. “Encontrei um ambiente muito hostil”.

 

Encarregaram-no de um apagado programa intitulado Poemas Sertanejos com apenas 15 minutos de duração diária, no horário de pior audiência da emissora: 19 horas. Desgostoso, ficou apenas cinco meses na Nacional. Fazia mais de quatro anos que ele estava afastado de São Paulo e praticamente se isolara da família e dos amigos paulistanos, salvo por contatos eventuais quando da visita destes à capital do país. Queria voltar.

 

Havia terminado de escrever um enredo teatral, todavia, e a consequência disso fê-lo ficar mais algum tempo no Rio. “Houve um concurso de peças de teatro nessa ocasião, 1939. Não era minha intenção inscrever coisa nenhuma, mas então um escritor chamado José Wanderley contou ao autor Palmerim Silva que eu tinha uma peça muito bonita chamada O tesouro do sultão. Palmerim, que havia sido meu colega no Teatro Tupi, procurou-me interessado e me pediu que lhe lesse o trabalho. Ele gostou e mandou tirar cópia do texto por conta própria, inscrevendo a peça no concurso. Em meu nome, naturalmente! Fazer o contrário seria confirmar o meu apelido de Furtado. Depois de muitas eliminatórias em que foram sendo excluídos grandes escritores e famosos teatrólogos, o Serviço Nacional de Teatro incluiu O tesouro do sultão entre as premiadas. Peguei esse meu trabalho e levei-o para Radamés Gnattali musicar, tarefa que foi entusiasticamente aceita pelo famoso pianista, orquestrador, compositor e regente. Acabamos criando uma opereta”.

 

O tesouro do sultão estrearia no Teatro João Caetano do Rio no dia 4 de outubro de 1939, cercada de enorme expectativa criada pela imprensa carioca. Afinal, era Jardel Jércolis quem encabeçaria o espetáculo, e sua aplaudida Companhia incluía artistas como Guiomar Santos (“cantora de voz suave e bonita como o é ela própria”, segundo o Diário da Noite, do Rio), Ildefonso Norat, Pepita Cantero, Lódia Silva e Ângelo Freitas, todos de grande prestígio na capital brasileira. Os cenários foram entregues à fantástica inventividade de Jaime Silva e, na verdade, exigiam um cenarista de sua categoria: a história da peça (ou opereta) começava num poético subúrbio da Penha e terminava nos luxuosos salões do Sultão da Turquia, mostrando odaliscas, camelos e personagens exóticas de todo tipo.

 


Musicalmente,
O tesouro do sultão tinha de quase tudo: danças russas, bailados orientais, um swing, uma rumba, uma batucada, um samba, uma marcha carnavalesca, um choro e até mesmo uma canção caipira. Destacavam-se nesses números, naturalmente, as atraentes figuras de Lódia Silva e Guiomar Santos – tidas como as mais bonitas atrizes da época.

 

“Foi um sucesso estrondoso”, disse-nos Ariovaldo. “Mais tarde Jardel levaria a peça no Uruguai e na Argentina, antes apresentando-a em grandes centros locais como São Paulo e Recife”.

 

Ariovaldo Pires retornou a São Paulo em fins de 1939. Encontra uma cidade totalmente transformada, em função de fatores políticos (o Estado Novo de Getúlio Vargas, por exemplo, que tirou a autonomia dos Estados), econômicos (crescente industrialização, em substituição à dependência da exportação agrícola, que nos permitia concomitantemente importar o que não fabricávamos) e sociais (com maior carga de gente do interior economicamente exaurido, tentando nova sorte no grande centro).

 

A população urbana crescia a olhos vistos mas, como observamos, esse crescimento somava enormes quantidades de migrantes do campo, os quais, como é fácil deduzir, traziam consigo a formação cultural do seu próprio habitat. Esse deslocamento destrambelhado, às vésperas de tremendo conflito mundial, começa a alternar o aspecto socioeconômico da capital, ensejando uma complexidade enorme de problemas de adaptação principalmente cultural.

 

Deixando de lado minúcias históricas que só encompridariam esta narrativa na direção de outros aspectos, sintetizaríamos nosso raciocínio deixando claro que um novo campo artístico foi aberto na capital em função dessa corrente migratória interiorana, proporcionando aos cultores do caipirismo contato mais próximo com o seu público. Já não era mais necessário fazer como Cornélio Pires, que tinha de se deslocar para o interior em busca de consumidores ou de consumidos. A crise da agricultura após 1929 já estava transportando parte do interior para a capital, ensejando um mercado de utilização artística bem mais alentado para quem tivesse público certo.


Ariovaldo Pires chega a São Paulo e cria o programa radiofônico exato para essa população deslocada do interior: Arraial da Curva Torta, levado todos os domingos das 17h30 ás 18h30 horas pela Rádio Difusora, PRF-3, emissora fundada cinco anos antes na capital paulista e com estúdios no Sumaré.

 

A ambientação do Arraial era feita de modo a reproduzir fielmente o habitat da multidão de deslocados culturais da capital paulista, com um já experiente condutor, que era o Capitão Furtado, á frente. Muitos novatos iriam ser revelados através do Arraial da Curva Torta, tendo sido a dupla Tonico e Tionoco, porém, os mais importantes e duradouros. “Eu estava sem violeiros no programa – conta Ariovaldo Pires -, pois perdera Palmeira e Piraci. Resolvi, em 1943, instituir um concurso no programa e, após ouvir 32 candidatos, optei por um trio que se apresentara como sendo Trio da Roça. Era formado pelos irmãos João Salvador e José Pérez, com o reforço de um primo chamado Miguel. Como eu não precisava de um trio, mas somente de uma dupla, exclui o primo e batizei a dupla como Tonico e Tinoco. Mais adiante, em 1944, consegui a duras penas que gravassem uma face de 78 rpm na Continental, aproveitando o fato de que esse lado do disco – com Palmeira e Piraci – não havia sido liberado para o registro. Para surpresa do diretor artístico da gravadora (que não queria de forma alguma misturar num mesmo 78 rpm uma dupla famosíssima com desconhecidos novatos), o que acabou arrastando a venda do disco foi a face com Tonico e Tinoco (Em vez de me agradecer, um cateretê meu, de Jaime Martins e de Aimoré). A partir daí Tonico e Tinoco explodiram como os maiores na sua categoria, e na sua especialidade jamais encontraram concorrentes à altura”.

 

O Arraial da Curva Torta do Capitão Furtado não iria revelar somente essa magnífica dupla para o mundo artístico. Dele também surgiram Hebe Camargo (que com a irmã Estela formava a dupla Rosalinda e Floresbila, em substituição a Xandica e Xandoca, que saíram abruptamente no programa), além doa acordeonistas Orlando Silveira e Mário Zan. “Tínhamos 90% de audiência em São Paulo”, diz Ariovaldo Pires. “Chegávamos a distribuir altíssimos prêmios em dinheiro para nossos ouvinte, com perguntas deste tipo: Qual é o país que tem nome de ave e sua capital tem nome de fruta?”.

 

O disco e o rádio, enquanto isso, já estavam criando uma pequena multidão de artistas caipiras. Havia público – pelas razões já explicadas – e não mais constituía vergonha ser caipira. A capital paulista, na verdade, já abrigava mais de 200 mil caipiras por ocasião da II Grande Guerra. E não eram em absoluto daquele tipo caipira que Monteiro Lobato mostrou com o Jeca Tatu ou da espécie ironizada em Vida marcada ou De papo pro á. Quanto ao gênero artístico, embora aquele primitivismo folclórico do tempo de Cornélio Pires já estivesse sofrendo transformações pela conjunção cultural campo-cidade, sentiam-se diretrizes plenamente estabelecidas no sentido de fixação de uma característica, com outros instrumentos que não só o violão e a viola a cuidar do acompanhamento. Até mesmo uma música caipira instrumental começou a tomar corpo, alternando suas fontes informativas na herança europeia e no tradicionalismo rural de formação típica. O linguajar repleto de idiomatismos, labdacismos, rotacismos e sincretismos, porém, seria a permanente marca registrada de uma identificação cultural inconfundível. Malgrado a secessão regional, porém, passou-se a chamar a música rural ou caipira de sertaneja enquanto a verdadeiramente sertaneja distingui-se como nordestina.

 

A arte musical e poética está repleta de roteiros multivios. Ao mais comum, que é a bipartição entre o eugênico e o herdado por tradição, não pôde fugir Ariovaldo Pires. Em outros termos, ele não foi só um poeta rural ou caipira. Em contato com artistas de áreas artísticas urbanas e com o próprio gosto urbano, ingressou, como vimos, no teatro e no cinema. Seu trabalho, portanto, abarcou áreas que não apenas aquela onde foi pioneiro, obrigando-nos certa vez a perguntar-lhe (nos limites de franqueza que nossa amizade permitia) se tinha sido necessidade financeira ou espontaneidade que o tinha arrastado para outros caminhos. “Vontade de criar”, respondeu-nos ele com ar grave. “O caipira em mim expandiu-se do modo como sempre o reconheci. Mas, fazer poesia, como fazer música – veja os exemplos de Camargo Guarnieri e de Menotti del Picchia -, não exige obrigatoriamente que você fique preso a padrões rígidos. A arte não pode ter um cara só”.

 

Em 1940, Ariovaldo Pires voltaria a discos mais uma vez – considerando a anterioridade de Mulatinha da caserna – como poeta não-caipira: com a valsa E o vento levou..., gravou na RCA Victor por Orlando Silva. “Essa composição é de 1937 – conta ele – e foi feita com um músico sergipano chamado Jerônimo Cabral. A ideia me foi dada pelo editor Pongetti no dia em que estava acertando com ele o lançamento de Lá vem mentira. Pongetti estava lançando no Brasil o romance E o vento levou... e achou que uma música com esse título daria certo. Eu também achei. Na volta para a Tupi, durante o percurso de bonde, fiz a letra. Mais tarde encontrei-me com Jerônimo na praça Tiradentes e convidei-o para musicar o que eu havia feito. Fomos á rua da Carioca, onde tinha uma editora de música, ele pediu um piano emprestado e ali mesmo fez a melodia. Pensamos em Orlando Silva para gravar e lhe confiamos a valsa. Mas ele só iria registrar E o vento levou... em 1940, quando eu já tinha voltado pra São Paulo. Foi um dos grandes sucessos de Orlando na ocasião”.

 

Nessa mesma época, Ariovaldo praticamente lançou Gilberto Alves em discos, se considerar que os primeiros registros desse cantor na Columbia passaram totalmente despercebidos. Confiou-lhe a valsa Linda flor que morreu (em parceria de Jota Soares), que, gravada na Odeon, em março de 1940, e tendo do outro lado do disco: Tra lá lá (de Roberto Martins), fez enorme sucesso em todo o país. “Consegui esse registro para Gilberto algum tempo antes de me afastar do Rio”, esclarece Ariovaldo Pires. “O diretor da Rádio Tupi, onde Gilberto atuava, pediu-me que intercedesse junto a essa gravadora a fim de que contratasse o cantor. Como proposta para o primeiro disco, a Tupi cederia seu estúdio praticamente de graça para a Odeon. Vicente Paiva, diretor artístico da Odeon, concordou, e Gilberto incluiu esse 78 rpm a minha canção Linda flor que morreu”.

 

Ainda em 1940, Ariovaldo entrou em campo absolutamente discordante de suas principais características: o da música portuguesa. Fez uma dança de Alentejo (Linda alentejana, com Jerônimo Cabral), um corridinho (Corridinho das Marias, com Mílton Amaral) e um vira (Santa dos meus amores, com Kid Pepe), composições que foram gravadas com grande êxito na RCA Victor pelo popular cantor português José Lemos. Corridinho das Marias, lembrava divertidamente Ariovaldo, “chegou a ser confundido com música folclórica portuguesa!”.

 

No ano seguinte, 1941, teria início outro lado desigual na carreira de Ariovaldo Pires: o de letra em outra língua. Com um espanhol radicado no México e então vivendo no Brasil, Luiz Alvarez, ele compôs dois corridos mexicanos – Caray con el amor e El vacilón – ambos gravados pelo próprio Alvarez na RCA. E em 1943, enfim, Ariovaldo entraria em outra área absolutamente distinta de todas as outras já mencionadas: na da versão da música estrangeira para português ou, simplesmente, na da letra em português para melodia que nascera sem nenhuma letra. Neste último caso distingue-se Sonho de outono, originalmente uma valsa inglesa (de Archibald Joyce) que nunca tivera letra.

 

“Fiz essa letra praticamente em alguns minutos”, contou-nos ele. “Havia um programa na Rádio Difusora intitulado Escala Cromática, no qual se costumava teatralizar certas músicas. Autumn dream, de Archibald Joyvce, estava fazendo grande sucesso na ocasião, mas só era música orquestral. Gabriel Migliori, que era o encarregado musical do programa, procurou-me desesperado e pediu que inventasse uma letra qualquer para essa melodia. Cumpri a tarefa, como disse, em alguns minutos. Logo depois, Gilberto Alves gravaria essa criação minha em discos Odeon, conquistando retumbante sucesso”.

 

Como versionista, ou seja, adaptador de uma letra estrangeira para português, Ariovaldo Pires começou em 1943 com Sou um tropeiro, versão de El bandoleiro, de Jesus Ramos. “Foi Marino Gouveia quem interpretou esse trabalho – lembra ele -, mas, na época em que sugeri a gravação, ouvi milhares de argumentos em contrário. Achavam, na gravadora, que esse corrido mexicano só funcionava em castelhano e que perderia toda a graça na versão em português. No entanto, acabou sendo um dos discos da Columbia mais vendidos em 1943 e conseguiu praticamente trazer Marino Gouveia de volta ao sucesso”.

 

Em todas essas áreas, depois de 1943, Ariovaldo Pires iria atuar com proficiente regularidade, ensejando dezenas de sucessos comerciais e ganhando fama paralela à de sua atividade no terreno caipira. No âmbito das versões ou das letras para obras originalmente só musicais, por exemplo, citaríamos êxitos como Rancho alegre (da música mexicana de igual nome), Meu tesouro (da valsa italiana Tesoro mio, de Becucci), Ó, Susana (da composição de S.C. Foster), Frou-frou (da valsa francesa de Chatau), Lili Marlene (da célebre canção alemã), Jambalaya (do sucesso de Hank Williams, divulgado por Rosemary Clooney), Jura-me (do velho clássico criado por José Mojica no começo da década de 30) e Violetas imperiais (que Sarita Montiel divulgou na década de 50). Era um letrista versátil e de enorme facilidade em termos de comunicação popular, prática adquirida, logicamente, no seu principal mister que sempre foi o rural.

 

A década de 1940 foi para Ariovaldo Pires período de intensa atividade radiofônica, teatral e de muitas excursões por todo o Brasil. Em 1947, todavia, já com quarenta anos de idade, achou que estava na hora de constituir família. Conheceu Madalena Maria Quarello, funcionária de uma loja de bordados na rua Vinte e Cinco de Março, a qual, 22 anos mais moça que ele, pareceu-lhe ademais apropriada para atuar em suas peças de rádio ou teatro. O romance entre ambos resolveu-se rapidamente em casamento, ocorrido no dia 19 de junho de 1948. Alguns meses depois ela atuava com o marido no Circo Piolim, na peça Sertão em festa, fazendo o papel de Ermengarda. E antes que 1948 terminasse, ambos iriam para Salvador, Bahia, onde Ariovaldo passaria a dirigir a Rádio Excelsior local.

 

“Ficamos lá somente um ano”, esclarece D. Madalena. “O calor me estava prejudicando a saúde e o médico aconselhou que eu voltasse para São Paulo. Foi o tempo suficiente, porém, para que o trabalho de Ariovaldo desse bons resultados. A Rádio Excelsior subiu muito de audiência no decorrer desse ano”.

 

O primeiro filho do casal, Ariovaldo Filho, nasceu em Salvador, no dia 12 de agosto de 1949. Depois viria Ana Marilda, mas já em São Paulo, em 3 de agosto de 1951. Ambos dariam a Ariovaldo e Madalena quatro netas: Fabiana e Juliana (de Ana Marilda) e Káthia e Cláudia (de Ariovaldo Filho).

 

No final de 1949, Ariovaldo Pires retornou a São Paulo. No interregno em que permanecera na Bahia, praticamente tinha-se afastado das gravadoras e artistas de São Paulo e do Rio, apenas somando um pouco mais de experiência á sua movimentada carreira. Após curto período de readaptação, conseguiu emprego na Rádio Cultura de São Paulo (em carteira, seu registro data de 1 de março de 1950) onde, durante dois anos e meio, produziu programas naquele velho estilo caipira.

 

Seu trabalho, entre obras originais e verões, alcançava um total de 133 gravações nas diversas marcas de discos já existentes no Brasil. Estava, na verdade, entre os autores mais gravados do país e seus sucessos de venda atingiram soma de duas dezenas. Seu cérebro, entretanto, prosseguia autêntica central geradora de novas obras, com ideias e projetos seguindo-se vertiginosamente.

 

Ariovaldo Pires deixou a Cultura em outubro de 1952, passando-se logo em seguida para a Difusora de são Paulo, onde permaneceria até 30 de maio de 1956. O rádio, neste ponto, já começava a sentir a concorrência da televisão – lançada timidamente no Brasil, em 1950, mas que, na metade da década, já começava a roubar público, especialmente das 17 horas em diante. Foi necessário passar-se o chamado horário nobre do rádio para a manhã, reservando-se para a tarde e a noite os programas de público sem acesso ainda à TV. Os programas chamados caipiras passaram então para aqueles horários ‘de televisão’, perseguindo uma audiência que no vídeo não encontrava o desejado.

 

Nesse momento, Ariovaldo era o maior expert brasileiro em matéria de audições radiofônicas caipiras. Ainda trabalhando na Difusora de São Paulo, foi contratado pela São Paulo Alpargatas para coordenar-lhe todos os programas sertanejos patrocinados no Brasil, afazer que proporcionou a Ariovaldo Pires cumprir aquilo que ele mais gostava: viajar por todo o país. Viajar fazendo contatos, aprendendo coisas novas, verificando novos hábitos, analisando comportamentos regionais.

 

Seu contrato direto, porém, era com a Reclam Publicidade, que, de 1963 a 66, transferiu-se para a Rádio Bandeirantes. No último dia de 1966, enfim, com um total de 39 anos de serviço e aos 59 anos de idade, Ariovaldo Pires aposentou-se. “Aposentou-se Ariovaldo Pires”, disse-nos ele quatro anos mais tarde. “Capitão Furtado ainda vai continuar trabalhando”.


Publicado originalmente em FERRETE, JL. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja?. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Música, Divisão de Música Popular, 1985.

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