domingo, 27 de setembro de 2020

Biografia de Capitão Furtado V de VI: Confidências e opiniões

Por J.L. Ferrete

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

Vou falar bem direitinho

Que todo mundo entenda.

Nesta vida de apertura,

Cada qual que se defenda

Eu também passei apertos

Que nem cana na moenda...

Hoje sou chave de fenda.

(trecho de Dedicado aos compositores, letra inédita do Capitão Furtado)

 

Em 1971, quando fomos apresentados um ao outro por Mauro, seu irmão, estávamos em via de publicar um trabalho sobre música popular para uma série sobre MPB. Nós já conhecíamos Ariovaldo Pires de vista, havia muitos anos, e achávamos que ninguém melhor que o ‘caipira que fala com o coração’ (qualificação que ele próprio havia aceito desde os tempos de Tupi do Rio) para coordenar e redigir um trabalho no sentido já mencionado.; A publicação acabou não saindo na série que a editora lançava, mas a realização conjunta do trabalho iria servir para estreitar-nos em fraternal amizade. Mais adiante, Ariovaldo nos auxiliaria em muitas pesquisas, servindo de contato, ademais, com excelentes fontes de informação.

 

Um de seus maiores orgulhos era ter feito o ‘hino oficioso’ de Brasília – Brasília, capital da esperança. “Henrique Simonetti e eu fizemos essa marcha-hino em apenas quarenta minutos”, disse-nos ele. “Um mês antes de se estabelecer Brasília como nova capital do país, quer dizer, em março de 1960, gravamos essa composição na RGE com os Titulares do Ritmo, um trio vocal feminino e grande orquestra. Cheguei a lacrimejar de emoção, quando pela TV ouvi a marcha sendo executada nas solenidades de inauguração da nova capital”. O 78 rpm foi lançado em tempo recorde pela gravadora e conquistou enorme vendagem em todo o Brasil, encantando a todos por seu conteúdo sem exageros vazios e principalmente pela letra fácil e acessível.

 

Pardinho e Tião Carreiro formaram uma dupla que gravou inúmeras canções de Capitão Furtado

No que dizia respeito a suas composições rurais (ele preferia esse nome a caipira e, como nós, condenava a expressão sertaneja, achando-a fora de propósito para a espécie), calculava por alto que houvesse feito mais de mil. Certa ocasião abriu um caderninho que trazia consigo e fez-nos um inventário de artistas (além dele próprio) que as haviam gravado: Alvarenga e Ranchinho, Laureano e Mariano, Palmeira e Piraci, Mariano e Cobrinha, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Lourenço e Lourival, Duo Glacial, Duo Ciriema, Irmãs Castro, Irmãs Galvão, Xerém e Tapuia, Xerém e Bentinho, Ramoncito Gomes, Belmonte e Amaraí, Tibagi e Amaraí, Tibagi e Miltinho, Abel e Caim, Os Três Xirus, Cerejinha, Norinho e Ediles Nunes, Os Maragatos, Os Araganos, Conjunto Farroupilha, Craveiro e Cravinho, Cambuci e Cambuzinho, Moreno e Moreninho, Biá e Dino Franco, Xandica e Xandoca, Nhô Nardo e Cunha Jr., Borges e Borginho, Trio Norte-a-Sul, Dairé e Coleirinha, além de seu grande amigo e companheiro Paraguassu e outros mais, espalhados em rodapés rabiscados.


Quanto à sua intervenção em obras estrangeiras, falou-nos certo dia que estava intrigado com relação ao famoso Moonlight serenade, de Glenn Miller. “Essa música nasceu, vivei e prosperou sem letra”, observou. “Fui o primeiro a criar letra para ela e eu próprio traduzi o título para Serenata ao luar, gravando-a com os Titulares do Ritmo em português, na RCA Victor, em 1953. Depois apareceu um tal de Mitchell Parish com letra em inglês e eu, que fui o primeiro a pôr letra no fox, passei a versionista! Versionista de quê? Verter é traduzir de um idioma para outro! Considero-me, pois, parceiro de Glenn Miller nessa composição, mas na hora de receber sou tido como versionista. Você pode entender uma coisa dessas?”.

 

Ele criticava com indignação, a propósito, o sistema de arrecadação de direitos autorais no Brasil. “Hoje não sou mais Furtado, sou Furtadíssimo!”. Afirmava receber importâncias ínfimas até mesmo do exterior, onde tinha muitas coisas gravadas.

 

Ao lado das mágoas, houve muitas alegrias também. Por exemplo, o sucesso do seu rasqueado Paraguayita, pepita de oro (feito em 1944, com Palmeira, e por este gravado em dupla com Piraci, na Continental), mescla do castelhano com guarani, o qual lançado no Paraguai nessa época, chegou a ser música predileta do presidente Higino Morínigo, que, desejando conhecer o autor da letra, convidou Ariovaldo Pires para visitar o país junto de uma comitiva brasileira.”Morínigo fez até mesmo uma carta de agradecimento para mim”, contava Ariovaldo orgulhoso. “Negrão de Lima, que era embaixador brasileiro no Paraguai, na ocasião, chegou a dizer-me que eu havia feito mais pelo Brasil na época que toda a diplomacia brasileira em muitos anos”.

 

Outra satisfação: a Roda de Violeiros que divulgou por todo o país, revelando novos valores da música rural (na época de programações para a São Paulo Alpargatas), inclusive uma dupla de japoneses, Os Irmãos Kurimori. “O japonês foi muito importante no desenvolvimento do interior paulista”, explicava-nos Ariovaldo Pires. “Integrou-se na cultura interiorana e se adaptou a ela com dócil facilidade. Fiz dos Irmãos Kurimori um protótipo desse oriental integrado, e para Hiroshi, um deles, escrevi letra onde se narrava a vinda de um japonês para o Brasil. Hiroshi fez a música e o valseado foi gravado com nome de Saudades do Japão na Continental, em fins de 1958. Foi um dos discos regionais mais vendidos do começo de 59!”.

 

A Roda de Violeiros constituiu, na verdade, profícuo incentivo paras que revelações da música rural tivessem acesso a gravadoras de discos, dando oportunidade a um sem-número de bons artistas que ainda estão em atividade por aí no gênero. Ariovaldo Pires costumava dizer em tom de blague que havia sido responsável por uma abertura na música rural no decorrer da década de 1950, não só tirando da desinibição aqueles elementos de valor que se intimidavam ante a defrontação com a música urbana, como também comprovando que o gênero interiorano tinha tanto público (ou mais) quanto o chamado citadino. “A boa música caipira – esclarecia-nos ele – sempre teve milhares de admiradores. É que, antigamente, essa admiração só tinha meio para manifestar-se através de arremedos feitos por compositores da cidade! Dizem que a música caipira é monótona, vale só pela letra, pelo argumento que se desenvolve. Mas quanta coisa musicalmente monótona também é feita na cidade grande! E só porque o autor ou o intérprete são prafrentex, a garotada aplaude delirantemente, esquecendo a bobagem que está acontecendo. O problema é mesmo de preconceito. Note como a música rural começou a crescer depois dos anos 60. Modéstia à parte, foi com minha Roda de Violeiros circulando por todo lado que começou esse crescimento. Andei por dezenas de cidades, circulei por quase todo este país. Mas, valeu a pena. O resultado está aí, embora de alguns anos para cá deturpado, desfigurado por aventureiros e enganadores. Estes, porém, são como chuva de verão. Fazem aquele estrago danado, mas logo vão embora e só deixam más recordações”.

 

Em ocasiões diferentes e por cauda do tema que abordávamos, Ariovaldo Pires deixou escapar revelações interessantíssimas para a história da música popular brasileira. Ficamos sabendo, por exemplo, que o cantor Blecaute foi revelação dele no Arraial da Curva Torta, por volta de 1941, e até que esse nome para o artista foi sua ideia: “Era época de Guerra Mundial e o black-out, a escuridão, estava em voga. Daí o nome”.

 

Outra coisa: Adoniran Barbosa começou no Programa de Calouros da Cruzeiro do Sul, no início da década de 1930, cuja coordenação era de Ariovaldo e apresentação de Celso Guimarães. Já esclarecemos, inclusive, que esse nome – Programa de Calouros – foi criado por ele. “Adoniran, cujo nome verdadeiro era João, não saía do programa – contou-nos Ariovaldo Pires -, já viciado com a mania de ganhar ou pelo menos disputar prêmios”. Ficamos sabendo, além disso, que quem conseguiu convencer a direção artística da Copacabana a gravar Coração de luto, de Teixeirinha foi ele. “Aconteceu por volta de 1961, senão estou enganado. Teixeirinha vinha de um disco fracassado na Chantecler e ninguém queria dar uma oportunidade pra ele. Tanto insisti que, enfim, deram-lhe essa oportunidade E que sucesso foi!”.

 

A partir de 1967, embora aposentado, Ariovaldo Pires continuava trabalhando intensamente. Já estava funcionando havia algum tempo como coordenador de música em geral (mas música caipira em particular) e versionista na Editora Fermata do Brasil, onde recebia um pro labore fixo: salário mínimo e o aluguel que deixava de pagar pela sala que ocupava. Nesse local, na avenida Ipiranga em São Paulo, seu contato com o mundo artístico prosseguia. E todos que iam procura-lo (novos autores, candidatos a cantor, músicos interessados em suas letras, velhos companheiros, etc) já chegavam com a pergunta: “O papa está aí?”. Ele era conhecido como o “papa da música sertaneja”.

 

Fazia muitos planos, alguns dos quais jamais iria realizar. Um deles era pôr letra numa série organizada por João Portaro, a qual, com o título genérico de História do Brasil, iria abordar desde o Descobrimento até a fundação de Brasília. Portaro só chegou a escrever nove peças dessa coleção de trinta, pois faleceu. Orestes Farinello iria completar o ciclo., mas as letras jamais saíram. Ariovaldo Pires imaginava um LP com esse ciclo histórico, que, musicalmente, englobaria todos os ritmos surgidos no Brasil. Nenhuma gravadora mostrou interesse na ideia.

 

A verdade, enfim, é que novos tempos estavam em andamento e veteranos como ele – embora pioneiro e ‘papa’ da coisa – cediam lugar para os novos. Ariovaldo Pires foi sendo gradativamente esquecido na prática, e na teoria só lhe restava a aura de personagem histórica do gênero caipira – um mestre e orientador, em suma, para os que pretendiam começar e precisavam de conselhos objetivos.

 

No início de 1975, realizou-se em Curitiba, Paraná, o I Encontro de Pesquisadores de Música Popular Brasileira, como parte dos festejos de inauguração do novo teatro Guaíra. Indagado pelo coordenador do Encontro sobre quem poderia comparecer de São Paulo como um dos representantes desse Estado (pois os festejos e debates iriam reunir gente de todo o país), indicamo-lo entusiasticamente como presença indispensável. Havia-se pensado em famosos nomes da música popular urbana, esquecendo que não havia ninguém ligado à música rural! A indicação foi prazerosamente aceita e, no decorrer das reuniões do Encontro, Ariovaldo Pires transformou-se em foco das atenções de todos, estando presentes, vale dizer notáveis nomes da MPB.

 

A partir de então, Ariovaldo Pires retornou a notoriedade, agora envolvido com a pesquisa e como fonte viva de informações da música popular brasileira. Por causa disso ele chamava este autor de “seu padrinho” e até falecer nunca deixou de honrá-lo com dedicatórias e escritos nos quais agradecia por “havê-lo empurrado”. Sua atividade nesse aspecto, por outro lado, fez com que sua vida se dinamizasse intensamente, na forma de pesquisas, debates, atuações em programas de todo tipo e viagens constantes.

 

A saúde, contudo, já não era a mesma, embora seu espírito ainda fosse de um jovem. Em 1979, poucos meses antes de falecer, recebeu merecido troféu (reunindo aos outros quinze que colecionava em sua carreira) por seus cinquenta anos de vida artística. Em outubro deste ano, morre seu irmão mais velho, o radialista Mauro Pires, fato que o abalou profundamente. Disso fomos testemunha por ocasião do sepultamento. Seu aspecto físico já era preocupante.

 

Viajou para o Paraguai, porém, contratado que fora para uma pesquisa sobre a música desse país que seria transformada num brinde de fim de ano do Banco do Brasil. A viagem lhe foi fatal, embora exames médicos prévios a tivessem autorizado. Vimo-nos pela última vez no dia 6 de novembro de 1979, por ocasião dos funerais da mãe deste autor. Ele compareceu extraordinariamente abatido, trôpego, auxiliado por sua filha Marilda, a quem delicadamente censuramos por tê-lo deixado sair de casa naquele estado. “Ele fez questão de vir”, explicou-nos Marilda. “Queria a todo custo manifestar-lhe pessoalmente condolências”. Lembramos, inclusive, que a presença dele naquele local só serviria para piorar seu estado psíquico: é que, alguns dias antes, o corpo de seu irmão Mauro fora velado exatamente na mesma sala onde estava sendo velado o da mãe deste autor.

 

Quatro dias depois – 10 de setembro de 1979 -, desparecia aquela criatura simpática, prestativa, criativa e modesta que, conforme sua mulher, “gostava de andar de ônibus para anotar as conversas que ouvi durante viagem e transformá-las em quadrinhas!”. Morreu às cinco horas da tarde, sábado, dia de chuva, após cinco paradas cardíacas, na UTI do Hospital Presidente, na avenida Nova Cantareira, São Paulo.

 

Soubemos do seu falecimento, no dia seguinte bem cedo. Fomos, juntamente com João Pacífico, dos primeiros a chegar ao velório. Ao vê-lo inerte no caixão, sentimos que estávamos sendo furtados também. Furtados de uma das maiores figuras da música brasileira em todos os tempos. Aquilo que com nos deparávamos representava o fim do ciclo mais nobre da poesia e da música caipira em nosso país.

 

O compositor João Pacífico

No nosso adeus, tendo a nosso lado como testemunha outra figura legendária que é João Pacífico, desejamos que, fosse lá onde ele estivesse naquele momento, prosseguisse alegrando e encantando com seu fino espírito quando assim o merecessem. Daí por diante, Ariovaldo Pires – o incontestavelmente insubstituível Capitão Furtado – passava para as páginas da história. Um infarto fatal assim determinou. Nos seus 72 anos de idade.

 

Publicado originalmente em FERRETE, JL. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja?. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Música, Divisão de Música Popular, 1985.

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