terça-feira, 26 de janeiro de 2021

A chanchada no cinema brasileiro, parte II de V: Nhô Anastácio Chegou de Viagem

Capítulo II: Nhô Anastácio Chegou de Viagem

 

Por Afrânio Mendes Catani e José Inácio de Melo Souza

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

CHANCHADA (do esp. plat. chanchada, "porcaria") s. f. Bras. Teat. Cin. e Tel. Peça ou filme sem valor, em que predominam os recursos cediços, as graças vulgares ou pornografia. 2 Qualquer espetáculo de pouco ou nenhum valor. (Aurélio, p. 314)


Precisamente a 19 de junho de 1898, segundo as pesquisas de Vicente de Paula Araújo, Afonso Segreto, que viajava a bordo do vapor Brésil vindo de Bordéus, acionava a sua pequena máquina Lumière antes de nascer à terra e impressionava com “vistas naturais” os primeiros pés de filme virgem no país. Operador, máquina e filme declaradamente eram estrangeiros. Graças ao fato de sermos um país “essencialmente agrícola” importávamos, além de Segreto e Lumière, caixão de defunto e palito de dentes, água mineral e sal. E, se houvesse condições técnicas, também importaríamos eletricidade, pois éramos pobres em energia elétrica.

 

O centro mais importante do Brasil, o Rio de Janeiro, somente obteve um serviço razoável de energia elétrica depois de 1905, quando da remodelação da cidade. Data desses anos a oportunidade de os exibidores de novidades ultrapassarem a categoria dos ambulantes para ascenderem à de exibidores fixos. Conseguindo apresentar condignamente as suas “vistas”, sem tremores e interrupções, lançavam as bases para o crescimento do mercado exibidor urbano – logo formando cadeias encabeçadas por Pascoal Segreto e depois por Francisco Serrador.

 

A alforria do mercado liberou todos os grilhões que tolhiam a invasão da produção internacional. A galope entraram no País, pelo porto do Rio de Janeiro, as mais diversas marcas de fábricas de filmes d`além-mar, numa enchente que hoje sabemos que é sazonal e sempre repetida a cada novo produto da metrópole.

 

Entre meados da primeira década do século até 1911-12, o cinema brasileiro sobreviveu e cresceu, para espanto daqueles que estudaram os pioneiros. Realizamos “naturais”, ou seja, documentários de curta e longa-metragem; “posados” – filmes de ficção; experiências técnicas diversas como a de gravação do som na fita (Paolo Benedetti); boa quantidade de fitas “cantantes”, com cantores que se postavam atrás dela e acompanhavam com suas vozes a projeção da fita.

 

Os filmes brasileiros ganhavam espaço devido ao perfeito entrosamento entre produtores e exibidores. Vários filmes fizeram enorme sucesso no seio de seu público, enaltecendo-se sempre o exemplo espetacular da revista musical Paz e Amor, que se aproveitava o momento político de 1910 no Rio de Janeiro para perpetrar virulentas sátiras.

 

A partir de 1912-13 os centros produtores metropolitanos consolidaram-se e, internamente, acuaram o filme brasileiro. O resultado da rasteira internacional foi bem sublimado por Pedro Nava no segundo volume de suas Memórias: “De noite era o Velo (...) Eu tinha na mais recuada infância a fantasmagoria do Kinema, na Rua do Ouvidor; em Juiz de Fora, filmes arfantes do gênero Honra e Amor, no Farol. Em Belo Horizonte Filibus, um dos primeiros seriados, no Odeon. Mas o alumbramento veio no Velo. Virgínia Pearson (...) Em Seguida aquele demônio da perversidade, unhas e bocas cheias de sangue qual vampiro, que era a dinamarquesa Theodosia Goodman – aliás Theda Bara (...) seus beijos eram mortais e deles decorriam parricídios, incestos, adultérios, concussões, naufrágios, traições à pátria porque todos que tinham provado daquela maconha queriam repetir. Mesmo à custa da própria vida, da própria honra. Por falar em honra, essa é que não faltava nos filmes fabulosos de William Farnum ou como dizia – Viliã Farnúm (...) Mas acontecimento de importância (...) foi a chegada no Brasil, no Rio (...) das latas contendo as bandas de Os Mistérios de Nova York (...) a estrela bem amada das multidões eram Pearl White (...) Mas acima de William Farnum, da Virginia Pearson, de Theda Bara e de Pearl White com os Mistérios de Nova York foi, na ocasião, o advento de uma das coisas mais importantes de minha vida: o conhecimento de Charles Spencer Chaplin...”.

 

Mesmo com o predomínio estrangeiro alguns abnegados continuaram a realizar filmes nacionais construindo, algumas vezes, movimentos locais que ficaram conhecidos na história do cinema brasileiro pelo nome de Ciclos: Campinas, Recife, Pelotas, Guaranésia, Cataguases.

 

A massa de envolvidos em produções – aliás pouquíssimas de ficção – no Rio, em São Paulo e no resto do Brasil ganhava seu pão no cinema por meio da “cavação”. Maria Rita Galvão, em Crônica do Cinema Paulistano, explica o verdadeiro sentido da palavra “cavação”: era a internação pelos pais dos cinegrafistas com um equipamento mínimo, filmando lugarejos, potentados locais, famílias ricas, as belezas exóticas da terra, - futuras composições de cinejornais ou de curtas-metragens pagas pelo “homenageado”. Isto quando havia filme na máquina...Outra variante da “cavação” era a promoção oficial, a propaganda dos atos do governo, inaugurações mil, efígies laureadas em relevo, homens probos, etc.

 

Tal tipo de cinema tornou-se tão frequente, principalmente depois de 1934 quando institui-se a obrigatoriedade do complemento nacional nas programações, que as cartas às colunas de cinema dos jornais estamparam amiúde a insatisfação do público: “O cinema nacional (...) não tem sido mais que uma incessante, banalíssima e enjoativa demonstração de rios, florestas e cidadezinhas-de-interior. A nós nos está parecendo que o público pagante já se aborreceu de ver igrejinhas pintadas à cal e árvores do nosso hinterland, e já se está (...) afogando de tanto ver ‘rios correndo mansamente, por sob a ponte branquinha, bulindo na alma da gente’...” (carta de Ubirajara Delácio e Julio dos Santos ao rodapé de Guilherme de Almeida em O Estado de S. Paulo de 22/9/37).

 

Conhecidos alguns cortes do cinema na República Velha resta saber como se comportavam os exemplares primitivos da chanchada no período. No espaço de tempo que vai do começo do século até 1929 alcançaremos algumas respostas para a questão, pois os trabalhos a respeito são poucos. Nos limites impostos por Jean-Claude Bernardet em sua Filmografia do Cinema Brasileiro, ou na já citada pesquisa de Vicente de Paula Araújo, acrescida do livro de José Ramos Tinhorão (Música Popular: Teatro e Cinema), poderemos obter dados mais significativos.

 

Seguindo as pistas oferecidas por Bernardet no que diz respeito às áreas de significação de chanchada, veremos que os primeiros filmes nacionais de características marcantes vêm do Rio de Janeiro, o que não é de estranhar, já que a produção carioca, em relação aos outros estados, sempre foi mais volumosa.

 

Estes filmes aproveitavam figuras populares do início do século que eram, segundo Tinhorão, os “cantores de circo, dos espetáculos ao ar livre do Passeio Público, das casas de chope da Rua do Lavradio e os atores do teatro de revista da Praça Tiradentes”. Alguns dos astros destes espetáculos formavam a galeria de artistas da primitiva comédia musical, como era o caso de Nhô Anastácio Chegou de Viagem (1908). Vicente de Paula Araújo contou brevemente o enredo do filme: Nhô Anastácio narrava “as peripécias de um roceiro que veio passear no Rio de Janeiro, desembarcou na estação da Central, andou pelas ruas, viu a Caixa de Conversão, entrou no Palácio Monroe, visitou o Passeio Público, enamorou-se de uma cantora e tudo se completou com a chegada súbita da esposa. Por fim, a série de quiproquós, a perseguição cômica, a reconciliação geral, o happy end...”. Tudo isso em 15 minutos.

 

Nhô Anastácio pertencia à linha dos filmes “cantantes” e contava no seu elenco com o ator-cantor José Gonçalves Leonardo no papel-título. Oriundo do circo, Leonardo era figura popularíssima. Vê-se, por outro lado, que o enredo discorria sobre um matuto que sai da roça e chega à cidade, elementos antecipadores dos personagens depois desenvolvidos por Genésio Arruda e Mazzaropi e, enquanto tema, cerne da eterna tensão entre a cidade e o campo – assunto permanente no cinema brasileiro e várias vezes presente na chanchada. Por último, insere a música cuja canção-título foi, segundo Tinhorão, gravada em disco da Casa Edison.

 

A somatória de atores-cantores populares, muitos deles de circo como Leonardo, quiproquós e personagens populares, encontrou seguidores em outros filmes como Os Capadócios da Cidade Nova, O Comprador de Ratos e Sô Lotero e Siá Ofrásia com seus Produtos na Exposição, todos de 1908.

 

A outra face das primeiras comédias musicais foram os carnavalescos. Como filmes estivais eram de rápido consumo e, logicamente, enroscados no processo “cavação”. Neles nada distingue A Fita do Carnaval (1909) de Os Três Dias do Carnaval Paulista (1915). Os anúncios do primeiro esclarecem que “como fita nacional é uma perfeição. Nela se veem inúmeras pessoas conhecidas do nosso mundo social”, enquanto que o anúncio do filme de 1915 afirmava que está presente “todo São Paulo elegante em cinematografia (...) vários automóveis elegantes (...) Conde de Prates, M. e Mme. José Paulino Nogueira, Washington Luiz, Rodrigues Alves...”. É, igualmente, difícil distringuir um trecho de cinejornal de 1928, onde o Dr. Rudge Ramos pessoalmente dirige o corso na Avenida” (Cine-Jornal Santa Terezinha número 4), de uma fita carioca como o Corso de 19 de Fevereiro (1908), cujo dístico era “fita de nosso atelier onde se veem nitidamente as principais famílias da elite carioca”.

 

As inovações nos carnavais de todos os anos e nos corsos da Avenida viriam do Rio para São Paulo em 1918, através da fita O Carnaval Cantado. A apresentação na capital paulista ocorreu fora da quadra momesca mas, mesmo assim, alcançou um sucesso absoluta. A fita era um “cantante” que misturava as tradicionais cenas de corso, bailes e grupos carnavalescos (Tenentes do Diabo, Democráticos e Fenianos) com músicas cantadas por “grande orquestra e massas corais”, embalando o público com “vários tangos e canções mais populares”. Em bom estilo de revista teatral havia, no final, uma apoteose a Venceslau Brás, então Presidente da República. O espetáculo carioca era coordenado pelo grupo do Cinema Odeon e repetiria o feito por outros anos seguidos, mas com menos impacto. O sucesso de O Carnaval Cantado foi realizado por 500 exibições no Rio e 37 dias de exibição nos cinemas de São Paulo (êxito salientado por Bernardet em sua Filmografia, ímpar em relação aos outros filmes do gênero).

 


Outros Carnavais Cantados foram apresentados em 1919, 21, 23, 24, 27 e 28 (
O Carnaval Cantado de 1927 trazia as seguintes frases: “com as músicas populares e cantando por um grupo de cantores da ‘Flor do Abacate’, sociedade carnavalesca do Rio – E como recordar é viver, vivíamos com a recordação do carnaval. Venha ver quanta loucura fez o Momo este ano”).

 

Embora a fita brasileira de 1927, convidasse o público a participar das “loucuras” do carnaval, quem realmente fazia “loucuras” cinematográficas no mesmo ano era a Warner Brothers com seu The Jazz Singer. E se Al Jonson tivesse a chance poderia endereçar, em algum all talkie, aos seus Brazilian friends do cinema brasileiro a seguinte canção de amor:

 

Meu bem

Não chora,

Arrume a trouxa

Diga adeus e vá-se embora.

 

(Estribilho de Sai da Raia, de Caninha- citado por Tinhorão)

 

Publicado originalmente em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Col. Tudo é História, número 76).

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