sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Especial um ano sem José Mojica Marins: Mas afinal, como Virgílio Roveda, o Gaúcho, conheceu José Mojica Marins, o Zé do Caixão?

Capítulo 2- O Golpe de Mestre

 

Por Matheus Trunk

 

Início de 1964. Virgílio Roveda tem dezenove anos e deixa a casa dos pais em Vacaria, interior do Rio Grande do Sul. Ele deixa o estado natal pela primeira vez. Ex-soldador, ferreiro e mecânico, seu sonho profissional não está na indústria automobilística. Antes, o jovem também serviu o Exército Brasileiro. Mas logo percebeu que passar o dia inteiro no quartel não era a sua praia. Seu sonho era audacioso. Ele queria trabalhar com cinema. Ser artista? Não. Roveda não desejava isso e não tinha o tipo físico de galã. Magro, franzino e um tanto tímido, Gaúcho queria atuar atrás das câmeras. Essa era sua obsessão desde quando ele matava as aulas noturnas no antigo segundo grau. Tudo por causa do bendito cinema. Mas Roveda não era o único que trocava as aulas pela sétima arte. Os colegas Darci e Ênio também perdiam horas e horas nas salas de cinema.

Os testes macabros: Virgílio Roveda e Mojica ao fundo. Acervo pessoal de Virgílio Roveda

“Eu não ia ao colégio e ficava vendo filmes. Assim, fui assistindo trabalhos de diretores europeus como Buñuel, Godard, Fellini, Bergman. Eu via tudo isso ainda em Vacaria”. Na cidade, existiam duas salas de cinema: o Guarani (com uma programação interessante) e o Real (mais dedicado aos faroestes). No início dos anos 60, a cidade tinha apenas 30 mil habitantes. Nesse período, poucos devem ter ido tanto às salas de cinema da cidade como Gaúcho e seus amigos. Um filme que chamou a atenção do jovem foi Viridiana, do diretor espanhol Luis Buñuel. O cinema autoral europeu chamava bastante a atenção dele. As produções comerciais norte-americanas não despertavam tanto interesse. Um pensamento começou a brotar na cabeça de Roveda: “Preciso fazer esse troço: cinema”. Ser mecânico de automóveis não estava no plano de Virgílio por muito tempo. Era um empregado temporário que fazia o jovem auxiliar financeiramente os pais e irmãos.

O contato com a produção cinematográfica brasileira acontece com as chanchadas e clássicos como O Cangaceiro, de Lima Barreto. Um filme nacional que causou impacto no jovem é O Pagador de Promessas, do cineasta Anselmo Duarte. Este longa-metragem recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962. Foi um dos primeiros filmes nacionais a serem premiados no Exterior. Ainda em sua terra natal, o mecânico consegue ter acesso a outras cinematografias latino-americanas. A referência eram as produções musicais argentinas estreladas pelo cantor Carlos Gardel e os filmes mexicanos do comediante Cantinflas. O músico Miguel Aceves Mejía era outra estrela internacional nos anos 60. As películas rancheiras estreladas pelo ídolo fizeram um sucesso estrondoso no Brasil. Tanto que diversas duplas sertanejas nacionais começaram suas carreiras inspiradas em Mejía. Roveda também assistiu aos trabalhos do cantor no saudoso Cine Guarani. Infelizmente, os dois cinemas da cidade que o técnico e amigos frequentavam não existe mais.

Centro da pequena Vacaria (RS) nos anos 1960: Virgílio Roveda nasceu nessa cidade em 02/08/1945. Acervo Clicrbs

Roveda percebe que está perdendo tempo permanecendo em sua terra natal. Decide então lançar-se numa aventura e ir para o Rio de Janeiro. Consegue carona com um amigo caminhoneiro. Na época, a cidade era tida como a capital cultural do país. O jovem sulista partido com bom humor. Seria fácil conseguir alguma ocupação na Cidade Maravilhosa. Cheio de energia, Gaúcho topava qualquer negócio. Até mesmo uma ocupação mais humilde. Como ele não tinha cara feia. Levou do Rio Grande apenas uma muda de roupas.

Bate na porta das produtoras cinematográficas tentando alguma oportunidade. Vivia-se o período posterior ao Golpe Militar. Grande parte da classe artística brasileira estava frustrada. A maioria das produções estava parada. Gaúcho fracassa em sua primeira tentativa. Frustrado e com pouco dinheiro, acaba comendo pouco e tendo de dormir na praia. “Eu tinha uma grana controlada. Não dava para fazer grandes coisas”.

Registro do início da década de 1960: Catedral de Nossa Senhora da Oliveira, no centro de Vacaria. 

A situação ia se complicando. “Melhor regressar pro Rio Grande”, pensa. Roveda inicia a volta para sua terra natal. Mais uma vez de carona. Por acaso, resolve ficar alguns dias em São Paulo. Foi quando tudo mudou. Gaúcho nem imaginava, mas ele regressaria ao Sul com o futuro praticamente assegurado na sétima arte.

O Brás é um bairro da região central de São Paulo conhecido pelo comércio de rua. Numa tarde de março de 1965, o jovem Virgílio Roveda procurava uma camisa e uma calça por preços populares. Queria voltar para o Sul com um guarda-roupa maior. Peregrinou pelos estabelecimentos do bairro com o ânimo usual.

Virgílio Roveda, o Gaúcho no início da década de 1960. Ele é o terceiro da foto. Acervo pessoal de Virgílio Roveda 

Mas o pesado verão paulistano não colaborava. A fome e a sede batiam na porta. Por isso, Gaúcho decidiu interromper as compras para dar uma esticada em um bar. Uma pessoa chama atenção no estabelecimento. Era um homem de quase 30 anos, barba e unhas enormes. Vestido com um terno azul marinho e colete, o tipo chama a atenção de todos no boteco. Conversa animadamente com os demais e dá risada de tudo. Curioso e inquieto, Gaúcho resolve conversar com um dos companheiros do homem de terno azul marinho.

- Amigo, quem é aquele cara de unhas grandes?

- Você não conhece ele? É o José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Ele é cineasta e produtor. É famoso em todo o Brasil.

Os olhos do jovem sulista começaram a brilhar. Tinha achado o caminho para iniciar sua carreira no cinema. Queria trabalhar na área de qualquer maneira. Não podia perder aquela oportunidade. O assistente de Zé do Caixão lhe informou que o grupo iria começar um longa-metragem em dois meses apenas. Estavam precisando de figurantes. Dava tempo para retornar a Vacaria e juntar um valor em dinheiro. Naquele dia, Gaúcho e Mojica foram rapidamente apresentados. Nenhum dos dois poderia imaginar que se tornariam longos parceiros de trabalho. Ao todo, Virgílio Roveda e Zé do Caixão trabalharam juntos em 15 longas-metragens.

Virgílio Roveda e José Mojica Marins no intervalo de filmagens de "A Quinta Dimensão", filme lançado em 1984. Acervo pessoal de Virgílio Roveda

Mojica não lembra ao certo quando conheceu Gaúcho. “Sei que foi na época em que estávamos fazendo O Diabo de Vila Velha”, destaca o cineasta. “Estávamos precisando de atores para compor a figuração. Não importava a origem da pessoa. Lógico que ele, sendo do Rio Grande do Sul, chamou a nossa atenção, e o apelido acabou pegando. Foi inclusive Mojica quem deu o apelido que Roveda usa no meio cinematográfico até hoje: Gaúcho.

A permanência em Vacaria foi rápida. O jovem não chegou a comentar com os pais que pretendia seguir carreira na área cinematográfica. Disse apenas que tinha conseguido emprego na pujante capital bandeirante. “Vacaria ficou pequena pra mim”, argumentou. Não chegou a comentar que pretendia fazer cinema em São Paulo. Nem que tinha conhecido o cineasta José Mojica Marins, o famoso Zé do Caixão.

A despedida da família foi feita de maneira rápida. Seu Demétrio e dona Santina nunca pensaram que ficariam sem rever o filho Virgílio durante quatro anos. Durante todo esse tempo, a família no Sul não teve nenhuma notícia do jovem. Nem mesmo se estava vivo ou morto. “Eu não faria isso novamente hoje”, relembra Gaúcho.

Com poucos pertences, o jovem logo estava de volta à capital paulista. Sabia que iria começar a carreira cinematográfica por baixo. Por isso mesmo, Roveda arrumou emprego numa metalúrgica. Sabia que o cinema era uma área instável. Por isso, Gaúcho pretendia ter um emprego fixo. Na metalúrgica, a função do jovem era construir carrinhos de feira. A empresa ficava na alameda Nothmann, no bairro paulistano de Santa Cecília. Para fabricar os carrinhos, era necessário usar máscara e um avental de couro. O jovem sulista não se entendeu muito bem com os carrinhos. Acabou ficando apenas um mês nesta função. Isso porque ele ficava mais tempo nos estúdios de Zé do Caixão.

Filmagens de "A Quinta Dimensão" em Campinas (SP): Gaúcho prepara a câmera. Ao seu lado, o assistente de câmera e eletricista Geraldo Damasceno, o Geraldão. O diretor José Mojica Marins está a direita. Acervo pessoal de Virgílio Roveda 

Este é um dos capítulos do livro “O Coringa do Cinema”, de minha autoria publicado pela editora Giostri em 2013