terça-feira, 13 de abril de 2021

Bastidores do rádio, parte II de VII: Avant-Premiere e lançamento do rádio no Brasil

 Bastidores do rádio, parte II de VII: Avant-Premiere e lançamento do rádio no Brasil

 

Por Renato Murce

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 


Voltando atrás direi que corria o ano de 1922, cheio de acontecimentos apaixonantes para o povo brasileiro, principalmente no setor político, quando as campanhas para a sucessão do Sr. Epitácio Pessoa, tendo como candidatos Nilo Peçanha e Artur Bernardes, tomaram uma dimensão e uma virulência indescritíveis. O candidato mineiro, duramente atacado pela imprensa, reunia a maior soma de ódio que um político jamais conseguiu polarizar em nosso país.

 

As eleições de março daquele ano, conforme se esperava (mas não se desejava), deram a vitória ao candidato governista por uma margem de cerca de 150 mil votos sobre o Sr. Nilo Peçanha. As manifestações de inconformismo começaram a aparecer em toda a parte, principalmente nos quartéis, na imprensa, no congresso, onde o Sr. Bernardes era impiedosamente injuriado, entrando nesse clima até mesmo o Clube Militar, que aceitara como verdadeiras as célebres “cartas falsas”, atribuídas ao ex-governador de Minas. Esse ambiente culminou no célebre episódio da insurreição do Forte de Copacabana, até hoje lembrado como o heroico feito de Os Dezoitos do Forte.

 

Isso aconteceu em 5 de julho de 1922. Epitácio Pessoa conseguiu, com a mão de ferro, dominar a situação. Anunciava-se e preparava-se, com grande pompa, a memorável Exposição do Centenário da Independência, que seria inaugurada a 7 de setembro. Para essa data também se marcara a primeira demonstração do rádio no Brasil. O povo ainda estava traumatizado pela derrota do seu candidato e pelo sacrifício heroico dos bravos de Copacabana. Era preciso, portanto, que o governo se empenhasse o mais possível para que a Exposição de Centenário alcançasse êxito fora do comum, servindo talvez como uma cortina de fumaça para amenizar a revolta e conter os ânimos, quando da posse do Sr. Artur Bernardes, que ocorreria em 15 de novembro.

 

Assim, milhares de homens trabalhavam exaustivamente preparando o terreno e os pavilhões para a Exposição, terreno obtido com o arrasamento, em tempo recorde para a época, por parte do prefeito Carlos Sampaio, no antigo morro do Castelo, com o que conquistou larga faixa de aterro na baía de Guanabara (hoje, a Esplanada do Castelo, um dos lugares mais valorizados do Brasil). Ainda como grandes atrações, anunciava-se, além da demonstração radiofônica, com o presidente Epitácio falando para todo o Brasil, a presença do rei Alberto I, da Bélgica. Conhecido como o rei herói, com sua ação na Primeira Guerra Mundial de 1914, conquistara a admiração e estima de todo o mundo, uma vez que o seu pequenino país, na dramática resistência de Liège, proporcionara nos aliados condições para poderem organizar-se e enfrentar as hostes do Kaiser, imensamente superiores em número e preparo bélico.

 

Outras realizações para motivar o interesse do público eram anunciadas, como exibição de artistas de variedades, com as melhores bandas de música, espetáculos de pugilismo, etc.

 

Mas o que mais ansiosamente se esperava era o fenômeno de experiência radiofônica, do espantoso meio de comunicação pelo sem-fio, do qual todos ouviram falar, mas que despertava na maioria certa incredulidade, querendo-se como são Tomé, “ver para crer”.


Assim, chegou o tão ansiado 7 de setembro de 1922, com as suas manifestações cívicas de hábito: paradas, discursos, manchetes em revistas e jornais, tendo como ponto culminante a Exposição do Centenário da Independência. Aberta ao público à tarde, anunciava para as 21 horas a sua inauguração oficial, com o discurso do presidente Epitácio Pessoa, no qual o mandatário da nação iria se dirigir ao país num pronunciamento importantíssimo. O numeroso público teve ainda uma surpresa e uma sensação inédita, conforme conta esta nota colhida no livro já citado, de Saint-Clair e publicado em A Noite, de 9 de setembro de 1922: “Uma nota sensacional do dia de ontem foi o serviço de rádio-telephonia e telefone alto-falante, grande atrativo da Exposição. O discurso do Sr. Presidente da República, inaugurando o certâmen foi, assim, ouvido no recinto da Exposição, em Nichteroy, Petrópolis e em São Paulo, graças à instalação de uma possante estação transmissora do Corcovado e de aparelho de transmissão e recepção, nos lugares acima. Desse serviço se encarregaram a Rio de Janeiro and São Paulo Telephone Company, a Wetinghouse Internacional Company e a Western Eletric Company. Á noite, no recinto da Exposição, em frente ao posto de Telephone Público, por meio do telefone alto-falante, a multidão teve uma sensação inédita: a ópera Guarany de Carlos Gomes, que estava sendo cantada no Theatro Municipal, foi ali, distinctamente ouvida, bem como os aplausos dos artistas. Egual cousa sucedeu nas cidades acima”.

 

Como se viu, pois, a expectativa era enorme. Foi assim que nasceu o rádio no Brasil. Nasceu não seria bem o termo, foi um parto prematuro, mas uma experiência válida, tão extraordinária para a época que muitos daqueles que a presenciaram ainda duvidavam do que se afigurava um milagre! Porque o rádio brasileiro nasceu, de verdade, em 20 de abril de 1923, graças ao pioneirismo, capacidade e esforço de dois grandes sábios brasileiros: Edgard Roquete Pinto, renomado escritor e antropólogo, autor de Rondônia e Henrique Moritze, de cultura poliforme e por largo tempo diretor do Observatório do Rio do Janeiro.

 

Fundaram, na Academia Brasileira de Ciências, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, com o prefixo PRA-A. Passou a funcionar no pavilhão da Tchecoslováquia, da Exposição do Centenário, cedido por aquela finalidade. A esses dois nomes, indelevelmente ligados à radiofonia brasileira, em pouco juntaram-se outros, como Elba Dias, que fundou logo a seguir a Rádio Clube do Brasil – PRA-B -, e uma denodada equipe pernambucana liderada pelos irmãos Moreira Pinto, Augusto Joaquim Pereira, João Cardoso Alves, George Gotis e Carlos Lira Filho, entre outros. Estes, em 17 de outubro de 1923, mandavam n o ar a Rádio Clube de Pernambuco, isto é, seis meses depois da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. O interessante é que os pernambucanos reivindicavam o pioneirismo da implantação do rádio em nossa terra, porque já existia, naquele Estado, mais propriamente no Recife, desde 6 de abril de 1919, a Rádio Clube de Pernambuco, que tinha o objetivo único de incentivar a radiotelegrafia, sendo reorganizada em 17 de outubro de 1923, quando iniciou experiências radiodifusão com um transmissor de dez watts.

 

Mas esse é um detalhe que não tira os méritos daqueles desbravadores do nosso sem-fio, aos quais vieram juntar-se depois muitos outros.

 

Apesar do impacto causado com a aparição do rádio, a situação nos primeiros anos não era muito animadora, por diversas razões, de origens as mais diversas. Passava o país por um período de inquietação, de insatisfação geral, de inconformismo do povo pelo resultado das urnas, que levou o Sr. Artur Bernardes à presidência da república, criando inúmeros focos de subversão e rebeldia que se estendiam por toda a nação, e que viriam a culminar com um novo 5 de julho de 1924, com a revolução paulista comandada por Isidoro Dias Lopes, que motivaram um permanente estado de sítio, imposto pelo governo durante quase todo o seu quatriênio, com ação drástica contra o povo e contra a imprensa (o jornal Correio da Manhã, por exemplo, foi sumariamente fechado por um ano). Nessa situação, o rádio lutava com a carência de recursos técnicos, além das dificuldades enormes para organizar programas que interessassem ao público ouvinte, para não falar na pequena soma de aparelhos receptores, ainda vendidos a preços proibitivos para a época.

 

Outra razão era que, no começo, pretendiam impor o rádio apenas como veículo de um tipo de cultura, com uma programação quase que só de música erudita (da qual quase ninguém gostava), conferências maçantes, palestras destituídas de qualquer interesse, enfim, um rádio sofisticado para meia dúzia de “crentes”, não atingindo a massa.

 

O magnífico slogan da Roquete Pinto – “Trabalhar pela cultura dos que vivem em nossa terra e pelo progresso do Brasil”. divisa que, ainda hoje, a Rádio Ministério da Educação menciona orgulhosamente – não permitia que se popularizasse o rádio, tal como ele precisava para se expandir. Nada de publicidade, nada de música popular (em samba, então, nem era bom falar), nada daquilo que, de algum modo, desvirtuasse ou atingisse as boas intenções do programa traçado na famosa divisa.

 

Assim, os primeiros anos do rádio foram difíceis: muita música clássica, muita ópera, muita “conversa fiada” e a colaboração graciosa de alguns artistas da sociedade. Quase todos apresentavam números do mesmo estilo dos discos irradiados. Eu mesmo apresentei-me na Rádio Sociedade, a convite do meu dileto amigo Roquete Pinto, em junho de 1924 (data que assinalo como a minha entrada para o sem-fio), com um programa operístico. Sempre fui muito ligado ao movimento lírico no Brasil; convivi com a maioria dos grandes artistas que por aqui aportaram. Conheci de perto Tita Rufo, Claudia Muzio, Galli Curci, Tito Schipa, Lili Pons, Bidu Saião, Miguel Fleta, Chaliapine, Caterina Borato, e muitos outros.


Fazendo, certa vez, uma demonstração dos meus “dotes” vocais para o grande baixo-lírico francês Marcel Journet, este muito me estimulou e, talvez para me agradar, disse que minha voz se assemelhava um pouco à sua, que eu devia estudar, e coisa e tal. Fiquei numa euforia doida. Dias depois estava estudando canto com uma professora italiana, Climene Baroni. Pouco tempo após, cantando uma reunião em casa do Dr. Roquete, em Copacabana, ele gostou e me convidou para cantar na Rádio Sociedade. Organizei um programa pretencioso: “Hableta Zingara”, do Trovador, de Verdi; “Vecchia Zimara”, da Boheme, de Puccini; “Élegie”, de Massenet. E ainda cantei um dueto de I Puritani, de Belini, com um jovem barítono que estava estreando no Brasil, no Teatro São Pedro (hoje João Caetano): Carlo Tagliabue, que viria mais tarde a ser um dos maiores destaques do Metropolitan de Nova Iorque.

 

Corria a lenda que as plateias do Teatro Lírico e do Municipal, no Brasil, e a do Colón, de Buenos Aires, eram muito exigentes. Artistas aplaudidos aqui, estariam consagrados para o resto do mundo. De fato isso aconteceu com muitos cantores como Galefi, Fleta, Pértile, Claudia Muzio, Schipa, Cateriano Borato, Tita Rufo, o próprio Caruso, e outros. Penso que o mesmo tenha acontecido a Carlo Tagliabue, que não seis e ainda é vivo. Creio que sim.

 

Mas voltemos ao programa que marcou a minha entrada para o rádio, rádio que eu já “namorava” havia bastante tempo, e do qual nunca mais saí. Fui acompanhado pelo excelente pianista Mário de Azevedo e portei-me mais ou menos, sem decepcionar. Os críticos se manifestaram. Gastão de Carvalho, do Jornal do Brasil, escreveu algumas palavras de estímulo ao “jovem baixo” que despontava; Itiberê da Cunha, do Correio da Manhã, foi mais generoso e elogiou bastante. Somente Oscar Ganabarino, do Jornal do Comércio, “meteu o pau”. Mas Guanabarino era conhecido por sua severidade e sua agressividade. Era o José Fernandes daqueles tempos. Assim, entrei para o rádio, mas a minha aventura, no campo lírico, termino aí.

 

Qualquer artista, principalmente artista lírico, precisa ter muita tenacidade, muita força de vontade, estudar muito. E eu não possuía nenhum desses atributos. Não deixei, contudo, de colaborar como pude com o rádio. Diletante da música clássica e operística, colecionara eu cerca de 1.200 discos do famoso “selo vermelho”, da RCA, gravados pelas maiores celebridades de todo o mundo. Dada as condições precárias com que funcionavam as rádios (Sociedade e Clube do Brasil), os locutores faziam apelos aos ouvintes, solicitando que se inscrevessem como sócios, mediante a módica contribuição de 5$000 (cinco mil réis); meio centavo, hoje). E que colaborassem enviando bons discos de suas discotecas para melhorar os programas. Então, a cada momento, era anunciado: “A seguir transmitiremos o ‘Prólogo’ da ópera Il Pagliacci, (de Leoncavalo, em disco gentilmente cedido pelo nosso ouvinte, Dr. Arnaldo Guinle”; ou “Acabaram de ouvir ‘Caro Nome’ do Rigoleto, de Verdi, colaboração do nosso sócio e amigo Sr. Renato Murce”. E por aí a fora...Quanto à contribuição de 5$000 mensais, muitos se inscreveram com entusiasmo, mas pagar mesmo, que era bom, nada ou quase nada, num veso bem brasileiro. Depois de certa resistência, as emissoras Depois de certa resistência, as emissoras tiveram que partir mesmo para o anúncio, para a fase comercial, ainda muito difícil de conquistar, e aos poucos foram se firmando. O radiojornalismo apenas engatinhava. A única coisa que se aproveitava, no gênero, era o “Jornal da Manhã”, de Roquete Pinto, lido por ele mesmo. Não era bem um jornal, mas uma síntese das ocorrências do dia anterior. Era comentado de maneira curiosa e inteligente, como somente ele poderia fazer. O mais era muita tesoura e muita goma recortando os noticiários dos jornais e mandando-os ao ar com regular atraso, muitos até, já lidos antes pelos ouvintes.

 

Começaram, então, a aparecer por volta de 1925 e 1926, os primeiros artistas que despertavam o interesse do público. Não só pelo seu repertório, como também pela maneira original e agradável de apresentar seus números. Os diretores das estações mostravam-se mais condescendentes e já compreendiam que, da nossa música popular, do nosso folclore, sem precisar descer a baixos níveis artísticos, poderíamos apresentar muita coisa digna de aplauso e capaz de agradar a muitos ouvintes.

 

Antes de citar alguns dos referidos artistas, quero assinalar que fui o organizador do primeiro programa folclórico do rádio brasileiro. Tive como companheiros os seguintes nomes: Gastão Formenti (que então despontava para uma brilhante carreira), Patrício Teixeira, Rogério Guimarães e Mozart Biscalho, ambos violonistas, mas de estilos diferentes; Raul Pederneiras, notável caricaturista e professor de direito, mas também excelente humorista, autor teatral e musical (foi parceiro de Hekel Tavares numa linda canção: “Caboclo Bom”); e ainda J. Amorim, o célebre bailarino Duque, que, com sua partaneire Gaby, lançou, com grande êxito, o maxixe em Paris. Duque foi o autor de um chorinho: “Passarinho do Má” (era uma alusão e uma crítica velada ao governo Bernardes), chorinho esse que interpretei e que só não deu muita confusão, na época, porque os censores (se os havia) não ouviram, ou, se ouviram, não entenderam...A audição desse programa alcançou êxito inesperado, principalmente por seu ineditismo. Mereceu da direção da emissora os maiores elogios.

 

Apesar das grandes descobertas da ciência, como o telefone, o telégrafo sem fio, a lâmpada elétrica, o gramofone, que Graham Bell, Marconi, Edison e outros revelaram e que já eram rotineiras, o impacto do rádio, como já frisamos, foi imenso, sem contudo alcançar um desenvolvimento à altura da sua importância, passando dois ou três anos, pode-se dizer, “engatinhando”, coisa que, talvez, se possa atribuir ao regime de terror e inconformismo em que vivíamos no governo de então. Regime esse que se abrandou bastante no final do mandato Bernardes e com o advento da presidência Washington Luís.

 

O rádio firmou-se praticamente no final de 1926 e no decorrer de 1927 com o aparecimento dos primeiros artistas que disputavam a preferência dos ouvintes: Gastão Formenti, Francisco Alves, Ana de Alburquerque Melo, Patrício Teixeira, Estefana de Macedo, Rogério Guimarães, Oscar Gonçalves Albenzio Perrone, Elisinha Coelho e outros, além do rabiscador destas linhas, todos trabalhando à base de cachê muito pequeno (quando não, de graça).


Só consegui ganhar o meu primeiro cachê quando, em 1929, organizei o primeiro programa radiofônico (patrocinado por uma única firma, a Casa Turuna, estabelecimento da Avenida Passos, que fazia concorrência à Casa Mathias, notabilizada pelos anúncios bombásticos e cheios de “bestialógicos” que fazia pelos jornais). A Casa Turuna pagou, então, 400$000 por um programa de duas horas. Nessa quantia estavam incluídas todas as despesas: aluguel da estação, que foi a Rádio Educadora, recém fundada: cachês dos artistas; conjunto regional para os acompanhamentos; e a corretagem de um “cara” que vendeu o programa, um senhor Mário, não sei de quê. Sobraram 30$000 para mim e, como disse, foi o primeiro dinheiro que ganhei no rádio. Nesse programa tomou parte uma garotinha muito viva e que precisou subir numa cadeira para alcançar o microfone, pois tinha apenas cinco ou seis anos. Chamava-se Dircinha Batista e viria a ser, mais tarde, um dos maiores cartazes do nosso broadcasting.

 

Nesse ínterim eu estava ora numa, ora noutra emissora, com um conjunto típico regional intitulado Os Gaturamos. Tínhamos como nosso maior concorrente o magnífico grupo comandado por Almirante: o Bando dos Tangarás. Contava com a presença de Noel Rosa, João de Barro, Henrique Brito, Alvinho e o seu grande comandante. Fez mais onda do que o nosso. Além de contar com todos esses nomes e ter perseverado por mais tempo atuando, conseguiu uma série de gravações muito felizes, de muito sucesso, a maioria de autoria dos próprios componentes, quase todos ótimos compositores.

 

Os Gaturanos, que me tinham como elemento principal, contavam ainda com Rogério Guimarães, Pery Cunha, Lourival Montenegro, Rubem Bergmann, Didi do Pandeiro e meu irmão Dario, que tinha uma excelente voz. Alcançávamos grande êxito com a nossa indumentária típica regional, não só nas festas dos principais clubes do Rio, Fluminense, Botafogo, América, Praia Clube, Atlântico Clube, Ginástico Português, como também, e principalmente, durante o carnaval. O grupo saía cantando pela cidade, entupindo os cafés e restaurantes onde se exibia. Os proprietários faziam ótimo negócio e nos “pagavam” deixando-nos beber e comer a vontade, sem nada cobrar.

 

Tanto o nosso sucesso como o dos Tangarás já eram motivados também pelas apresentações frente aos microfones das rádios Sociedade, Clube e Educadora. Logo depois, surgiriam Mayrink Veiga, Guanabara, Cajuti, Ipanema (Mauá, durante muito tempo), Jornal do Brasil. Tupi, Philips (depois Nacional), Tamoio, Transmissora (hoje Globo) e Nacional. Não posso garantir se foi bem nessa ordem que eles surgiram, mas para quem não está procurando fazer história, esse detalhe carece de importância.

 

Surgiram depois várias outras emissoras de menor expressão aqui no Rio. Dezenas ou centenas de estações por esse Brasil afora, que se encontram muito bem catalogados no livro de Saint-Clair Lopes. Com a concorrência, passou a haver campo para muitos trabalharem em todos os gêneros musicais. Apenas a Rádio Jornal do Brasil resistia ao que chamava de vulgaridade artística e mantinha por algum tempo a sua programação “de colarinho e gravata” (para não dizer de “traje a rigor”) destinada a uma minoria esnobe. Mais tarde, a PRF-4 viria a aderir também à música popular, mas de maneira limitada. Fazia questão de monopolizar uma faixa de ouvintes presumivelmente “cultos” e de requintado gosto, os chamados “trezentos de Gedeão”, que cá, entre nós, não sei se chegavam mesmo a trezentos...

 

Interessante é que a Rádio Jornal do Brasil promoveu por largo tempo as transmissões das carreiras do hipódromo da Gávea, na palavra e estilo insuperáveis de Teófilo de Vasconcelos, com Fausto Serpa nos comentários. E era engraçado, o turfman viciado, numa torcida doida pelo Mossoró, Albatroz, Filon, ou outro craque das nossas pistas, ouvir nos intervalos entre um páreo e outro, música de Tchaikoviski, Gounod, Bach, Beethoven, etc.

 

Entre 1924 e 1928 ou 29, muita coisa importante aconteceu no mundo sem que o rádio dessa aos fatos o destaque merecido. No fim da década de 1920, apareceram outros grandes artistas, como Mário Reis, que viria a fazer dupla famosa com Francisco Alves; Castro Barbosa, cantando só e depois em dupla com Jonjoca (João de Fretas Ferreira); a inconfundível e até hoje insuperada Carmen Miranda.

 

Contudo, o fato que mais marcou esse período, no campo da música popular, foi a chegada ao Rio, por iniciativa do Correio da Manhã, do famoso conjunto pernambucano, Os Turunas da Mauricéia. Tinha como principal figura o principal o notável Augusto Calhares, cognominado a Patativa do Norte. Completavam o grupo artistas extraordinários como o admirável violonista cego Manoel de Lima; João Miranda, bandolinista (irmão do Luperce, que aqui só aportaria no ano seguinte); João Frazão, ótimo violão; e um bom pandeirista, cujo nome não me ocorre. A apresentação dos Turunas da Mauricéia superlotou o antigo Teatro Lírico, o maior da cidade. Constituiu-se num dos maiores acontecimentos do Rio. Não só pela qualidade dos artistas, como pelo belíssimo e curioso repertório apresentado. A canção “A Praia”, de Raul de Morais, e a valsa “Único Amor”, de Alfredo Medeiros, que foram trizadas, e os côcos, emboladas, sambas, martelos, etc., como “Pequeno Tururu”, “Tá com Medo Fala”, “Pandeiro Furado”, “Limoeiro” e “Pinião”, levaram a plateia ao delírio. E com uma circunstância importante: apresentaram o espetáculo sem aparelhagem de som, valendo-se apenas da excelente acústica do velho casarão do Largo da Carioca, onde, aliás, os maiores nomes do teatro e da cena lírica de todo o mundo tinham especial preferência para atuar, pois de qualquer lugar seus dotes cênicos e vocais eram assistidos e ouvidos com absoluta perfeição.

 

Tive a honra de ser um dos apresentadores dos Turunas da Mauricéia, para os quais se abriram imediatamente todas as portas: rádios, gravadoras, clubes e excursões. Serviu de estímulo para a vinda, um ano depois, de outro conjunto, A Voz do Sertão, que trouxe Luperce Miranda e um incrível cantador de emboladas, Minoma Carneiro, também grande sucesso, ao lado de Romualdo Miranda, um dos maiores violonistas daqueles tempos. Mas os Turunas não tinham mãos a medir. Foram logo contratados por um empresário para longa excursão ao sul do Brasil. Antes, porém, de viajar, deixaram gravados os seus melhores números, que eram constantemente divulgados pelo rádio.


Aconteceu, então, um fato curioso para mim e para o conjunto Os Gaturamos. Passamos a cantar em todas as festas a que comparecíamos, e também no rádio, todo o repertório dos Turunas da Mauricéia e da Voz do Sertão. O samba “Pinião” era um dos maios fortes (“Pinião, pinião, pinião, ôi, pinto correu, cum medo do gavião...por isso mesmo sabiá cantô, bateu asas e voô e foi cumé melão”...), e era o que mais cantávamos para atender a pedidos. Não só nas rádios como nas festas.

 

Calheiros, de quem me fizera amigo, antes de embarcar para o Sul, pediu-me que divulgasse o mais possível as suas músicas, cujas gravações estavam surgindo na praça. E aconteceu que “Pinião” foi a música vitoriosa e mais cantada no carnaval de 1928. Como eu a cantava muito, muitas pessoas julgavam que o magnífico samba fora lançado por mim. O eminente crítico Itiberê da Cunha, do Correio da Manhã, chegou a escrever uma longa crônica laudatória, incidindo no engano. Apresei-me a escrever-lhe atenciosa carta (que ele publicou), desfazendo a dúvida. Atribuía a Augusto Calheiros e ao seu grupo o mérito daquele êxito, para o qual eu contribuíra um pouco, com a divulgação constante do mesmo. Ficaram as coisas nos seus respectivos lugares e Calheiros sempre se referiu ao fato com palavras de gratidão, o mesmo acontecendo com Luperce Miranda, que era co-autor da música.

 

Calheiros e Minoma Carneiro trouxeram para a metrópole uma contribuição muito valiosa no campo do nosso regionalismo e do nosso folclore. Eram gêneros aqui pouco explorados, quase nada se conhecendo além do “Luar do Sertão”, da “Cabocla do Caxangá” e de umas poucas toadas e descantes que vinham de São Paulo através da voz bonita de Paraguassu, recentemente falecido aos 80 anos.

 

Por aqui, começavam a despontar nos teatros de variedades e de revistas algumas figuras com repertório sertanejo, como Juvenal Fontes (o famoso Jeca Tatu), os Garridos (Alda e Américo Garrido), a primeira dupla caipira que conheci, vindo logo depois Jararaca e Ratinho. Só mais tarde, depois da “Casa de Caboclo” e de “mambembar” por inúmeros recantos do Brasil, teriam acesso e sucesso ao rádio.

 

A propósito de “Luar do Sertão”, cabe aqui lembrar (o que Almirante já fez com muita propriedade em livro seu) que essa toada célebre é tida como o verdadeiro hino caboclo do Brasil. Não é de autoria exclusiva de Catulo, como sempre é anunciada; “Luar do Sertão” é mais de João Pernambuco, exímio violonista, compositor de música e de parte da letra, do que mesmo do celebrado vate maranhense, apesar de ser chamado “Cearense”.


Até hoje, o herdeiro de Catulo, um obscuro jornalista que comprou por “dez réis de mel coado” todos os direitos da obra do poeta, recebe os respectivos royalties cada vez que um dos seus versos é irradiado ou publicado. Não toma conhecimento de João Pernambuco ou qualquer outra co-autor de Catulo. Por exemplo, Ernesto Nazareth compôs o “Brejeiro”, que é cantado com letra de Catulo (Aí ladrãozinho, neste lábio de coral, tem dó...Dá-me um beijinho, não te pode fazer mal, um só). Mas João Pernambuco, Ernesto Nazareth, e outros, já morreram. E o tal “jornalista” conhece bem aquela embolada que diz no seu final: “Viúva do seu Zeca/ deu pra fazê bobage / mas a gente desconfia / que isso não é vantage, / porque todo mundo sabe / que defunto não reage...”

 

Caso parecido acontece hoje, por vezes, com “Amélia”, o samba antológico de Ataulfo Alves e Mário Lago, não raro citado por locutores ignorantes como só do primeiro. Mas aqui é um pouco diferente: não há dolo e Mário Lago está vivo e bem vivo para reivindicar o seu direito.

 

Mais adiante, quando traçar a biografia de vários nomes dos mais conhecidos do rádio em todos os tempos, terei uma história interessante para contar a respeito do grande Catulo, com quem convivi bastante e de quem tenho cartas bastante curiosas.

 

Fechemos esse parêntese, para falar especificamente do rádio dos últimos anos da década de 1920. Como já frisei, não havia propriamente o radiojornalismo setor hoje tão importante (senão o mais importante) do sem-fio. Mas o rádio não ficava indiferente aos acontecimentos de vulto da época. Aliás, bem numerosos e interessando vivamente a opinião pública. Eles eram comentados em forma de crônicas de vários escritores de gabarito: José Mariano, Gastão Penalva, Luís Peixoto, o próprio Roquete Pinto, com o seu admirável “Jornal da Manhã”, e outros. Embora sem me considerar escritor, procurei dar a minha contribuição com duas crônicas semanas que eram lidas num programa de cinco minutos, intitulado “O Mundo em Foco”. Lembro-me de que, entre outros fatos, comentei o sucesso literário de Victor Marguerite, na França, com seu best-seller La Garçonnne, com ideias muito avançadas para a época. Analisava o comportamento da mulher em 1930, inclusive nos seus trajes de banho que, naquele ano, sofreram evolução muito sensível.

 

Houve até um episódio interessante ocorrido no tórrido verão de 1930: os referidos trajes despertavam viva curiosidade e desusado interesse dos homens que, cedo, acorriam às praias. Iam apreciar aqueles “audaciosos” decotes e aqueles pedacinhos de coxas que iam até um pouco acima do joelho...Uma delícia!

 

O cônego de Halstead (Chicago), com a aprovação do clero e para encher a igreja, que estava se esvaziando, formou um coro feminino: todo ele de maiô, para atrair os fiéis ao Santo Sacrifício da Missa. Foi um sucesso! A Igreja ficava superlotada! O fato foi comentado em toda a parte. Comentado e discutido. Deu assunto para muitas crônicas maliciosas. Dizia-se que o referido cônego se esquecera de que não se peca só por atos e palavras, mas também por pensamentos, que no caso não seriam dos mais castos nem dos mais próprios para o interior de um templo católico...

 

Outros fatos de repercussão mundial foram a primeira tentativa de atingir a estratosfera, feita pelo professor belga Picard: alcançou com seu balão a altura de 17.000 metros, enquanto o naturalista americano Boebe, procurando investigar a fauna abissal, descia, numa esfera do aço a 470 metros de profundidade, no Pacífico. A par desses acontecimentos científicos ou pitorescos, o rádio divulgava alguns dramas que comoviam e chocavam a humanidade. Um deles foi a prisão e posterior execução de Peter Klerten, o tenebroso Vampiro de Dusseldorf. Matara, para beber-lhes o sangue, oito pessoas, entre elas, cinco pessoas.

 

Outra ocorrência que deixou o mundo em suspense foi o rapto, nos Estados Unidos, do filho do célebre aviador Charles Lindbergh, recentemente falecido. Em maio de 1927, assombrara o mundo com seu voo solitário (em sua companhia ia apenas um gato), percorrendo em 33 horas e meia a distância que separa Nova York de Paris, em uma só etapa. Lindbergh tornou-se, com o feito, um herói mundial. A notícia do rapto de seu filho causou impacto tremendo, sendo mobilizados todos os recursos para a descoberta do criminoso. Este usara longa escada que, atingindo o primeiro andar da residência do aviador, possibilitou a retirada da criança. Tempos depois das diligências, foi encontrada morta, num bosque pouco distante.

 

As investigações, que duraram alguns anos, levaram a polícia a concluir pela culpabilidade de um carpinteiro alemão. Baseava-se em provas circunstanciais, como o encontro de alguns pregos e pedaços de madeira semelhantes aos da escada usada para o rapto, além de notas numeradas pagas para o resgate exigido, de 50.000 dólares, na carpintaria de Bruno Hauptman (esse o seu nome). A conclusão não convenceu o mundo, dada a obstinada negativa do acusado e a impressionante defesa do seu advogado. Saco e Vanzeito à cadeira elétrica. Mas parece que, de um modo geral, há “sherlocks” em toda a parte, e quando fracassam, precisam arranjar um “bode expiatório”. E, assim, Bruno Hauptman, depois de 37 dias de dramático julgamento, foi condenado também a morrer na cadeira elétrica. Quando isso ocorreu (1936), a Rádio Mayrink Veiga já tinha lançado através da pena brilhante de Genolino Amado e na voz magnífica de César Ladeira, uma crônica diária sobre todos os assuntos palpitantes da época. Lembro-me que a página escrita no dia da execução do carpinteiro alemão foi uma das mais belas e emocionantes que ouvi em toda a minha vida radiofônica.

 

Essas divulgações, sem pretender, como disse, fazer história, têm a finalidade de divulgar os fatos mais importantes que ocorriam em todo o mundo e dos quais se tomava conhecimento através do rádio. Era um meio de comunicação sem competidor, pois nosso broadcasting já saíra do marasmo inicial. Desenvolvia uma ação dinâmica, passando à conquista de todas as camadas sociais, interessando até o Vaticano, que inaugurou sua estação transmissora em 12 de fevereiro de 1931. O Papa Pio XI (que um locutor conhecido por suas gafes anunciou como “Sua Senhoria o Papa Piócssi”) usou pela primeira vez o microfone para enviar uma mensagem em latim a todo mundo católico.

 

Com o âmbito de ação consideravelmente aumentado, surgiram, evidentemente, enormes vantagens, mas também algumas desvantagens que mais adiante enumerarei.


Abro agora outro parêntese. Voltando aos meus tempos de boêmia, esclareço a muitos que me perguntam, por que, sendo eu carioca, dediquei mais de 30 anos de rádio ao folclore, ao estilo sertanejo, sempre recebido com muito agrado pelo público. Foi o seguinte: na minha mocidade fiz em companhia de amigos muitas serenatas. Entre esses amigos estava um que depois se tornou famoso: chamava-se Mário Pinheiro. Mário Pinheiro, excelente cantor de modinhas, foi quem mais gravou discos para a famosa Casa Edson. Também apreciava bastante o estilo caboclo, tendo um bom repertório no gênero. Com ele aprendi a declamar o célebre “Marroeiro”, de Catulo, além de números regionais.

 

Mário Pinheiro, Bahiano, os Geraldos, Cadete, Eduardo da Neves e Benjamin de Oliveira, formavam o primeiro time de cantores da única gravadora de então, que era a Casa Edson.

 

Eduardo das Neves (pai de Cândido das Neves, o Índio, compositor famoso) foi quem lançou no Brasil a célebre marcha: “A Europa curvou-se ante o Brasil” (exaltando o grande feito de Santos Dumont, ao contornar a Torre Eiffel, em Paris, no “mais pesado que o ar”). Benjamin de Oliveira (a quem prestei uma comovida homenagem ao completar 85 anos, pelo microfone da PRA-3) era um famoso palhaço e cantor, mas também ator teatral. Transformou-se na primeira figura dos espetáculos do Circo Espineli, na Praça da Bandeira.

 

Certa vez assisti o inteligente crioulo interpretar, na peça de Eduardo Garrido, O Mártir do Calvário, o papel de Jesus Cristo, todo pintado de alvaiade, o que, embora de certo modo grotesco, não deixava de atestar a arte e a coragem do artista. Quanto a Mário Pinheiro, aconteceu algo de extraordinário. O cantor, que foi popular quando não havia ainda o rádio, um dia embarcou para a Itália para estudar canto. Anos depois, para grande surpresa de amigos e admiradores, voltava ao Brasil como o primeiro baixo de um famoso elenco lírico emprestado por Walter Mocchi. Então, pode ser ouvido nas irradiações diretas do Teatro Municipal em magistrais interpretações do seu repertório. Tinha como ponto alto a célebre “Balata Del Fischio”, de Mefistófeles e a linda romanza Bohème: “Vecchia Zimarra”.


Volto a dizer que, apesar das grandes dificuldades por que passou o rádio nos seus primeiros anos, pela técnica ainda primitiva e pela falta de recursos de toda a natureza, alguns bem intencionados acreditavam no seu sucesso, que começaram na década de 1930. De 1924 a 1930, participei do rádio como amador. Embora, tendo perdido meu emprego em princípios de 1926, tivesse que atravessar um dos piores períodos da minha vida, jamais deixei de estar presente a todas as suas realizações. Mesmo sem ganhar nada. Paralelamente, para me manter procurava outras fontes de receita: fiz jornalismo no Rio-Jornal, em A Rua, A Notícia (ainda na sua fase cor de rosa), O Imparcial e Diário Carioca, onde a revolução de 1930 me encontrou ao lado de J.H. de Macedo Soares, Vítor Hugo Aranha, Marcial Dias Pequeno, Américo Palha e outros “azes” da imprensa de então.

 

Ganhava uma miséria que mal dava para comer; fui agente de seguros Sul-América, com algum êxito inicial, mas sem a paciência e a perseverança necessárias para o exercício da profissão; fui agente de leilões, arranjando alguns negócios e ganhando alguns minguados “caraminguás”. Quando não chegavam nem para a gasolina. Sem, para a gasolina, porque, ainda que pareça incrível, desde que comprei o primeiro carro, em 1922, nunca deixei de ter automóvel até os dias de hoje. Mesmo nos piores momentos, nas piores crises, estava motorizado. Muitas vezes sacrifiquei outros interesses para abastecer o carro. Minha carteira de motorista data de 1922. O automóvel, além de ser meu hobby, sempre foi um precioso colaborador em todas as funções que exerci, dentro ou fora do rádio. Deixava de ser um ônus para ser um meio de locomover-me e ganhar dinheiro, valendo-me, e muito, em algumas excursões artísticas que organizei em cidades próximas do então Estado do Rio: Barra do Piraí, Barra Mansa, Valença, Vassouras, Rio Bonito, Petrópolis, Teresópolis, etc. Aliás, as excursões artísticas através de toda a minha carreira, e, no caso, menos modestas, constituíram-se num “achego” muito bom para as minhas finanças. Jamais consegui ganhar no rádio (nem mesmo nos áureos tempos da Nacional) o suficiente para a minha subsistência e para o padrão de vida que precisava e gostar de levar. O microfone da Rádio Nacional dava-me apenas prestígio.

 

De carro, sempre dirigido por mim (canso-me menos dirigindo do que “sofrendo” ao lado de outro volante, por melhor que seja), percorri o Brasil todo, da Bahia para baixo. Ao Norte e ao Nordeste também fui, chefiando caravanas artísticas, mas de avião. Muitos fatos pitorescos e curiosos aconteceram nessas viagens; ficam para ser relatados mais adiante.


Daqui por diante vamos acompanhar passo a passo (tanto quanto possível) o rádio a partir de 1930. Como disse e repito, apoiando-me somente na memória. Antecipo minhas desculpas por algumas omissões. Contarei aquilo que vi, aquilo de que participei e que foi do domínio público. O leitor não encontrará aqui uma única mentira. Se houver alguma contestação ao que estou escrevendo, peço que a façam, pois colocarei as coisas nos devidos lugares. Apelemos, pois, para a memória.

 

A memória que, segundo uns, é a metade da alma. Segundo a mitologia clássica, chamou-se Mnemósine, amada por Jupíter. Foi mãe das Nove Musas, que eram as divindades da arte e do saber, e é, portanto, um modo poético de reconhecer a importância do ato de recordar. Espero que, senão todas, pelo menos algumas dessas Musas me inspirem.

 

Publicado originalmente em MURCE, Renato. Bastidores do rádio: fragmentos do rádio de ontem e hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.