segunda-feira, 12 de abril de 2021

Bastidores do rádio, parte I de VII: 7 de setembro de 1922

Bastidores do rádio, parte I de VII: 7 de setembro de 1922

 

Por Renato Murce

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

Data marcante para a história do Brasil: cumpria o seu primeiro centenário de independência. Seria, como foi, comemorado de maneira a mais brilhante possível. O célebre e histórico morro do Castelo fora arrasado em tempo recorde para a época, tarefa a cargo do prefeito Carlos Sampaio, que se serviu de suas terras para aterrar grande faixa da baía de Guanabara, a qual chegava até a rua Santa Luzia, onde os grandes clubes náuticos tinham as suas garagens. Na beira do morro, na grande faixa conquistada ao mar, foram instalados os monumentais pavilhões para a grande exposição internacional comemorativa da importante efeméride. Quase todos os grandes países da Europa e das Américas, além dos nossos principais Estados, fizeram-se representar galhardamente. Era com indisfarçável emoção que todos acorram para apreciar de perto o grandioso espetáculo. Além das exposições propriamente ditas, ainda era oferecida uma série de atrações e diversões jamais vistas na então capital do país.

 

Esse dia ficou marcado fortemente em minha vida por dois acontecimentos inteiramente diversos um do outro. Minha mocidade foi toda ela pontilhada de passagens as mais pitorescas. Estava eu atuando como promotor de um espetáculo de boxe, juntamente na Exposição do Centenário; era meu pupilo um campeão de peso leve que já atuara com êxito até na França. Devia enfrentar o seu desafiante que, como credencial, apresentava um dossiê de brilhante carreira em toda a América Latina. Chamava-se o meu pupilo Rodrigues Alves (parente longínquo do ex-presidente) e seu oponente intitulava-se Von Forster, dizendo-se descendente de alemão.


Eu tinha a responsabilidade do espetáculo. Fora organizado por mim como mais uma atração da data que então se festejava. Lembro-me bem de que compareci ao local da luta de terno branco, sapato de duas cores, chapéu de chile (ou panamá, como era chamado) e envergando grossa bengala do junco. Figura bem adequada a um “empresário de boxe”. Começou a luta. Como sempre acontece, os primeiros minutos foram dedicados aos estudos entre os pugilistas. O tal Von Forster fugindo da aproximação de Rodrigues Alves. Terminou o primeiro round debaixo de vaias. No segundo, a coisa seguida o mesmo ritmo. Rodrigues, já impaciente, atirou-se então ao adversário, procurando derrubá-lo com um soco fulminante. O golpe, no entanto, não atingiu seu contedor, passando de raspão na sua orelha. Para a surpresa de todos, o Von Forster caiu “estatelado” no chão, simulando um knock-out. Aí as vaias estrugiram, dessa vez ensurdecedora. Aproximei-me do tablado e disse ao “vigarista”: levanta, seu canalha, e continua a luta! Ele abriu um dos olhos e piscou maliciosamente como quem diz: “não estraga”...Tão logo o juiz contou os dez segundos regulamentares, não tive dúvidas: subi ao ringue e, quando o Von Forster se levanta do falso knock-out, apliquei-lhe um tremendo soco na ponta do queixo. Ele, então, “desabou” de verdade. Virei-me para o juiz e disse: “Conte agora, porque ele não vai levantar tão cedo”. Assim, salvei o espetáculo. Ás vaias, seguiu-se uma verdadeira ovação ao rapaz de branco (era eu) que castigara o farsante.

 

Imaginem agora o reboliço tremendo que o caso provocou até que eu me livrasse da polícia; quase fiquei impedido de assistir ao fato principal que me levara ali e que teria lugar dentro de meia-hora (fato, este, realmente memorável): seria a primeira experiência do rádio no Brasil, quando o presidente Epitácio Pessoa, tendo a seu lado o rei Alberto, da Bélgica, iria se dirigir ao país, num discurso importantíssimo. Ao país, é maneira de dizer. Naquela altura, a transmissão, quando muito, atingiria a periferia da cidade. E, assim sendo, para as poucas pessoas que possuíssem os primitivos rádios de galena, capazes de captá-la. Mas, pelo menos, dentro do recinto da Exposição, pelas inúmeras cornetas ali distribuídas, se poderia ouvir alguma coisa.

 

Como dissemos o interesse era enorme, e foi assim que o rádio nasceu no Brasil. Nasceu não seria bem o termo (foi mais um parto prematuro). Tratou-se de uma pequena amostra, algo falha, na qual muita gente ali presente não queria acreditar: “como era possível uma pessoa falar num aparelho lá longe, sem fio, sem nada e a gente poder ouvir?”. Piores que são Tomé: vendo, ouvindo e não crendo. Isso porque o rádio brasileiro nasceu de “verdade” em 23 de abril de 1923, graças ao pioneirismo, dedicação, capacidade e esforço de dois grandes sábios: Edgard Roquete Pinto e Henrique Moritze, nomes indelevelmente ligados ao espetacular meio de comunicação que então surgia.

 

Repetimos que esse livro não pretende fazer história nem literatura. Lembramos, no entanto, que é curiosa e atraente a história do rádio no Brasil. Tanto sob os aspectos técnicos, sua ordem cronológica (não só no Rio de Janeiro como no restante do país), quanto no que diz respeito a dados importantes sobre os antecedentes dessa era espantosa que começávamos a viver. Aquilo porém, que o leitor não encontrar aqui, verá de maneira brilhante, sucinta e muito bem escrita no livro Comunicação-Radiofusão-Hoje de autoria do conhecido radialista Saint-Clair Lopes. Procurem esse livro e conhecerão muita coisa que talvez esperem daqui e não encontrem, além de preciosas informações sobre o rádio nos demais Estados brasileiros. Aqui, tenho que me limitar ao Rio de Janeiro, onde trabalhei no sem-fio durante mais de meio século, com rápidas fugas pelo nosso interior, sem o tempo necessário para analisar e contar algo interessante. Falta-me, para tanto, autoridade, dados e maior convívio com a boa gente que ali vive.

 

Publicado originalmente em MURCE, Renato. Bastidores do rádio: fragmentos do rádio de ontem e hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.