sexta-feira, 16 de abril de 2021

Bastidores do rádio, parte V de VII: Rádio Nacional

Bastidores do rádio, parte V de VII: Rádio Nacional

 

Por Renato Murce

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

Fomos para a Rádio Nacional em julho de 1945. Aqui começo, então, o capítulo que aquela grande emissora merece. A Rádio Nacional foi a própria essência do rádio no Brasil por cerca de duas décadas. Desde a sua fundação, em 1936, começou a assumir a liderança das transmissões artísticas. Essa liderança consolidou-se. Não mais a perdeu até a década de 1960.

 

Teve início então o seu declínio, numa descida impressionante e lamentável. Os ouvintes, até hoje, não podem compreender como aconteceu. Nós, porém, que lá trabalhávamos, sabemos muito bem as caudas dessa derrocada.

 

Inaugurada em 1926, sob os auspícios do vespertino A Noite, jornal então popularíssimo, dispunha, ainda, de outros órgãos de divulgação, como A Noite Ilustrada e Carioca, revistas muito bem aceitas pelo público. Davam uma larga cobertura às atividades da PRE-8. Começou logo a se destacar, embora lutando durante cerca de quatro anos com as outras estações, pois a Mayrink Veiga liderava o sem-fio desde 1934.

 

Passou ela, no entanto, para a órbita governamental em 1940. A Rádio Nacional, anexada às Empresas Incorporadoras ao Patrimônio Nacional, assumiu o primeiro lugar entre as rádios do Brasil. E se manteve de maneira desacatadíssima durante mais de 20 anos. Mas com essa transformação de empresa particular em “repartição pública”, criou-se uma situação para seus artistas e funcionários. Não sabiam que terreno se situavam: continuaram como comerciários, descontando para o IAPC como tal. E como servidores públicos, servindo a uma repartição do governo. E essa dubiedade não se definiu pelos tempos afora.

 

Até os dias de hoje, quando muitos já se aposentaram, continuamos comerciários. Em todos os movimentos em favor dos inativos, nós, praticamente, “não existimos”. Acham que quem não foi servidor público (e nós, oficialmente, não o somos, apesar dos 26 anos de serviço na Rádio Nacional), não tem direito a nenhum aumento, a nenhum reajuste. Como se nós também não tivéssemos os nossos problemas, e bem sérios, para não falar em nossas necessidades, mais sérias ainda.

 

Isso, porém, não foi culpa da Rádio Nacional, mas dos inúmeros diretores que por lá passaram. Não moveram uma palha para legalizar essa posição dúbia dos seus auxiliares.

 

Feita essa digressão, não direi de ordem reivindicatória (porque não vai adiantar nada), voltemos a falar da Rádio Nacional propriamente dita. Foi um padrão de emissora. Não só para o Brasil, mas até mesmo para toda a América Latina. Chegando, em pouco tempo, a suplantar a célebre Rádio El Mundo, de Buenos Aires, tida como insuperável.

 

Tendo em seu cast o que de melhor havia no meio artístico da nossa terra, além de colaboradores experimentados e compententíssimos, a Rádio Nacional, de certa época em diante, não precisava lutar por uma liderança. A cada dia mais se afirmava. Dois anos depois, em 1942, tomou conta de quase todos os aparelhos receptores. Lançou então sua primeira novela: “Em Busca da Felicidade”.

 

Estava com o prestígio consolidado, e assim se manteria por muito tempo. Graças a uma equipe fabulosa de produtores e um cast artístico da mais alta qualidade. Encontrávamos ali nomes como: Lamartine Babo, Almirante, José Mauro, Haroldo Barbosa, Paulo Tapajós, Fernando Lobo, Nestor de Holanda, Giuseppe Ghiarone, Alizro Zarur, Oracine Franco, Ilka Labarte, Léa Silva, professora Lúcia de Magalhães, Paulo Roberto, Ary Barroso, Lourival Marques, J. Rui, Max Nunes, Mário Faccini, Pedro Anísio, Hélio do Soveral, Mário Lago, Saint-Clair Lopes, Oduvaldo Viana, Dias Gomes e Gastão Pereira da Silva. Maestros da envergadura de Radamés Gnatalli, Romeu Ghipsman, Léo Perachi, Lírio Panicali, Alceu Bochino, Alberto Lazzoli, Alexandra Gnatali, Escole Vareto, Chiquinho e mais alguns.

 


Antes, porém, de começarmos a contar as possíveis razões da queda da Rádio Nacional, deixemos de lado a nossa memória. Vamos nos valer de um bem feito catálogo que a grande emissora publicou para distribuir aos clientes e amigos.

 

Em 12 de setembro de 1956, comemorou ela com grande pompa seus gloriosos 20 anos de existência. Pairava a radiosa esperança da breve instalação da TV Nacional, prometida pelo Sr. Juscelino. O memorável despacho era de 18 de julho daquele ano. Chegou-se, até, a importar todo o material da melhor qualidade para aquele evento. Sou admirador do Sr. Juscelino, em que reconheço grandes méritos. Dei-lhe o meu voto. Julgo-me insuspeito para atribuir-lhe, em parte, a decadência da Nacional. Mas ele numa atitude, para nós, incompreensível, vetou posteriormente a TV Nacional.

 

Constava o seguinte: o Sr. Assis Chateaubriand vislumbrou o risco que correriam as Emissoras Associadas (a concorrência de uma TV). A nova TV Nacional levaria para as suas antenas toda aquela incomensurável força e o amplo know-how que sempre demonstrara. Assis Chateaubriand ameaçou o então presidente da república: iniciaria e desenvolveria uma campanha política contra o seu governo. Faria isso através de sua grande rede de emissoras de rádio, TV e jornais. Razões políticas, portanto, devem ter influído no gesto do Sr. Juscelino. Quando o material chegou à Rádio Nacional, foi encaminhado para Brasília. Está lá até hoje. Choveram promessas de mandar buscar outros transmissores. De promessa em promessa, a coisa foi caindo no esquecimento. Assunto encerrado.

 

Vale reproduzir pequenos trechos do discurso com que o diretor da Nacional, na época o Sr. Moacir Arêas, se dirigiu ao público, sob o título de “O Salto para o Futuro”.

 

“Ao folhear a última página deste livro, o leitor deverá ter uma noção, ainda que apenas em largos traços, do que é hoje a Rádio Nacional...Como broadcasting a sua curva ascendente perde-se no infinito. E a sua missão está literalmente cumprida. Os novos passos, neste terreno, serão a rotina do progresso e da adaptação às novas condições com que fatalmente se defrontará o rádio em nosso país, diante do advento da televisão. Então, meus amigos, o assunto que marca este salto para o futuro é a televisão. O presidente Juscelino Kubistcheck de Oliveira, em memorável despacho de 18 de julho de 1956, acertou definitivamente os rumos da “Nacional TV”. Muito cedo, nos próximos meses, os receptores da televisão da Capital da República e adjacências estarão assinalando a existência do Canal 4, onde se estampará a imagem da nossa TV...Com estas notícias creio encerrar este livro com fecho de outo, pois elas levarão alegria e entusiasmo a esse generoso público que sempre apoiou a Rádio Nacional...Nesse instante tão longínquo do futuro, então a Rádio Nacional, através de sua televisão, procurará estar presente, como sempre, ao lado e a serviço do povo brasileiro”.

 

Agora, pergunto eu: haverá uma só pessoa nesse imenso Brasil que possa duvidar do predomínio total que a TV Nacional iria exercer sobre o público? A larga experiência, a quantidade fabulosa de colaboradores de que dispunha, o conhecimento profundo do paladar do público em relação a programas, etc.? Não! Ninguém poderia competir com a Nacional na televisão. Também jamais pôde competir no rádio. A sua fase áurea predominou por mais de 20 anos.

 


O livro publicado para comemorar essa vintena de trabalho, é notável. Dá bem uma ideia do poder da emissora. Publica mais de 200 expressivas fotografias. Apresenta uma relação de 112 radioatores e radioatrizes; 76 cantores e cantoras; 99 músicos contratados (só os violinos eram 25); 47 músicos a cachê; 16 músicos dos conjuntos regionais; 10 solistas; 46 locutores; 5 repórteres e 22 produtores. Isso, sem contar o pessoal técnico e administrativo. Totalizava cerca de 700 pessoas a serviço da emissora. No mês de setembro de 1956 a Nacional tinha no ar: 16 novelas; 10 programas de radioteatro (não seriados); 15 programas mistos; 22 programas de auditório e 6 programas especializados.

 

Mas o livro sobre os 20 anos da Rádio Nacional está muito bom. Muito fiel no relato das suas inegáveis grandezas. Como é natural, omisso nas suas falhas, nos seus erros, que não foram poucos.

 

Na Nacional predominava a disparidade de vencimentos: uns ganhando salários fabulosos para a época; outros, a maioria salários “de fome” (como acontece ainda hoje nas grandes empresas). A caixa, atendia pela paciente e bondosa D. Maria, era procurada diariamente. Uma romaria de artistas e funcionários ia em busca de pequenos vales para atender a necessidades prementes.

 

Os ordenados da Rádio Nacional, que antes eram os mais sedutores, pararam no tempo e no espaço. Principalmente para os artistas e funcionários antigos da casa. Para os que chegavam nas caravanas de “paraquedista” acompanhando os diretores (frequentemente mudados), os vencimentos eram mesmo quatro ou cinco vezes maiores do que os dos que lá estavam. E chegavam, para “não fazer nada”.


A estação passou, então, a não ter mais atrativos. Foi, paulatinamente, suplantada pelas outras. Chegou a ocupar um lugar ridículo quanto à audiência.

 

Engraçado é que a esperança da televisão ainda se manteve por algum tempo. As máquinas importadas para nós tiveram rumo de Brasília (ordem do governo, para satisfação do Sr. Chateaubriand). Alguns tolos como eu, César Ladeira, Celso Guimarães, Paulo Tapajós, Floriano Faissal e Paulo Roberto, nos mantivemos fiéis à nossa PRE-8. Acreditávamos numa reação ou reviravolta. Infelizmente não veio. Perdemos a melhor oportunidade de ingressar na TV. Faríamos aquilo que, com sucesso, fazíamos na Rádio Nacional.

 

Toda a gente sabe que a televisão hoje está fazendo (e mal feito) tudo aquilo que já realizamos há 20 ou 30 anos passados.

 

O relato da Rádio Nacional vai só até 1956. São realmente impressionantes os dados sobre o radiojornalismo, radioteatro, setor de correspondência, seção administrativa, expansão comercial. Logo de saída vêm as fotografias dos 9 primeiros diretores gerais (dos quais não existem muitas queixas): Cauby Araújo, pegou a fase pior, de 1936 a 1940: o começo que, como em tudo, é o mais trabalhoso; o começo que, como em tudo, é o mais trabalhoso; Gilberto de Andrade, de 1940 a 1946: fez uma administração serena, sem problemas, pois a Rádio já expandia por si mesma e apoiada pelo governo; Hermenegildo Portocarrero (pai de Tônia Carrero): não teve tempo de fazer coisa alguma, não ficou nem um ano na direção da casa. Viria, depois, um bom diretor: Armando Calmon Costa, levando pelo melhor superintendente que as empresas já tiveram: o coronel Leony Machado. Esteve à testa da Nacional de 1946 a 1950. Prestigiava os seus colaboradores, e isso numa época em que Vítor Costa teve uma atuação destacadíssima que o levaria mais tarde à direção-geral, quando Getúlio voltou ao poder em 1951. De 1950 a 1951 tivemos um Sr. José Caó, como diretor, uma “piada”...Com a morte de Getúlio e a lamentável saída de Vítor Costa, tivemos no governo Café Filho, a rápida passagem, pela direção da Rádio de dois nomes que considero os melhores que por lá apareceram. Infelizmente, ficaram menos de um ano cada um: Marcial Dias Pequeno e Odylo Costa Filho. Estávamos em 1954-55. Veio, logo depois, o Sr. Moacyr Arêas. Em 1956, ainda estava lá prometendo a TV que não viria nunca.

 

Temos em mãos um exemplar, de 1950 do Anuário do Rádio. Revista especializada da época, tem dados curiosos sobre a situação das estações de rádio junto aos ouvintes. Cantores preferidos: Orlando Silva com 15%, Francisco Alves com 14, Sílvio Caldas 13, Emilinha Borba 11, Vicente Celestino 9, e Carlos Galhardo 6 (todos da Nacional). Além de outros, nacionais e estrangeiros de 3 a 2% para baixo. A referida revista faz um excelente apanhado sobre o rádio em todo o Brasil. Demonstra, inclusive, a grande expansão do mesmo em toda a parte, notadamente no Rio Grande do Sul. Exceto no Paraná, onde a Rádio Guaicará, em Curitiba, ganhava por pequena margem da Nacional, esta estava sempre na frente. Em toda a parte menos, é óbvio, na capital paulista. Mas liderando em todo o interior daquele Estado.


Numa pesquisa feita no Rio para apontar os dez melhores programas, em diversos gêneros, pertenciam todos à Rádio Nacional. Três ali fazíamos: “Alma do Sertão”, “Piadas do Manduca” e “Papel Carbono” figuravam sempre entre os três ou quatro melhores classificados. No horário das 20h30 min., por exemplo, o programa “Alma do Sertão” alcançava 35% de audiência. Logo abaixo da “PRK-30”, com 39; e da novela daquele horário, com 35,5%. “Piadas do Manduca” vinha logo a seguir, com 34%. “Papel Carbono” figurava em primeiro lugar no horário das 21h30 min, com 33%. Isso, competindo com outros grandes programas, como “Tabuleiro da Baiana”, “Nada além de Dois Minutos”, “Tancredo e Trancado” e as novelas, estas com uma força tremenda. Além de mais 65 programas irradiados no decorrer de cada semana.

 

Mas quem escreve sobre rádio não pode deixar de falar nos célebres auditórios. E nos grandes mitos que eles criaram. Serão os auditórios um bem ou um mal? Creio que são uma faca de dois gumes. Mais para melhor do que para pior. Hoje, no rádio, já não têm grande expressão. Na própria televisão foram quase abolidos; substituídos por uma claque “encomendada” que atua numa desafinação terrível. Isso está acontecendo, por exemplo, nos programas cômicos. Chega a irritar o ouvinte ou o telespectador a importunidade dos seus pronunciamentos. Principalmente quando não é hora de rir, ouvem-se gargalhadas totalmente disparatadas. E silêncio quando realmente há algo engraçado. Os “maestros” da claque (na televisão) precisam aprender muito.


Os auditórios, quando não invadidos por maus elementos, são um bem. Gente decente, famílias de parcos recursos que ali vão (ou iam) apreciar e aplaudir de perto seus ídolos. Sua presença e suas manifestações constituem elemento de alegria. E é transmitido pelos microfones: sugestiona os ouvintes de casa que se integram naquele ambiente. Eles não o veem, mas o formam em sua imaginação. Principalmente nos programas de variedades e nos humorísticos. Passam a ser um mal, entretanto, quando “encomendados” e dirigidos por uma turma de desocupados. Comparecem para se digladiarem, num comportamento reprovável, em torno dos “astros” ou “estrelas” que os contrataram.

 

Na Rádio Nacional, havia os dois tipos de auditórios: os muito bons para os chamados programas de classe, que não promoviam artistas medíocres, nem distribuíam prêmios com o fim de atrair os seus frequentadores. E os “mesclados”, muito ruins, aglutinando uma “fauna” difícil de definir. A Rádio Nacional ficava na praça Mauá. Favorecia, pelo local, essa espécie de frequência para programas “popularescos”. Além dos referidos prêmios, procurava-se promover, de qualquer maneira, certos artistas. Nunca seus méritos vocais ou cênicos poderiam provocar aquele desmedido entusiasmo dos fãs.

Esse fato não foi combatido na ocasião oportuna. Hoje seria deselegante de minha parte citar nome de artistas medíocres. É que já estão, como eu, na compulsória. Por certo, vão passar o resto da vida naquela ilusão de que foram mesmo “astros” de verdade. Enganam-se a si mesmo com uma glória que era toda falsa, que foi fabricada por eles mesmos. O público daquela geração sabe bem de quem estou falando. Chegaram a promover manifestações tão ruidosas, que as frequentadoras da Rádio Nacional eram chamadas de “macacas de auditório”.

 

Um caso singular, no entanto, não podemos deixar de citar: Cauby Peixoto, ainda hoje atuando, e atuando bem, pois tem grandes qualidades. Seu lançamento, contudo, feito pelo empresário (um tal de Sr. Di Veras), foi a coisa mais ridícula que se pode imaginar. O Sr. Di Veras chegava a vestir Cauby de casaca, em grande gala; contratava “fãs” para estraçalhar-se as roupas ao sair da Rádio Nacional. Convocava até polícia “proteger” o seu contratado...Os policiais participavam da pantomima: erguiam Cauby, já todo rasgado, nos braços, para leva-lo até o carro que deveria conduzi-lo, a grande velocidade, como que a fugir dos fãs. Estou contando isso e citando o nome do Cauby, que como artista merece todo o meu respeito, porque ele mesmo, em recente entrevista, contou tudo assim mesmo.


Os piores auditórios continham, pelo menos, 80% de desclassificados, para 20% dos frequentadores de melhor qualidade, mais educados. Já nos auditórios bons essa proporção se invertia. Não se podia, de todo, impedir o ingresso de uma minoria duvidosa.

 

No mais, em matéria de auditório, eram também notáveis os mitos criados pelos programas do César de Alencar e do Manoel Barcelos. Promoviam as famosas festas de aniversário. Digo “festas” de aniversário porque elas não aconteciam somente na data natalícia das festejadas. Entendiam-se por um mês inteiro. Eram comemoradas cerca de oito vezes na própria Nacional. E ainda recebiam, convites das outras emissoras, para programas especiais em sua homenagem. Assim, chegavam ás vezes a comemorar trinta dias de aniversário, com festas e presentes. E um mundo de outras coisas promovidas pelos célebres “fãs-clubes”. Uma “confusão” total.

 

O rádio, como ninguém ignora, criou uma série interminável de mitos. Sobre eles muita coisa se pensava erradamente. Entre elas, a de que quem atingisse aquele grau de prestígio junto ao público deveria ser, forçosamente, um artista rico! Puro engano: os artistas, com muito raras exceções, ganhavam ordenados ridículos. A única, ou maior, vantagem era a divulgação dos seus nomes por esse Brasil afora. Tornava-os conhecidos. Proporcionava-lhes também uma renda extra: atuavam em espetáculos ou faziam pequenas excursões ao inteiro do país durante as férias. Desse expediente tive que me valer: equilibrava as finanças, sempre em caixa muito baixa.


No mais, durante toda a minha estada no rádio, vivi sempre no meio de “prontos” de toda a espécie. Era difícil encontrar quem dispusesse assim, de repente, de dez ou vinte cruzeiros na carteira. Estou falando dos artistas e dos empregados, notem bem...Os componentes da cúpula e sua grei, esses viviam a “tripa fora”, no melhor dos mundos, para nós indevassável.

 

Ganhavam, também, muito dinheiro os artistas estrangeiros que aqui aportavam. Nas curtas temporadas (15 dias, um mês, no máximo) arrecadavam mais do que qualquer um de nós em um ano! Havia algum as exceções, de artistas que conseguiram contratos especiais apresentando programas com os seus nomes como César de Alencar e Manoel Barcelos. Tinham cláusulas de porcentagem sobre a publicidade apresentada nas suas transmissões. Eram várias horas por semana. Os demais eram “mitos pobres” ou “pobres mitos”. Eu, por exemplo. Além das excursões que fazia nas férias (noutras épocas não podia faze-las: trabalhava muito), precisava juntar à minha condição de produtor, ensaiador e intérprete dos diversos programas, a função de vende-los para ganhar a devida corretagem. Um outro exemplo, entre muitos: Rodolfo Mayer. Tinha ordenado muito pequeno, sendo um ator excepcional. Conseguiu fazer sua situação econômica melhor, apresentado por esse Brasil a fora, a célebre peça As Mãos de Eurídice, de Pedro Bloch. Isso, para poder apresentar-se condignamente conforme o seu valor exigia.

 

Mostrei um panorama da Rádio Nacional. Baseei-me no que vi. E no que pude colher, em dados, contidos no livro comemorativo dos seus vinte anos de atividades, que termina com a promessa, para aqueles dias, da TV Nacional.

 

De 1956 para cá muita coisa aconteceu. Depois de três ou quatro anos, quase tudo para pior. Até cerca de 1961 ou 1962, ela ainda se manteve, mais ou menos, capengando, caindo aqui, levantando ali. Mas depois, com o advento de Jânio Quadros, João Goulart, revolução de 1964, depois de uma movimentação política tão confusa (apesar do nosso esforço quase que heroico para mantê-la) a “desgringolada” foi quase total. De vez em quando, a gente chegava na rádio e encontrava um movimento desusado de pinturas de salas, mudanças de móveis e escrivaninhas, daqui pra lá e de lá pra cá. Não era preciso perguntar: era diretor-geral novo que chegava para ocupar o lugar de outro inepto que saía. Sim, não houve até hoje um diretor da Rádio Nacional (com raras exceções) que não tivesse, como primeiro ato “administrativo”, a mudança de salas e de móveis!

 

Ah...ia me esquecendo: a gente também encontrava nos corredores, em aparente febril atividade, uns “caras” que nunca tínhamos visto. Eram os inúmeros “assessores” dos novos diretores: ganhavam ordenados dez vezes maiores do que os nossos. E com a condição precípua de “não fazer nada”. Ou antes, de meter a modificar, a atrapalhar o que estava sendo feito. Foram tantos que nem me lembro todos os seus nomes. Poucos, muito poucos, não agiram dessa forma. Estou falando dos diretores gerais...Diretores artísticos, ainda podemos citar alguns bons como Paulo Tapajós, Celso Guimarães, Péricles do Amaral, poucos mais. Mas por serem bons, não resistiram muito nos respectivos cargos.

 

Certo dia apareceu na Rádio, como diretor, um jornalista e comentarista de TV, Paulo César Ferreira. Encheu-nos de esperanças. Convocou os produtores: Eu, César Ladeira, Celso Guimarães e outros. Quis saber da nossa situação, achou ridículos nossos ordenados. Prometeu, sem ninguém pedir, dobrar os vencimentos. Para que todos nós pudéssemos nos aposentar com uma quantia condigna (pelo menos, dez salários mínimos). Falou muito nisso tudo nos primeiros dias. Depois, silenciou. E até um encontro com ele se tornava difícil. Quando isso acontecia, dizia: “Não se preocupem...Estou trabalhando, vocês merecem, etc”. A coisa já estava cansando e se apresentando como realmente era: um blefe. Numa quarta-feira, César Ladeira (que sofria do coração) encontrou-se comigo no radio-teatro e disse: Renato, o Paulo César vai mesmo tomar alguma coisa? Ou está esperando a gente morrer, para tomar alguma providência?!”. No dia seguinte, o tal diretor saiu da estação. Foi ocupar outro cargo não sei onde (hoje ele é diretor da Rede Globo de TV, em Recife).

 

Na segunda-feira, após meu encontro com o Ladeira, esta falecia. Deixou-nos a todos verdadeiramente desolados. No velório, na Capela Real Grandeza, como é costume, muita gente (tratava-se de um nome excepcional do rádio): repórteres, câmeras de TV, repórteres radiofônicos (inclusive o da Rádio Nacional), pedindo impressões sobre a figura do ilustre morto. E vinha, então, aquela série de bestialógicos e lugares comuns: perda irreparável, lacuna impreenchível, o rádio está de luto, e outras mais. Quando me entrevistaram, disse apenas: “Lamento profundamente um homem como César Ladeira tenha tido um fim tão melancólico. Elogios agora, mandar fazer enterro, etc, não adianta nada! O que se devia fazer por ele teria que ser feito em vida e não agora” Disse isso ao microfone da estação em que trabalhava. Causou grande celeuma e um certo mal-estar. Fui interpretado pelo diretor de rádio jornalismo da emissora. Á interpretação, respondi com uma pergunta: “O senhor pode me informar se o que falei é verdade ou mentira?!” Ele silenciou e não preciso dizer que a conversa parou por aí.

 

No velório de Paulo Roberto, repeti a dose. Mas em outra emissora, porque ele já não pertencia aos quadros da Nacional. Na morte de Celso Guimarães, um repórter se aproximava de mim quando foi instado por um diretor presente, que disse: “O Renato Murce, não! Esse é do contra!”.


No Brasil, quem fala a verdade “é do contra”. Mas a verdade é que, ainda que pareça incrível, quando César Ladeira morreu, ganhava a ninharia de 800 cruzeiros mensais. Ainda não tinha se aposentado. Deixou uma pensão ínfima para a mulher e os filhos. Essas coisas de Instituto, por mais que eles expliquem a gente não entende nunca: tiram 20% pra isso, mais 5% praquilo, 3% praquiloutro, no fim: ficaram 400 e poucos cruzeiros para a família. Com Paulo Roberto e Celso Guimarães, não sei quanto foi. Mas deve ter sido coisa parecida.

 

Interessante é o processo adotado para que a gente se aposente, e eles livrem de nós: não nos despedem nem nos aumentam o ordenado. Esperam que a gente solicite a saída, para se aposentar. Concordam, desde que deem somente 60% daquilo a que temos direito. E a prazo, o que é uma coação econômica. A mim, que tinha direito a 50 mil cruzeiros, ofereceram 30 mil em 30 meses, ou seja, 1.000 cruzeiros por mês (ganhava 800 cruzeiros; era como se eles me aguentassem lá por mais 30 meses. E todos sabem que 30 mil cruzeiros em 30 meses, não são exatamente 30 mil...). Como fizeram comigo, fizeram com muitos outros.

 

Tive a ventura de trabalhar 26 anos na Rádio Nacional. Ou, por outra, 26 não exprimem bem a verdade. Essa ventura foi de 10 a 15 anos talvez. Os anos restantes foram de trabalho, de dedicação, mas de amargura. Presenciava o declínio da estação que amávamos como se fosse o nosso próprio lar. Por isso, sinto-me à vontade para fazer esses comentários. Não são frutos do despeito ou do fracasso. Mas da tristeza com que presenciava os acontecimentos que ali se desenrolavam. E transformaram a grande emissora, de primeira colocada de preferência dos rádio-ouvintes, em quinta ou sexta (a posição que ocupava recentemente).

 

Saí daquela casa num desencanto completo. Ali “baixou”, ninguém sabe como, um diretor artístico que retirou do ar como medida inicial (autêntica provocação) as “Audições Renato Murce”). Era um dos muito poucos que ainda carreavam ouvintes para a faixa dos 980 kclos. Suspendeu o programa sem dar explicações. No dia seguinte saía da PRE-8, aceitando o acordo que me foi proposto. Não sem antes dizer algumas verdades ao referido “diretor”. Um homem de físico alentado, que, não sei como, “engoliu-as calado”.

 

Depois desse feito, praticado à revelia do meu amigo Pandiá Pires, então superintendente, por ordem deste o competente “diretor” foi compelido a me engajar novamente na Nacional. Um programa de entrevistas que estava alcançando bastante êxito. Mas, com a saída do Pandiá e a nomeação do seu substituto, meu novo programa foi extinto quatro meses depois. A alegação para suspendê-lo foi a falta de verba (3.000). No entanto, não faltou verba para nomear, por ordenado maior, outro elemento. E no mesmo dia. Além daquela turma de “bravos assessores” que acompanha os diretores que chegam.

 

Publicado originalmente em MURCE, Renato. Bastidores do rádio: fragmentos do rádio de ontem e hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.

3 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Gostaria muito de ter frequentado algum auditório de rádio.

ADEMAR AMANCIO disse...

Hoje está fazendo 75 anos da morte de Catulo da Paixão Cearense.

Roberto Rogerio disse...

Muito bom