quarta-feira, 19 de maio de 2021

Encontro Radical Adoniran Barbosa III de V: Maloca Adentro

CAPÍTULO 3
MALOCA ADENTRO

Por Valter Krausche

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Adoniran e os Demônios da Garoa, 1956

Muitos gestos transportam aos perigos. Rápidos, fragmentos, aleatórios. Do outro lado da rua brilham as novidades. O olho obriga-se aos detalhes. O novo, o moderno, num piscar de olhos. As passagens, os automóveis, os ônibus, os caminhões. Motores, buzinas. Os anos 20/30: Berlim, o centro do espetáculo, dos costumes, da cultura, da política. Paris. Mas o Rio de Janeiro já estava “tornando-se inabitável”. “Gonorréia? Injeção King” Fichas na caixa. O cafezinho tomado no balcão, em pé. Não mais nas cômodas mesinhas. O horário comercial. Os andares sobem ainda mais. Os joelhos à mostra, praias, maiôs. O crediário. O crack da Bolsa de Nova Iorque. O café em baixa.

Em 1931, Com que Roupa?, samba de Noel Rosa, vendia 15.000 discos. 5% da população do país possuíam vitrola. Crescimento e crise: São Paulo começava a não poder parar. 1930: 34.922 construções. “Bairros Jardins” versus antigas “vilas operárias” e novas periferias. O Mercado Central com seus vitrais góticos (1933). O estádio do Pacaembu (1935/38). Os viadutos do Chá, Major Quedinho, Martinho Prado, a Avenida 9 de Julho, a Biblioteca. Já “não pode parar”: 1941, 3.000 ônibus, 500 bondes, 30.000 veículos a motor, 4.000 fábricas, 1.400.000 habitantes, milhares de nordestinos cansados. Alargam-se os espaços e os perigos. Uma grande mistura, desigual e combinada. Vozes diversas do mosaico cultural: 30% de estrangeiros e seus filhos. Italianos, sírio-libaneses, orientais e outros que chegavam. A cidade se multiplica, acolhendo/matando/renascendo seus novos filhos. Cresce para os lados, manca, incontrolável, periférica.

O disco e o rádio desenvolveram-se com a grande cidade. O rádio, que na década de 20 iniciava-se, no Brasil, como amador e com uma programação erudita, mudava de conduta a partir dos anos 30: a música chamada “folclórica”, tida como exótica, e ao mesmo tempo inferior, passava a ser definida como popular e a ocupar um espaço cada vez maior nas ondas do rádio.

No ano de 1932, com a legislação da publicidade radiofônica, entrava-se na fase da profissionalização e a popularização do rádio. No Rio de Janeiro despontavam a Rádio Sociedade, a Rádio Clube do Brasil, a Mayrink Veiga, a Philips e a Educadora. Em pouco tempo o rádio formaria com a imprensa uma certa composição amorosa, muitas vezes extremamente íntima: em 1935, o Jornal do Brasil criava a sua emissora; o jornal O Globo controlava a Transmissora do Rio de Janeiro, através de um contrato com a RCA Victor, antiga proprietária. Em 1936, era a vez da Editora A Noite: três soadas de gongo e logo depois, pela primeira vez, ecoava a voz que ficaria famosa: “Alô, alô Brasil!” – nascia a Nacional do Rio de Janeiro (PRE-8), que em 1940 seria encampada pelo governo Getúlio Vargas (Estado Novo, 1937-1945).

Em São Paulo, foi a Tupi (PRG-2) que surgiu “associada”. Assis Chateubriand fundava, em 1937, “A Mais Poderosa”, unindo rádio e jornal (“Diários Associados”) e com o tempo também inaugurando-a no Rio. Naquele momento, já se destacava como líder de audiência da Record, a primeira a constituir um cast fixo no país, aquela que organizou a cadeia e emissoras paulistas em defesa da Revolução de 1932. Nos anos 30, além da Record e da Tupi, São Paulo contava com várias emissoras: América, Bandeirantes, Cruzeiro do Sul, Cultura (“O Palácio do Rádio”, na Avenida São João), Difusora, Educadora e São Paulo. Em 1941, quando Adoniran Barbosa estreava na Record, a cidade comportava dez emissoras de rádio e setenta cinemas e teatros. Com avenidas e viadutos sendo centro com suas periferias, favelas e malocas, sob uma suposta e poética garoa londrina, era São Paulo, moderna.

O rádio chamou e eles vieram. O rádio selecionou: cantores de rua e circo, maestros estudados, “maestros de assobio”, vendedores, atores, aventureiros, intelectuais. Primeiro os estúdios, depois os programas de auditório, principalmente durante os anos 40 e início dos 50. E os grandes nomes da música popular e da comédia em desfile. O humor daquela música muitas vezes próximo dos programas humorísticos: Lamartine Babo, durante a década de 30, Jararaca e Ratinho, Adoniran Barbosa.

Até aos anos 50, mais tardar até os 60, alguns programas humorísticos radiofônicos notabilizaram-se. No Rio de Janeiro, na Rádio Nacional, Tancredo e Tancrado, de Giuseppe Chiaroni, PRK-30, de Lauro Borges e Castro Barbosa, e Edifício Balança mais não Cai, de Max Nunes e Haroldo Barbosa, a partir der 1951 na Nacional, substituindo PRK-30, que havia sido transferido para a Mayrink Veiga. Em São Paulo destacaram-se Marmelândia, sátira política de Max Nunes e Haroldo Barbosa, e Rua do Sossego, na década de 50. E, sem dúvida, a partir de novembro de 1955. História das Malocas, na Record (PRB-9).

Com o humor, o rádio, em sua época áurea, foi reproduzindo o discurso do cotidiano dos vários segmentos sociais, humor que tinha tradição na música popular, no samba de Sinhô, nas marchinhas de Lamartine Babo, em parte da obra de Noel Rosa, no samba-de-breque, e que iria encontrar em Adoniran uma expressão muito própria. A paródia, os trocadilhos, os anti-heróis são alguns de seus gatilhos mais constantes. Tudo isso tornou-se possível pelo espaço que o rádio era obrigado a oferecer à elaboração de uma linguagem onde os ouvintes de algum modo participavam com suas falas, com sua realidade, nos programas de auditório, com o tempo pelo telefone, etc. Nesse sentido, os seus artistas eram mais sensíveis as demandas culturais das populações urbanas. Esse foi o momento em que o rádio aparecia como líder dentro do sistema de comunicação de massa e operava com aquele humor cuja origem estava, em grande parte, nos segmentos sociais mais pobres, no outro lado da vitrine da grande cidade, componente da tensão que constitui o moderno.

Nesse espaço movimentou-se Adoniran Barbosa, constituindo a sua máscara de humorista e sambista. Na realidade, por dentro do seu humor revelava-se uma dor. A cidade que amava crescia, mudava acarretando a dissolução dos antigos laços de solidariedade, a quebra dos tradicionais compromissos entre vizinhos e amigos e a destruição de espaços urbanos que possibilitavam encontros e festas. Por essa via, não podia desvencilhar-lhe de uma condição, aliás de uma contradição muito rica que lhe deu asas para prosseguir em seu percurso: quanto mais se envolvia com a cidade, mais ela escapava do seu controle. Daí a sua busca na tentativa de reter em sua voz e em seus gestos os rostos e vozes da cidade, sabendo que a dissolução das relações tradicionais era um fato irreversível. Adoniran sabia que não havia outro jeito, a não ser caminhar contraditoriamente para o futuro, como um errante traditoriamente para o futuro, como um errante na maré das transformações que se processavam.

O resultado não poderia deixar de ser tragicômico, do cômico contendo o trágico, o caráter anti-herói dos personagens, a riqueza multifacética de sua voz, que com o tempo, foi-se expressando no sotaque melódico de suas composições. Tal performance não seria possível sem uma andança fundamental: Adoniran Barbosa, uma antena afinadíssima entre a realidade cotidiana e o rádio. E nos programas humorísticos de que participou, desde 1941/42, e através deles, criou tipos e instrumentalizou os escritores do rádio para que pudessem desenvolvê-los.

Não foi à toa que a revista It, em 1946, chamou Adoniran de “O Milionário Criador de Tipos Radiofônicos” e Oswaldo Moles de “O Milionário Criador de Programas”. Naquele ano, Adonis, como era apelidado na Record, notabilizava-se em São Paulo com suas 16 interpretações. “Zé Cunversa”, que ficou no ar até 1954, no programa A Casa da Sogra, destacou-se como um dos seus tipos mais famosos:

“Neca, seu branco, né tristeza não; eu tô é ofendido. Num posso cum esses peste desses brancos...Achá que nóis os preto devia de arranjá um outro logá pra passeá nos domingo...eles vão querê me enganá que a Rua Direita é deles! Né não – a rua é livre – eu sô preto, sô brasileiro e passei na Rua Direita quando quisé – me batê, ninguém vai”.

Não ficava atrás “Barbosinha Mal-educado da Silva”, o moleque da “Escola Risonha e Franca”:

“Tô inocente, não fiz nada”.

“Giuseppe Pernafina, motorista de táxi do Largo do Paissandu, também corria pelas ondas da Record:

“Eh vae mar. Vae mar a vida, vae mar...te digo eu que a vida vae mar, porque vae mar mesmo. Porque quando vae mar, vai mar é porque vae mar mesmo...Estou aqui no ponto desde cinco de la matina, e ainda num virei a chave – e tenho uma dor no amolar esquerdo, que não sei se abestraio ele ou se faço uma anistia gerar...por isso te digo que vae mar...”

Ou o “Dr. Sinésio Trombone, o gostosão da      Vila Matilde”:

“Sua excelência chegou num momento intramuscular propedêutico impróprio, porque dentro das congeminências hiperbólicas, posso afirmar que ele não se encontra neste ambiente filarmônico e holocáustico. Tenho dito!”.

Ou o “Prof. Richard Morris” e seu irmão gêmeo “Richard Morris” (por parte de mãe), tipos criados a partir de Adoniran e escritor por Armando Rosas, apresentados em parceria com Ivo de Freitas:

“Chesterfield Sereneide chata nooga, chu chu – end may reveri six chevrolet laite and pauver.
O yes – a traduçon deste fraze que eu disse é a seguinte – Tromba de elefante não serve para regar flores do jardim”.

Ou “Moisés Rabinovicht”:

“Eu vende barrato parra senhor...eu vende à vista e a pestaçon”.

Ou “Oswaldo Luiz das Gardênias Lilases”, o cronista “delicheuse” do Jardim América, ou “Don Segundo Sombra”, “el mayor radio-teatrólogo del mundo, del teatro Pisca-Pisca, rápido como um rayo de luna”, ou “Jean Rubinet”, “ator do cinema francês”, e outros.



Deste modo percorre os programas e os anos. Para se ter uma ideia do envolvimento do nosso ator com o rádio, citamos aqui as informações da revista Rádio-Teatro (Revista Semanal das Grandes Novelas do Rádio), publicada no Rio de Janeiro em abril de 1953. Segundo a revista, Adoniran trabalhava todos os dias da semana: na segunda-feira, 21 horas, em Solteiro é Melhor, onde representava um humilde marido, Confúcio das Dores; na terça, ás 21h30, em Convite ao Samba; na quarta em Show Castelo e em Vale Quanto Pesa; na quinta 21 horas, em A Presença do Trio; na sexta em O Crime não Compensa; no sábado, em Sítio do Bicho de Pé; no domingo, 21 horas, em A Grande Filmagem, ao lado de Anselmo Duarte, Ilka Soares, Alberto Ruschel e do grande cast da Record, além de duas orquestras, regionais, cantores, sob a direção de Blota Júnior. Além de tudo isso, apresentava-se todos os dias em Charuto e Fumaça, ironizando o esporte. Em 1954, ei-lo no Sítio dos Tangarás, de Agostinho Aguiar Leitão, todos os sábados, das 19h05 ás 19h25, onde fazia de tudo: caipira, viajante, vilão, cantor de modinhas, dependendo do programa, que contava com outros radioatores e atrações musicais como Elisete Cardoso, Carlos Garlindo, o sanfoneito Luís Gaucho e outros.

De todo esse percurso, de mascate a artista de rádio, acabou aportando na “Maloca”, vestindo a pele de “Charutinho”, que como dissemos no capítulo anterior, foi aquele que mais se assemelhou à voz de seu intérprete. Chegamos, enfim, às Histórias das Malocas, escritas como “radiocontos” por Oswaldo Moles. O mascate transformava-se no desocupado-malandro do “Morro do Piolho”, moderno lado avesso do moderno, desaguar de quem respirou, através da busca, a cotidiana geografia sócio-cultural de sua cidade e perseguiu os rostos e os rastros da humanidade diluída na multidão da rua.

“E a Rádio Record – estação PRB-9 de São Paulo – passa a transmitir, neste momento, como em todas as sextas-feiras, às 21 horas...Histórias das Malocas”.

Essa “viagem costeira pela vida dos humildes”, como se definia o próprio programa, tinha antecedentes na Record e no rádio brasileiro, no que tange ao seu aspecto de crítica social. Além de vários exemplos que podem ser lembrados, podemos evocar um trecho do famoso PRK-30 da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, uma paródia da valsa Saudades do Matão:

“Nós antigamente tinha carne
Nós antigamente tinha pão
Nós antigamente tinha feijão
Carestia
A manteiga, a farinha de trigo sumiu outra vez
Nós antigamente não tinha as fila
Hoje tem fila pra tudo
E a maior fila que tem é a fila do ladrão”.

Porém, a paródia frisava algo que em Histórias das Malocas quase sempre aparecia reticente, ambíguo, contraditório e, portanto, mais rico e expressivo. A paródia de Saudades do Matão sublinhava um “antigamente” idílico onde se tinha tudo, sendo que o fato de se sentir “saudades do matão” sugeriria um passado onde a industrialização e a modernização ainda não haviam provocado a “carestia”. No humor de Adoniran e Moles, o passado não era representado como tão antigamente assim; ele estava vivo, recente no movimento do presente. No samba Saudosa Maloca, de 1951, que teria inspirado o programa, já se manifestava a tentativa de fazer do passado algo que estivesse vivo, doído, na pele dos personagens, de trazê-los à consciência do ouvinte como uma denúncia. Adoniran conseguia captar a cidade em seu movimento, a sua rápida e brusca mudança. Embora chegasse a enfatizar num dado momento “os dia feliz de nossas vida”, sabia que era impossível voltar a eles. Daí a sua pouca ênfase na valorização de um passado “bom” contrastando com um presente degradado. É só prestar atenção à letra:

“Si o sinhô num tá lembrado
Da licença de conta
É que aonde agora está
Esse edifício arto
Era uma casa véia
Um palacete assobradado
Foi aqui seu moço
Que eu, Matogrosso e o Joca
Construímo a nossa maloca
Mais um dia, nós nem pode se alembrá
Veio os home cas ferramenta
Que o dono mandô derrubá
Peguemo toda as nossas coisa
E fumo pru meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nóis sentia
Cada tauba que caía
Doía no coração
Matogrosso quis gritá
Mas em cima eu fazei
‘Os home tá ca razão
Nóis arranja outro lugá’
Só se conformemo
Quando o Joca falou
‘Deus dá o frio conforme cobertô’
E hoje nós pega paia
Nas grama do jardim
E pra esquecê
Nós cantemo assim:
Saudosa maloca
Maloca querida
Din-din-donde
Nós passemo
Os dia feliz
De nossa vida”.

Diante do olhar distraído e do andar brusco e apressado do homem que passa, o cantor arriscava-se a mostrar-lhe um “edifício arto”, que se o homem não fosse “lembrado” continuaria a ser apenas um “edifício arto”. O homem era chamado a reter o seu olhar no acontecimento que lhe continuaria despercebido se não fosse o samba tentando chama-lo para um novo ritmo, para uma nova sensibilidade em relação aos objetos urbanos que o cercavam e o envolviam. O samba, ao interromper aqueles passos, tendia a ser um antiandar ou um novo andar proporcionando novos ângulos de visão da cidade. Mas para onde nos levaria?

A interrupção através desse ritmo nos leva a uma dimensão da realidade oculta pelo andamento “normal” da cidade em mudança: a expulsão do cantor, de Matogrosso e de Joca. O que acontece nessa expulsão?  Diante da destruição realizada pelos “home cas ferramentas”, inicialmente eles foram “pru meio da rua/apreciá a demolição”. Mas aí ocorre um momento importante dentro do samba: “Matogrosso quis gritá”, mas o cantor tenta acomodar as coisas, “nois arranja outro lugá”. Tudo bem? Parecia que os anti-heróis se conformavam. Contudo, de ouvirmos a frase seguinte, sentimos que a situação não se definia tão bem assim: “Só se conformemo/ quando o Joca falou/ Deus dá o frio conforme o coberto” vem expressas que ainda era difícil aceitar a expulsão. Aí o ouvinte, ou respira aliviado, ou mostra-se derrotado, pois, enfim, o cantor, Matogrosso e Joca se conformaram. Ou não? Por mais que o conformismo se manifeste, a dor causada não se apaga, pois os três expulsos continuam a sofrer, a pegar “paia/nas grama do jardim”. Trata-se, portanto, de um conformismo que carrega, dentro de si, a denúncia. E mais: quando se tenta “esquecê”, nada mais se faz do que lembrar:

“Saudosa maloca
Maloca querida
din-din-donde
Nóis passemo
Os dias feliz
De nossas vida”.

Ou seja, a referência do passado feliz acaba por representar a atualização do drama cantado, por transformar-se num meio de sentir o passado no movimento do presente. Ouvimos assim o samba dos paradoxos: ao retornar ao que já se foi, se é impelido para o que se está vivendo; ao conformar-se com a violência e com a expulsão, transporta sua denúncia; ao apresentar-se como algo que pode ser cantado alegremente, habita-lhe uma nódoa que o ouvinte é chamado a sentir com intensidade. Quanto a este último aspecto, estamos diante do engraçado, e o engraçado não se reduz ao imediatamente alegre. É assim o samba de quem usou como estratégia de criação o seu andar-compor, quem usou a linguagem vivida nas ruas, identificando-se com ela, e, ao mesmo tempo, tentando superá-la. Mas exatamente qual linguagem? A daqueles que, por falta de soluções concretas e por sua imediata sabedoria, são obrigados a dizer “os home tá ca razão/nóis arranja outro lugá”. E como o cantor consegue superá-la? Através do andar que o mantém preso às ruas da cidade mas que o distancia dos dramas por que passa. Tal distanciamento é o que lhes permite tratar e sentir a realidade com a qual se envolve como objeto de seu canto, como algo que carrega e que pode transformar em e pelo samba.

O programa que se seguiu, Histórias das Malocas, trouxe aquelas características encontradas no samba de Adoniran, apesar de imprimir uma certa idealização das “malocas” através do “lirismo” imposto pelo seu produtor Oswaldo Moles. Apesar disso, a “maloca” não surgia com um “belo” passado e um presente degradado. Ela estava ali no seu presente:

“Esta é a minha maloca, manja? Mais esburacada que tamborim de escola de samba em quarta-feira de cinza. Onde a gente enfia a mão no armário e encontra o céu. Onde o chuveiro é o buraco de goteira. Não tem água de zinco. Ás veis a gente toma banho em bacia e se enxuga com a toalha de vento. E quando não tem água a gente se enxuga antes de toma banho”.

Contudo, em outros momentos, ela surgia engraçadamente amarga, na voz de “Charutinho”, o grande Adoniran Barbosa:

“Resedença!...Uma maloca que se entrá um burro fica cô rabo de fora...” (21.8.1959)

Mas, afinal, o que são as “malocas”? O leitor deve lembrar do capítulo anterior: o conjunto nada “residencial” do Morro do Piolho. Ali amontoam-se os barracos como o de “Terezoca” (interpretada por maria Tereza), como o de “Dija” (Djalma Amaral), e por ali perambula o negrinho alérgico ao trabalho, o malandro sempre comicamente mal-sucedido, “Charutinho”. Por vezes, as “malocas” tendem a se definir enquanto uma “comunidade”, apresentada inclusive um modo de falar característico, o “errado”, cujo procedimento permite ao programa realçar a ambiguidade das palavras, garantindo significações que traduzem críticas à sociedade mais abrangente. Nas “Malocas”, as expressões são deformadas, ampliando-se a sua significação:

“Venanço: - Charutinho! Ocê sabe que eu sô candidato?
Charutinho- Catedrático! Ocê é catedrático a quê?”.

Deste modo, a ignorância de “Charutinho” transforma-se “sem querer” em crítica ao sistema político-eleitoral. “Catedrático” sugeriria um cargo vitalício, indicando a ausência de renovação do sistema e a impossibilidade da maioria das pessoas de participar dele. A ignorância transporta a sua sabedoria, a sua crítica, movimento que esteve presente nas composições mais importantes de Adoniran. Pela linguagem e pela ótica das “Malocas” critica-se a sociedade abrangente. Mas não se trata aí de uma oposição da “comunidade” à sociedade: o Morro do Piolho é parte e quer fazer parte do processo de industrialização e de urbanização que o gerou, quer usufruir das facilidades do moderno, porque representa um dos seus lados, mesmo sendo o seu lado avesso.

No programa de 2.5.1959, cujo título é “Rico só conhece pobre em dia de eleição”, o Piolho quer participar da política. E “Charutinho”, após aceitar fazer campanha de dois “catedráticos” concorrentes do próprio Morro, “Venanço” e “Gerarda”, acaba por assumir a candidatura do primeiro, diante da compra de votos realizada por “Gerarda”. Mas para isso usa um expediente muito conhecido na sociedade brasileira: o roubo de urna, em que é descoberto. Utilizando meios comuns a sociedade, as “Malocas” contribuem para a sua reprodução assim como do sistema político-eleitoral. Contudo, o instrumento nada democrático, o roubo da urna, é aqui praticado por alguém desprovido do poder de manipulação do sistema, obtendo-se um resultado bem diferente daquele alcançado por pessoas bem “assessoradas” ou estrategicamente bem localizadas. Por essa via, as “Malocas” são “Histórias” onde a utilização dos comportamentos dominantes na sociedade serve para expô-los criticamente, de uma forma indireta mas contundente. “Malocas” não são o rural contra o urbano, o tradicional contra o moderno; são feridas no movimento do presente. Sua linguagem aparentemente “errada” e ultrapassada é a linguagem do rádio.

Num outro dia (25.1.1963), eles vão em busca de trabalho. E só encontram um. Para ocupar a vaga “elegem” o mais vadio, o mais preguiçoso, o malandro “Charutinho”, para trabalhar na fábrica. Por ser necessitado e para receber uma “lição”, “Charutinho” é encaminhado ao departamento pessoal da fábrica, para ali retornar várias vezes trazendo atestados, documentos e vacinas. São tantas as suas idas e vindas, tão difícil, comicamente difícil, atender às exigências burocráticas, que o anti-herói tenta escapar:

“Eu tenho que tirá tanta coisa pra trabaiá, que eu vô boquejá pa turma do Morro pa vê se por motível das dificurdádias...”.

O principal colaborador de Adoniran foi o compositor, escritor, jornalista, radialista e roteirista Oswaldo Moles (1913-1967). Ele recebeu uma homenagem numa pequena rua no bairro da Vila Leopoldina, zona Oeste de São Paulo. Foto de Matheus Trunk

Sempre ajudado pelo pessoal do Morro do Piolho, “Charutinho” é obrigado a vencer as dificuldades e tomar posse. Quando chega o dia, uma “comissão” do Morro se apruma: eis a hora de levar “Charutinho” ao seu emprego, o momento da festa, da solenidade. E na portaria da fábrica, a confusão: a “comissão” proibida de entrar e “Charutinho”, que se revolta contra a proibição, demitido. O que o Morro do Piolho reivindicava? Trabalho com festa. O que o sistema de trabalho impõe? Que haja ordem, hierarquia, disciplina. Assim, a festa do trabalho fica proibida pelo sistema industrial do trabalho, suporte da modernização. Reproduz-se o “Charutiho” como se encontrava no início da “História”:

“- Trabaio é boca? Trabaio num é boca. É sepurtura, é tumo”.

Portanto, a crítica presente em Histórias das Malocas e na fala do malandro “Charutinho” não se dirige simplesmente contra o trabalho em si. Ataca, sim, o caráter sombrio e pesado que o trabalho adquire em um sistema industrial como o nosso; contra a forma pela qual o trabalho é manipulado e explorado:

“- É como dizia anedota: muita gente trabaia...e os outro vive”.

Ou como diz o velho ditado:

“O diabo só dá cachimbo pra quem sofre de asma”. (Programa de 24.7.1963).

Foram essas “Malocas” que Adoniran carregou nos seus sambas. A intimidade foi tão grande que eles também fizeram parte do texto daquelas “Histórias”, a partir do compositor do Morro, de “Charutinho”. Em alguns programas, questões referentes à composição e aos direitos autorais ocuparam um espaço central. Se o samba “mora na filosofia”, como as “Malocas” “filosofaram” o seu samba? É só ouvir um pouquinho de uma discussão maloqueira a respeito:

“Charutinho- Ocê num tem uma dô escondida?
Dija: - Tenho. Ô tenho um calo que eu fiz na primeira veiz que usei sapato de coro que é como dente de caipira: dóoooooi.
Charutinho: - Mais calo num dá samba.
Dija: - Pruque é que ocê num faiz alguma coisa sobre a cachaça? Num é uma boa pidida?
Charutinho: - A pidida de cachaça é uma boa pidida. Mais uca, em samba, já encheu”. (31.1.1964).

Quer dizer, o samba deve nascer cantando algo que não seja lugar-comum, e algo que não esteja tão a mostra, mas que deve ser procurado, novo.

Movido pela procura, eis que “Charutinho” vai chegando a algumas descobertas: “Quebrô um vidro em casa do individro”, “O samba do maiorá do samba”...Nenhum serve. A “maloca” vai reprovando. Segundo “Simprício” (interpretado por Simplício) a terceira tentativa, “O ferrero rasgo a carça do afanadô de penosa” é um samba “peço”:

“Eu já falei que nem num é ruim, nem num é sufrive, nem num é mau. É peço”.

Assim, a procura continua. Para isso o Morro do Piolho colabora: três garrafas de pinga, cinco caixas de “fosqui”, pedaço de “calne seca com ovo”, ou seja, o inxová pa fazê samba”, e lá vai “Charutinho” se esconder no mato. Quando volta, traz consigo a composição contra a “puliça”. Eis o “estribio”:

“Mas no Morro a gente é livre pa cachorro
Pode mata, esculacha e ofendê
Porque aqui num se usa artuarmente
A RP
A RP
A RP”.

“Dija” gostou. Todos gostaram. O samba está pronto. Apesar de ter sido composto em isolamento (mato), só passa a valer como música quando conta com a apreciação positiva do grupo, da “comunidade” do morro. O samba deve ser algo novo, mas ao mesmo tempo fruto do consenso. Deste modo, fica difícil compô-lo, como tenta nos dizer o programa citado. Há que se andar. Muito.

Contudo, aparece quem não gosta da canção de “Charutinho”: a “puliça” na figura de “Chico Tira”. Novamente o anti-herói vai para a cadeia:

“Mais a liberdade de palavra? Samba é palavra feito melodia”.

Com essa frase de revolta, “Charutinho” nos deixa a última pasta, o último ingrediente para compreendermos a sua receita. A liberdade de expressão só deve depender do modo de compor, da combinação das palavras já contendo a melodia. Enfim, possibilita-nos captar algo essencial na música popular: o tenso caminho entre a liberdade individual e as exigências do público, o que pode ser percorrido se o autor identificar-se com e, ao mesmo tempo, distanciar-se das pessoas e coisas de sua cidade, de seu mundo. Só lhe cabe, como dissemos, andar.

Publicado originalmente por KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

A vida e o repertório de Adoniran rende história,várias histórias.