terça-feira, 18 de maio de 2021

Encontro Radical Adoniran Barbosa II de V: Andando

CAPÍTULO 2
ANDANDO

Por Valter Krausche

Seleção e transcrição: Matheus Trunk



Certa ocasião, Alfredo Ricardo do Nascimento, mais conhecido por Zé do Norte (autor, entre outras, de Sodade, Meu Bem, Sodade), comentando a sua obra, afirmava: “nunca estudei música, apesar de ter vontade. A minha poesia já saí musicada”.

O que na verdade essas palavras transmitiam era a verdadeira “ciência” da composição popular. Não se trata da vela e surrada desculpa da “inspiração”, mas de uma descoberta, do poder de combinar as palavras pelo máximo de seus efeitos sonoros. Numa rápida e antiga definição, Dante Alighieri dizia: “uma canzone é uma composição de palavras posta em música”. É, portanto, a descoberta de que as palavras, por sua sonoridade, podem ser colocadas numa determinada ordem que não poderia mais ser definida como poema, mas enquanto um tipo de música, a popular. “A minha poesia já sai musicada”, disse Zé do Norte. A partir daí, não se pode lê-la, para captá-la em tudo que pode oferecer há que ouvi-la.

Esse poder do músico popular não lhe nasce por mágica. Frutifica de um aprendizado, de uma vivência das linguagens do cotidiano, das entonações que essas linguagens transportam. E, portanto, assimilando o sotaque, as inflexões e os acentos presentes no falar do dia-a-dia dos homens que o músico popular elabora as suas canções.

Mesmo aqueles que se apropriaram de refinadas técnicas musicais para compor suas canções tiveram que, de uma forma ou de outra, debruçar-se sobre a sonoridade própria dos colóquios, das conversas de rua, dos sotaques do dia-a-dia, em toda uma musicalidade não corporificada, diluída no cotidiano.

Assim nasce o músico popular. E se desenvolve. “A rua foi minha escola”, disse um dia Adoniran Barbosa. E foi. O exterior inclusive se apresentou como característica importante na arquitetura de sua música: a rua, a avenida, os bairros, o lado exterior e transeunte da cidade. E quando se quer entrar em casa, passar para o interior, pode-se encontrar complicações ou a porta fechada. No samba Véspera de Natal, por exemplo, quando fantasiado de Papai Noel, pretende presentear as crianças com “bala mistura” e “pãozinho de mel”, vejam só o que acontece:

“Ai meu Deus, que sacrifício...
O orifício de chaminé era pequeno
Pra me tirá de lá
Foi preciso chamar
Os bombeiros”.

No Samba do Arnesto é a porta que é encontrada fechada:

“...Nóis fumo
Não encontremos ninguém
Nóis vortemo Cuma baita de uma réiva
Da outra veis
Nóis não vai mais
(o que é que nóios feis?)
Noutro dia
Éncontremo co Arnesto
Que pediu desculpas
Mais nóis não aceitemo
Isso não se fais Arnesto
Nóis não se importa
Mais você devia
Ter punhado um recado na porta”.

A rua tornou-se a casa de sua música, a síntese de sotaques, de entonações próprias das migrações que povoaram a cidade de São Paulo. Daí nasce o seu músico. Por essas ruas ele anda: música e letra surgem com esse andar. Neste sentido, é o próprio Adoniran que nos confessa: “De vez em quando eu faço sambas na rua andando, como esse que você viu agora, o Envelhecer é Uma Arte...”. Ainda segundo Adoniran, um dos seus sambas mais conhecidos, Saudosa Maloca, foi também fruto desse andar.

Contudo, cabe aqui lembrar ao leitor que o andar-compor a que nos referimos não se reduz ao ato literal das pernas, mas implica uma atitude de quem retira de suas andanças a matéria modelar de suas canções. No caso de Adoniran, é da captação dessa linguagem das ruas, de uma identificação com ela, mas que a supera pela musicalidade, que surge a marca “ítalo-paulistano-caipira” dos seus sambas, que não pode ser percebida unicamente através de seus textos, mas também pelo sotaque da melodia e pelo modo de cantar que sugerem.

O exterior assumiu um peso tão grande na obra de Adoniran que se torna difícil destacar dali a presença do recinto fechado e a canção que lhe corresponde: o intimismo e a “dor de cotovelo”. Por isso, poucos exemplos sobram para serem citados, como Bom-Dia, Tristeza, composta em parceria com Vinícius de Morais (letra), gravado por Aracy de Almeida em 1956, e alcançando grande expressividade mais tarde com a “intimista Maysa Matarazzo:

“Bom-dia tristeza
Tão tarde, tristeza
Você veio hoje me ver
Já estava ficando
Até meio triste
De estar tanto tempo
Longe de você

Se chegue, tristeza
Se sente comigo
Aqui nesta mesa de bar
Beba do meu copo
Me dê o seu ombro
Que é para eu chorar
Chorar de tristeza
Tristeza de amar”.

Portanto, o renascer constante do músico que foi Adoniran ocorreu estrategicamente num espaço que possibilitou a reprodução de um falar típico de uma cultura urbana, que apesar de ser definida menos até os anos 50, certas características muito próprias, quando se tratava das camadas sociais menos favorecidas e de certos bairros da cidade. A massificação não havia atingido o grau e a “qualidade” que atingiria nos anos 70. Ainda não éramos banhados pelo vídeo da rede nacional, não estávamos tão integrados “de norte a sul” nessa tendência a um falar “global”. Os meios de comunicação ainda liderados pelo rádio eram obrigados a levar em conta as vozes que emergiam da população local. No caso específico do rádio, o seu poder de seleção e controle das informações tinha que operar num espaço de criatividade que necessitava de um contato mais direto com os ouvintes, permitindo uma participação menos indireta do público na formulação das mensagens. A radiodifusão agia ainda limitadamente sobre a área de uma cidade e seus arredores. Excetuando-se a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, todas as outras eram emissoras locais. As entonações e as personagens regionais serviam como elementos importantíssimos na elaboração das mensagens, embora ao mesmo tempo o rádio local fosse um veículo de reprodução de uma mensagem nacional.

Adoniran Barbosa foi exatamente o artista que soube combinar os elementos de sua cultura urbana “regional”, que podem ser percebidos em grande parte dos textos de suas músicas e na forma de cantá-las, com aqueles que se espelhavam pelo país a partir do Rio de Janeiro, isto é, da indústria fonográfica e das emissoras de maior alcance.

Depois, o espaço de criatividade mudou: por volta dos anos 50, e adentrando a década seguinte com a ampliação da área de influência da televisão, e sob a sua liderança, muitos dos sotaques “regionais” deixam de marcar presença nas mensagens dos meios de comunicação de massa. Do rádio, que se caracteriza por um contato mais direto com a população, passamos à tendência já mencionada do falar “global”, acentuando-se uma relação mais impessoal entre os media e a sua clientela.

O música e o artista Adoniran Barbosa esteve ligado a esse processo de transformações iniciado em 1930 e que se tornou estrondoso a partir dos anos 50. Foi pelas ruas dessas transformações que esse nosso cantor andou durante esse tempo. Não é desprovido de sentido o fato de a maioria de suas canções mais conhecidas ter sido composta naqueles últimos anos: Saudosa Maloca (1951), Samba do Arnesto, As Mariposas (1955), Iracema (1956). As mudanças que, no bojo do processo do desenvolvimento urbano-industrial, ocorriam nas relações interpessoais estariam vivas em sua obra. No já citado Samba do Arnesto há, por exemplo, a denúncia da quebra do compromisso do Arnesto, de um comportamento socialmente esperado, de um tipo de sociabilidade.

“Sabe o que nóis fais
O que?
Nóis num fais nada
Porque dispois que nós vai
Dispois nós vorta”.

A resposta não deixa dúvida: “nóis num fais nada”. E as duas últimas frases comicamente anulam-se em termos de seus significados, enfatizando realmente que mais nada restava fazer. A realidade da mudança tornava-se mais forte. Além disso, a ruptura com o comportamento esperado penetra o próprio modo de cantar, ou de não cantar: a fala citada é resultado de um “breque”, de uma ruptura com a melodia; o samba esperado, que havia sido combinado, não veio. Restava apenas o humor irônico do breque.

E, nos anos de rádio, Adoniran foi aquele que trouxe para os seus programas humorísticos personagens e falas do burburinho da cidade em mudança, que ele mesmo devolveu ao público interpretando. Foi dessa sua experiência que também se sedimentou seu samba, toda sua sonoridade, frases, provérbios que lhe garantiam um estilo. Dessa experiência do “osservatore dos tipos de rua”, como o próprio Adoniran chegou a se definir, os escritores do rádio escreveram seus programas. Tudo isso porque o nosso cantor andou demais pelas ruas da cidade em transformação, por endereços e profissões. Além de ter sido um dos boêmios mais líricos.

Nascido a 6 de agosto de 1910, em Valinhos, Estado de São Paulo, filho de imigrantes de Treviso, Itália, registrado como João Rubinato, com curso primário incompleto, logo cedo Adoniran mudava com a família para Jundiaí. Ali trabalhou ajudando o pai, que era funcionário da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, e também como varredor de fábrica. Em 1924, transferia-se com a família para Santo André, onde foi entregador de marmita, tecelão, pintor, encanador, serralheiro e mascate de meias, além de ter servido como garçom na casa do ministro de Guerra Pandiá Calógeras. Esse último episódio é narrado pelo próprio Adoniran:

“João, vai ali naquela casa. Tão querendo um garção. Eu fui. A mocinha, filha do dono da casa, então disse:
- O senhor já trabalhou como garção em algum lugar?
Eu menti:
- Já sim senhora, mas já faz tanto tempo que já esqueci como é”.

Em 1932, estava em São Paulo. Era o cantor ambulante e batucador de caixa de fósforos, trabalhador errante, compositor de “sambas de mascate”. Conseguiu um emprego numa loja de tecidos na Rua 25 de Março, pleno centro da cidade. Visitava as lojas de música das proximidades e procurava a Rádio Cruzeiro do Sul (Organização Byington), onde tentava ser “gongado” (reprovado) no programa Hora do Calouro, levado ao ar pelo locutor Hélio Junqueira. Até que um dia conseguiu cantar por inteiro Filosofia de Noel Rosa:

“...um sábado – o homem do gongo devia estar dormindo – consegui chegar ao fim”.

Segundo o próprio Adoniran, outra tentativa de se aproximar do rádio aconteceu quando, por sugestão do músico Antonio Rago, foi à Rádio Fontoura, na rua Manuel da Nóbrega, que funcionava “sem ordem do governo”, acompanhado por seu vizinho de Santo André, Laurindo de Almeida, João Banjo e Aragão do Pandeiro. Por essa época já havia composto seus primeiros sambas como Minha Vida se Consome (parceria com Pedrinho Romano) e Teu Orgulho Acabou (com Viriato dos Santos).

E o cantor teimoso, em 1933, premiava modestamente a sua insistência: assinava o seu primeiro contrato como cantor de sambas e depois como locutor, recebendo cachês. Em 1934, em parceria com J. Aimberê, compunha a marchinha carnavalesca Dona Boa:

“Dona Boa, dona Boa
Vem pro cordão
E não fica assim à toa”.

A marchinha ganhou o 1º lugar no concurso carnavalesco organizado pela Prefeitura de São Paulo, em 1935, interpretada por Januário de Oliveira. Do prêmio recebido, 500 mil-réis, couberam a Adoniran 300, que por pouco não evaporaram:

“Cerveja vai, Cerveja vem, e se eu não me agacho, eu fico sem dinheiro”

A sua andança continuava. Por volta de 1935, consegue um contrato com a Rádio São Paulo (Rua Sete de Abril), com um ordenado de “150 paus por mês”. Mais tarde, passaria pela Difusora, “30 paus por programa”. Em 1936, casou-se pela primeira vez. “Passou o carnaval e eu tô morando num quarto, perto da Senador Queirós: pensão, marmitinha, dava o dinheiro”. Porém, os caminhos eram curtos: “acabou o carnaval, você pode ir embora, não tem mais samba”. O carnaval era um dos grandes imãs para a vendagem de discos de música popular e o grande momento dessa música no rádio. Não era o único, mas aquele que, iniciado alguns meses antes da festa, contratava um maior número de músicos. Depois vinham a ressaca, o recesso e as cinzas. Mas vejam o que aconteceu com Adoniran Barbosa, por ele mesmo:

“...o diretor da rádio me chamou:
- Barbosa, amanhã você passa no escritório que tenho um negócio pra você.
Fiquei contente e fui. Quando cheguei ele falou:
- Agora já acabou o carnaval e nós não precisamos mais de cantor de samba. Pode passar na caixa”.

Com o desemprego, Adoniran acabou num escritório de contabilidade, não conseguindo se adaptar. Ele e sua mulher tiveram que ir morar “no Tatuapé da mãe dela”.

Mas logo retornaria ao rádio, à Cruzeiro do Sul, onde permaneceu até 1941. Naquele ano passava a trabalhar na Rádio Record, onde fez rádioteatro por um cachê de “20 paus” e participou do programa Serões Domingueiros, com Octávio Gabus Mendes e Oswaldo Moles. Ali foi discotecário, locutor, radioator, praticamente de graça durante dois meses, até que conheceu Barreto Machado. Quem foi Barreto Machado? Foi, de acordo com Adoniran, “o maior cara do mundo”. Ele recebia um conto de réis por mês e Adoniran lhe perguntou:

“- Vamos rachar o teu ordenado?”.

E o melhor foi “ele aceitou: 500 paus pra cada um”. A emissora formalizou e cumpriu a divisão.

Entre 1936 e 1941, Adoniran já havia composto algumas músicas que não mais jogava fora, como acontecia na sua fase de “sambas de mascate”. João Rubinato começava a encarnar a personagem que criava para si mesmo, a sua máscara mais verdadeira: Adoniran, nome de um amigo boêmio, mais Barbosa, o de um sambista carioca (Luís Barbosa). Por esse época, sua produção musical concentra-se mais nos anos 1935 e 1938: Agora Podes Chorar (em parceria com Nicolini), A Canoa Virou (com Raymundo Chaves), Chega (com José Marcílio), Mamão (com R. Chaves e P. Noronha), Pra Esquecer (com Nicolini), Um Amor que já Passou (com E. Frazão), são produções registradas em disco naqueles anos.

Contudo, os seus sambas não traziam com todo o vigor aquele estilo identificador de sua obra, que até chegaram a confundir com “português macarrônico” e samba ao sugo na tentativa de definir um samba urbano tipicamente paulista. Tampouco isso ocorreria na década de 40, quando a produção musical de Adoniran foi de certo modo bissexta, pois suas atividades ficaram submersas nos programas da Rádio Record, principalmente como radioator.

Somente nos anos 50 sua música explodiu com vitalidade, quantitativa er qualitativamente. Der 1941 a 1951 foi acima de tudo ator, fato que assumiu uma importância enorme em sua vida, como ele mesmo comentou num depoimento de 1976:

“Eu fiz tudo na minha vida. Todas as profissões que você pode imaginar. Menos ladrão, só não roubei (...) Mas o que mais gostei foi de ator”.

E foi sendo ator, intermediário entre a rua e o rádio, criando e inspirando tipos radiofônicos, imprimindo às ondas sonoras as falas e as entonações de certas bairros característicos da cidade. Por esse caminho foi cultivando todo um modo de falar e sentir, fundamento de sua linguagem de sambista. Ser ator acabou se revelando um componente de ser músico. Adoniran não aprendeu simplesmente com o rádio, mas com o encontro que ele mesmo promovei entre o rádio e o cotidiano de sua grande “aldeia”. Neste sentido, curiosamente protagonizou o aluno “Barbosinha Mal-educado da Silva” em Escolinha Risonha e Franca, moleque terrível, mas sábio. Assim o nosso ator aprendeu e ensinou, passando através de sua própria máscara, outras como aquela do “Zé Conversa” no programa A Casa da Sogra, escrito por Oswaldo Moles.

O clímax desse humor ocorreu com o programa História das Malocas, a partir de novembro der 1955, também escrito por Oswaldo Moles. Aí, todo o humor, toda a fala cotidiana paulistana encontraram-se, tanto no programa como nos sambas de Adoniran. O próprio ator encontrava a voz, o timbre de sua personagem maior, que era a voz mesma do ator: “Charutinho”, o malandro mal-sucedido do Morro do Piolho. Pensem em Adoniran falando ou cantando: descobrirão Charutinho. Sedimentava-se a máscara de Adoniran Barbosa: o ator participava do ser músico e vice-versa. Foi do samba Saudosa Maloca, gravado por Adoniran em 1951, mas que alcançou sucesso com “Os Demônios da Garoa”, em 1955, que surgiu a “inspiração” para as Histórias das Malocas. E muitas expressões famosas do programa tornaram-se frases dos sambas de Adoniran, como o Segura o Apito (em parceria com Oswaldo Moles), gravado por Charutinho e Terezoca (a radioatriz Maria Tereza), que chegou a ser, durante uma certa época, prefixo do programa, e como Aqui Gerarda (em parceria com Ivan Amadeu e Felisberto Jordão), gravado por Adoniran em 1959:

“Gerarda saiu de casa
onde será
Que Gerarda foi pará
Aqui Gerarda, aqui Gerarda
O Charutinho
Tá cansado de chorá

Chora negrão na rampa
Chora que eu também já chorei

De noite todas as gatas são parda
Aqui Gerarda, aqui Gerarda

Chora negão na rampa
Chora que eu também já chorei
Você gosta de sarsicha cum mostarda
Aqui Gerarda, aqui Gerarda”.

No momento em que surgia o História das Malocas, Adoniran já expressava a sua sintonia maior com a cidade, pela incorporação de uma linguagem direta, coloquial, fragmentária, corrompendo significamente a língua oficial. A sua maneira “errada” de cantar já traduzia os dramas daqueles que habitavam cortiços e favelas, assim como os de uma população que lhes era vizinha geográfica e socialmente. Assim, o cantor representava o lado pobre de seu tempo, cantando, segundo ele, a fala mais característica da cidade, captando-a em seu movimento real, em sua atualidade. Neste sentido, é o próprio Adoniran quem nos situa:

“Meus temas são atuais, quer dizer, são temas populares”.

Mas como ser popular? Como captar esse fala? Ainda aqui é de novo o cantor quem nos esclarece:

“Pra escrevê uma boa letra de samba a gente tem que sê em primeiro lugá anarfabeto”.

Atual e arnarfabeto impõe-se, portanto, como duas dimensões chaves da ciência do ator-músico. Estar arnarfabeto, e não analfabeto, representou para Adoniran uma maneira de encontrar a linguagem em seu estado bruto, para cantar a realidade social através dela mesma, isto é, a partir de uma linguagem viva e cotidiana. E assim o fez, porque ele, o cantor, estava lá. Dito de outra forma, a sua canção é fruto de suas andanças: o seu autor identifica-se com o seu objeto do seu canto, mas de certo modo superava-o, distanciando-se, pois estava sempre caminhando para um outro lugar. Andar a pé pela cidade é também, distanciar-se dos acontecimentos que nos chamam a atenção e nos envolvem durante o percurso. Tal distanciamento, por sua vez, é que garante a criação artística e uma visão crítica da realidade. Porém, para isso se faz necessário que o cantor caminhe não apressadamente, sem sentir a realidade que o cerca, mas como se estivesse sem relógio em busca do inesperado, de novos ritmos e detalhes. É preciso ser portador de um certo espírito vagabundo, é preciso ser boêmio. E Adoniran o foi.

Desse modo, o cantor atravessou a cidade, incorporando personagens e entonações, que definiriam a sua máscara mais madura. E o que vem nos dizer essa máscara? Significa que Adoniran foi assimilando os vários tipos que encarnou em suas representações, definindo o seu próprio modo de ser (de falar, de cantar). A imagem que nos ficou de Adoniran Barbosa resultou nessa assimilação. Por isso, tal máscara tornou-se síntese e mosaico, representando um conjunto de dramas populares revividos em sua sonoridade, em sua gramática, em sua sintaxe, na estrutura de um modo de cantar.

De toda essa contribuição urbana e ruidosa nasceu, andou e cresceu com o cantor. A frase de Noel Rosa, “ninguém aprende samba no colégio”, realizou-se pela reinvenção do samba.

Assim, à definição de Dante, citada no início deste capítulo, “uma cazone é uma composição de palavras posta em música”, pode-se acrescentar: pelo menos no caso da música popular, uma canzone depende de muito mais. Cremos que Dante concordaria.

Publicado originalmente por KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1985.