Sai Ademir, fica em campo a mediocridade
Ele
se deu prazo até dezembro, para voltar. Terá 38 anos, o que complica. O consolo
pode ser uma despedida em janeiro, com Clodoaldo jogando seu adeus pelo Santos.
Sem o “Divino”, o futebol fica mais pobre
TONICO
DUARTE
“Ademir impõe com
seu jogo o ritmo do
chumbo (e o peso),
da lesma,
da câmara lenta,
do homem
dentro do pesadelo.”
Ademir
da Guia de João Cabral de Melo Neto
Perdão,
velho Domingos: não cheguei a vê-lo jogar, mas garanto que seu filho foi
melhor. Mil desculpas aos puristas, idiotas da objetividade: farei aqui uma
declaração de amor ao gênio de um diamante verdadeiro. Chama-lo de “Divino”,
simplesmente de “Divino”, é criar limites maniqueístas para o seu talento
infernal. Também é pouco defini-lo como “nome, sobrenome e futebol de craque”,
como fez Armando Nogueira. O seu brilho extrapolou e/ou sublimou todos os
rótulos.
Se
tivesse nascido músico seria Stravinsky; se tivesse nascido pintor, seria
Picasso. Nasceu jogador de bola – Ademir da Guia.
Quem
viu, viu; quem não viu, não verá de novo. Com a mesma sutil descrição com que
assombrou todo mundo nestes últimos vinte anos, Ademir está deixando o futebol.
E deixa mais pobre um esporte que não terá Ademir da Guia. Depois de dois anos
parado, ele deu um prazo até dezembro. Até lá, já com 38 anos de idade, tentará
voltar. Mas já considera esta hipótese como improvável.
Fica
faltando apenas o mea máxima culpa daqueles medíocres (bom dia, Zagalo), que
passaram anos a taxá-lo de “jogador lento”. Mas que esses brilharecos saibam
que, do alto da sua genialidade, o grande Ademir da Guia não os tem em mau
conceito. Ainda que haja uma unanimidade nacional em torno das injustiças por
ele sofridas, Ademir trata do assunto com a sua conhecida humildade olímpica: “Eu
não reclamaria por um lugar nem no time do Palmeiras”.
E
não me arrependo de não ter reclamado, pois é o meu jeito de ser. Além do mais,
havia Gérson, Dirceu Lopes, Rivellino para a minha posição. Talvez eles fossem
mesmo melhores que eu”.
Quem
ficava louco com isso era o pai, o igualmente legendário Domingos da Guia.
Brigava com o filho, dizia que ele tinha de exigir os seus direitos, dava
murros de ódio na mesa. Um dia, foi até o vestiário do Botafogo para tomar
satisfações com Zagalo. E Ademir, nada. Limitava-se a flutuar a sua talentosa
dignidade por gramados paulistas, sem se importas com os esquecimentos. Era o
somatório do prazer plástico e estético num festival de belo absoluto. Hoje,
olhando para trás, ele sabe que escreveu uma das mais maravilhosas páginas do
futebol brasileiro. Mas sua modéstia é maior do que tudo: “Acho que eu fui um
bom jogador, mas sempre procurei manter a tranquilidade. No futebol, um dia a
gente é ídolo, noutro, cai em desgraça. Por isso mesmo tem que ser
humilde".
Esta
humildade, não raro, chega ao paroxismo. Ainda hoje, Ademir fica ruborizado, se
desconcerta todo, ao ouvir um rasgado elogio. Marcamos a entrevista e nos
desencontramos. Pois não é que ele ficou esperando no carro, com ilimitada
paciência. Ao me ver, no estacionamento do Parque Antártica, tocou a buzina e
lascou de lá, como um iniciante cabeça-de-bagre que estivesse precisando de
promoção: “Pois é, rapaz, estava te esperando. Pensei que você não vinha mais.
As opiniões sobre o papel que Ademir da Guia representou no futebol brasileiro
são convergentes. Ao escutar seu nome, o folclórico Filpo Nuñez levanta-se,
coloca a mão sobre o peito, num respeito sincero. Os olhos de Oswaldo Brandão
brilham, como quem mal pudesse controlar as emoções. Para Sócrates, ele foi “um
gênio injustiçado”. O velho Oscar Paulilo, funcionário do Palmeiras há mais de
cinquenta anos, é capaz de desviar um rosário de histórias, desde o dia 23 de
agosto de 61, quando Ademir cruzou os portões do Parque Antártica pela primeira
vez.
“Ritmo líquido se infiltrando no adversário,
grosso, de dentro, impondo-lhe o que ele deseja, mandando nele, apodrecendo-o”.
Ele
é surpreendente. Certa vez, em Guadalajara, descansava à beira da piscina do
hotel quando os companheiros resolveram jogá-lo dentro d´água. Ademir caiu, foi
e voltou submerso, com uma elegância de fazer inveja a Jesse Vassalo. Só então,
os pasmados jogadores do Palmeiras ficaram sabendo que, antes do futebol, ele
havia sido campeão juvenil de natação pelo Bangu.
Outro
episódio serve bem para mostrar a personalidade desse olimpiano. Em 65, numa de
suas raras convocações para a Seleção, Ademir chegou à União Soviética. No
hotel, conheceu um admirador nativo com quem passava horas e horas conversando.
Até aí tudo bem, só que Ademir não sabia falar “olá” em russo, nem o russinho
sabia pronunciar uma vírgula de português.
Por
seu passe, o Palmeiras pagou quatro cruzeiros. Ele ainda era juvenil, e quem o
trouxe foi o boss do Palmeiras, Delphino Facchina. Na época, o cartola
encontrou-se no aeroporto com el brujo Fleitas Solich, que treinava o Flamengo.
Ao saber da irrisória quantia, Solich não se conteve: “Vocês não pagaram nem
uma perna dele”.
Quase
vinte anos depois, Ademir está triste. É a mágoa de ter de abandonar o futebol
como se nada tivesse acontecido. Gostaria de uma festa, não por vaidade, mas
para guardar o bom momento na lembrança. Os dois últimos anos foram de
angústia, primeiro pela contusão na planta do pé, depois pelo problema de
sinusite e carne esponjosa no nariz: “Na minha idade, a recuperação é mais
difícil. Eu lamento esse final de carreira, mas parece que vão fazer uma festa.
Será no início do ano, num jogo entre Santos e Palmeiras, quando eu e o
Clodoaldo nos despedirmos dos nossos dois clubes”.
É
bem verdade que a despedida não trará problemas financeiros para Ademir. Sua
situação econômica é tão sólida quanto a vida familiar (esposa, a chilena
Ximena e um casal de filhos). Seguiu o conselho do pai, aplicou todo o dinheiro
ganho. Mora numa mansão no estilo normando nos altos do Pacaembu, muito perto
de um dos seus sacrários. É o morador mais famoso da rua: dá bom-dia ao
padeiro, assina autógrafos na camisa do rapaz da Light, conversa pacientemente
com os vizinhos. O reduto é de são-paulinos, ‘mas todos acabaram torcedores
daquele mulato sarará, olhos de um azul muito claro, fino, solícito, - o
propósito do bom vizinho.
Ademir
não é de falar muito. Aqueles que o conhecem ficaram surpresos com a sua
performance num dos últimos Fantástico. Ele fez algumas embaixadas, riu, contou
casos da maneira mais descontraída possível. Foi o milagre. Nele, a bola era
uma extensão do corpo. Mandava no objeto esférico como se houvesse algo de
feitiço, numa relação mágica entre o animado e o inanimado. E podia guardar
todo silêncio que quisesse: brilho, talento, genialidade, são também uma forma
de linguagem.
“Ritmo morno, de andar na areia, de água
doente de alagados, entorpecendo e então atando o mais irrequieto adversário”.
Publicado
originalmente no Jornal da República
de 3 de outubro de 1979, edição 33
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