terça-feira, 19 de abril de 2022

Por Dentro do Cinema Novo, minha viagem por Paulo César Saraceni, capítulo 4: Uma temporada em Roma

Capítulo 4: Uma temporada em Roma

Saraceni em frente ao bar Rosati em 1982

 

Por Paulo César Saraceni

 

O que eu pretendia com essa viagem? Conhecer, ver tudo que passava à minha frente, museus, ruas, bares, filmes, livrarias, gente. Encontrar parentes, meu pai me dissera que bastava consultar o catálogo telefônico. Saraceni é parente, não devem ser muitos assim. Vovó dizia que eram os Saracenis do Norte. Vêneto, toscano ou milanês. Procuro os Saracenis do Norte, deve ter muitos. Vou mostrar Arraial, meu cartão de visita é Arraial. Vou fazer tudo para que a ideia do nosso movimento não morra. Posso ajudar, estando na Europa, mas a coisa importante agora é ver Gláuber, e a Bahia. Deixar Gláuber me mostrar a Bahia, isso é um privilégio. Quem mostraria melhor? Ele deve estar aprontando muito em Salvador. Há tempo que não escreve. Vou ver meu amigo João Augusto, e como ele deve ter se apaixonado pela Bahia. Nem para Lelena Cardoso ele escreveu. Esqueceu o Rio, Roberto Cleto, todos. Que escola baiana de teatro será esta?

 

Mário Carneiro vai fazer seus filmes, mas ele não pode deixar de fotografar. É genial demais.

 

O terrível é esta miséria do Brasil, ninguém pode viver com ela azucrinando por toda parte. E esses cartolas do país, que fazem? Como conseguem dormir? Essa elite vai se foder um dia.

 

Na Itália, vou estudar Gramsci. Acho que o quente é ele. Eu lera suas cartas da prisão e fiquei impressionado. Ele tinha mais jogo de cintura. Ditadura não, nem do proletariado, nem de ninguém. Oportunidades iguais. Está certo, para o resto vale o talento, sem burocracia – Kafka já disse tudo dela, morreu por isso, nessa terrível acusação. Roubo e corrupção é o capitalismo. Pobreza ainda vá lá, tem dignidade, mas a miséria, não. Miséria é sacanagem.

 

O navio ia chegando a Salvador. Dava para ver o cais cheio de saveiros. As partes alta e baixa da cidade. Foi emocionante esta chegada à Bahia em março de 1960.

 

Atracado o navio, corri para a casa de Gláuber. General Labatut, era o nome da rua onde morava, eu me lembro que no Riachuelo havia uma rua Labatutu. Toquei a campainha, atendeu-me Necy, eu sabia que era ela, só podia ser Anecy Rocha, irmã de Gláuber. Jovem e pequena de estatura, com um charme encantador. Gláuber não estava, ela me convidou para entrar e espera-lo na sala de visita. “Gláuber disse que você ia chegar, mas não disse o dia nem a hora”. Respondi que nem eu sabia, vim de navio. Ficamos conversando na sala, contei que estava indo para a Itália. Necy sabia de tudo. Gláuber tinha contado para ela. De repente entra Adamastor e, furioso, me expulsa da casa. Necy tenta explicar, mas Adamastor, pai dela e de Gláuber, não quer saber. Grita. Chega dona Lúcia, todo carinho, consegue explicar a Adamastor. Pedem mil desculpas. Depois de dois cafezinhos e um pedaço de bolo delicioso, chegou Gláuber. Ele era o homem da casa. Adamastor era seu pai, mas estava doente.

 

Choveu muito em Salvador. Ficamos quinze dias atracados no porto. Gláuber me mostrou a cidade. Fiquei espantado com a quantidade de negros juntos. Parecia a África. E o povo era doce e amável. Adorei Salvador.


Foram conversas intermináveis com Gláuber. Ele fez com que eu contasse tudo sobre Arraial do Cabo. Perguntou muito por Mário Carneiro e Joaquim Pedro. Queria saber do filme sobre o Bandeira e o Gilberto Freyre. Me mostrou no outro dia o copião de Cruz na praça, seu segundo filme, ficou inacabado. Fui um dos poucos que viram. Era um filme sobre o barroco baiano, com aquela mise-em-scène em espiral, que já havia no Pátio, mas aqui era mais apurado. A castração, tema fundamental de Gláuber, era o tema do filme. Os anjos barrocos da igreja, em montagem paralela, vertiginosos, furiosos, iam aumentando na corrida em torno da cruz. Era um filme religioso. Cristão. Luís Carlos Maciel era o ator, e estava presente. Maciel é gaúcho, filósofo e homem de teatro. Era muito bonito e jovem. O filme me impressionou muito. Mas Gláuber não pensava em termina-lo. Falava que havia uns empresários baianos que queriam produzir filmes e ele estava preparando três de longa-metragem. Caminhamos muito, eu ouvia Gláuber e via Salvador. Fui à Baixa do Sapateiro, no Pelourinho, entramos num bar, tomamos uma batida esquisita e boa. Desci o Elevador Lacerda, andamos à beira-mar, fomos até o antigo Mercado Modelo, aquele que depois pegaria fogo, muito berimbau e samba. Parecia um musical. Depois comi várias lambretas, ouvindo aquele som fantástico do samba de roda baiano. Claro que eu não queria saber de sair dali. Mulatas ternuríssimas dançando, oferecendo colares, acarajés apimentados. Chovia, mas fazia um calor que, juntando as lambretas e pimenta, ficava uma sauna sensual e mista. Mas Gláuber queria me mostrar a Bahia toda num só dia.

 

Saíamos e voltamos ao Elevador Lacerda. No caminho, encontramos o ator Geraldo Del Rey, boa-pinta e supersimpático, e ele seguiu com a gente. Gláuber falava o tempo todo, mostrava tudo, contra fatos históricos, os fatos banais da cidade, tudo tem a mesma importância. Tudo é histórico. Geraldo seria um dos atores principais de A grande feira, cujo diretor, Roberto Pires, tinha feito um filme em cinemascope, com uma lente que ele próprio inventara. Entramos na praça Castro Alves, senti muita emoção. Gláuber e Geraldo recitaram versos do poeta. Chegamos ao Teatro Castro Alves. Que alegria encontrar João Augusto! Mas ele está diferente, não quer papo com o passado, se desculpa, segue seu caminho. Com ele o grande ator Othon Bastos. Depois, dentro do teatro, Lina Bo Bardi, italiana, alta, inteligente e apaixonada pela Bahia, pelo Brasil. Grande arquiteta e vibrando com tudo que é humano. Depois o diretor da Escola da Bahia, Martim Eros Gonçalves. Muito inglês, havia trabalhado com Alberto Cavalcanti durante a fase forte do documentário inglês de Grierson e Cavalcanti, dirigia com muito entusiasmo a escola.

 

Tomamos dois uísques com Gláuber no hotel da Bahia. Digo-lhe que estou encantado com o que vi e que o “movimento” já existe, só falta o Manifesto. Rimos do Bola-Bola. Ele me conta que prepara dois filmes. Um, que ele produzirá e cuja direção vai ser do Luís Paulino dos Santos, chama-se Barravento, e outro ele mesmo dirigirá- A ira de Deus. Dali, demos um pulo no Jornal da Bahia, Gláuber me apresenta o diretor e seus colegas: todos aqueles jornalistas eram poetas ou romancistas. Enquanto converso com eles, numa rapidez de metralhadora. As palavras saem como um jorro de ideias e utopias maravilhosas. Leu-me o artigo, sensacional. Gláuber era querido e admirado, respeitado e também temido. E como ele bem disse mais tarde, anos depois, quando lhe chamariam de cineasta maldito: - Eu sou bendito, fui batizado no candomblé da Bahia.


De noite, conheci Gantuá, a Mãe Menininha. Que bondade! Que santa! Disse-nos que nossos caminhos iam ser difíceis, mas gloriosos. Na casa, as iaôs eram meigas, falando em forma de cantos tranquilos, numa paz de Deus. Milhares de católicos, nas centenas de igrejas visitadas. Que sincretismo harmônico, como era possível ser tudo tão natural assim? Duvido que o Rio, apesar de tudo, esteja tão preparado para todos aqueles movimentos culturais e espirituais. Gláuber me dizia ao ouvido: “Só a revolução organizará esta loucura”.

 

Eu concordava com ele. Só a revolução. Mas ela já não estava na rua? A Bahia estava preparada, a pobreza era mais visível, e a miséria, que deveria ser a maior e mais terrível, tanto no interior do estado como em todo o Norte e Nordeste do Brasil, deixava visível o caminho de afirmação revolucionária.

 

Ainda me encontrei com Luís Paulino dos Santos, que era, naquela ocasião, irmão de criação de Gláuber. Com dona Lúcia amamentando todos com o coração.

 

Cheguei ao navio exausto, com uma cópia do roteiro de Ira de Deus para ler. Li, com muito entusiasmo. Eram os primeiros movimentos que seria Deus e o Diabo na terra do sol. Com a grandeza de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Fiquei imaginando aquela mise-em-scène dançada que ele inventou em Pátio e em Cruz na praça. Só que, agora, com cangaceiros, beatos, jagunços e o povo. O que iria resultar? Nos outros dias, cada vez mais encantado encontrei-me com Rogério Duarte, Capinan, Ariovaldo de Matos, João Ubaldo Ribeiro, Orlando Senna, Walter da Silveira, Jener Augusto, Noêmio Spínola, Paulo Gil Soares, Sônia Coutinho, Santê, Oscar Santana etc. Toda a seleção baiana, fervendo de ideias. Os produtores Rex Schindler e Braga Neto estavam prontos para apostar na cultura baiana. Tudo aquilo me deu vontade de ficar por lá.

 

Gláuber me falou da importância das filmagens e do filme Bahia de Todos os Santos, do cineasta Triguerinho Neto, paulista e rosseliniano. Foi genial, dizia Gláuber: na pré-estreia, o público vaiava muito, mas Trigueirinho, no palco, mandava beijos para as vaias e o público. Trigueirinho fez um filme de ruptura forma como objeto de um discurso crítico sobre a miséria dos pescadores negros e sua passividade mística. Barravento, de Luís Paulino, segue nesta linha. “O Anselmo Duarte vem filmar aqui”, conta Gláuber, “acho que o filme é tirado da peça de Dias Gomes, O pagador de promessas”. Concordamos em que foi sacanagem do Alex Viany e do pessoal marxista, como Marcos Faria, chamar o filme do Trigueirinho de “Bahia de todas as (...)”. “O filme é ótimo”, dizia Gláuber. Conheci um dos seus atores, Antonio Sampaio, o Pitanga. Ficamos amigos e fomos beber no Mercado Modelo.

 

O Luís Paulino dos Santos estava lá, me contou a história de Barravento, que achei ótima, mas me disse que antes ia filmar um documentário, a Rampa, ali mesmo, no Mercado. Me falou de várias histórias de filmes que queria fazer sobre ex-votos encontrados na Bahia. Fiquei impressionado com seu talento místico. Seu Barravento não parecia ter nenhum sentimento crítico sobre a apatia mística dos pecadores; ao contrário, ele era favorável. Eu também estava achando que seria impossível uma revolução baiana sem o apelo místico e religioso. O povo todo tinha uma fervorosa fé. Não dava para fazer uma revolução que não fosse espiritual, que Rossellini anunciava nos seus filmes – em Índia, principalmente.

 

De noite, na casa de Gláuber, chega a notícia da chegada de Nélson (Pereira dos Santos). Vem com Miguel Torres e toda a sua equipe. Eles estavam numa região do Nordeste onde nunca chovia, para filmar Vidas secas. E de repente cai uma chuva nunca vista na região, impedindo e adiando o projeto. Nélson chega com Miguel Torres e nos conta o acontecido. Nunca viu tanta chuva. Agora, eles estavam pensando em filmar outro filme. Mandacaru vermelho, com o que salvou da enchente. Ele e Miguel Torres nos cantam a ideia do filme rindo e brincando.

 

Nélson era neo-realista e influenciado pela produção barata de filmes, de Rossellini, de Roma, cidade aberta e Paisà, mas apesar de demonstrar que era um baita cineasta, fazia filmes neo-realistas de segundo time. O Boca de Ouro foi apenas um bom Nélson Rodrigues. Ele era muito inteligente e gozador. Sedutor e poético, dava a impressão de não estar acreditando muito no que dizia. Devia ter a idade do meu irmão Sérgio. Gláuber devia ter 21 anos, era garotinho. Eu tinha 26. Eu e Gláuber nos perguntávamos se o Nélson toparia entrar no nosso movimento. Não perguntávamos ao Nélson, com medo de sermos gozados. Miguel Torres, além de bom ator, era roteirista de primeira.

 

Gláuber, eu e Nélson tivemos uma discussão séria e importante, que considero o segundo sina do Cinema Novo. O primeiro foi a exibição de Caminhos e Pátio para os neoconcretistas e o SDJB na casa de Lígia Pape.

 

Nélson achava que só o que interessava é o que se tem a dizer. A forma não interessava. Que ridículo ficar procurando o ângulo da câmera. Eu e Gláuber achávamos que era o contrário. Nélson: “Onde colocar a câmera? Ela pode ficar em qualquer lugar”. Ficamos chocados: o ângulo da câmera é revolucionário sem uma linguagem revolucionária. Nélson ficava puro porque nós mexíamos muito ao falar, enquanto ele ficava fixo.

 

Éramos como dois travellings que caminhávamos em sentido contrário bombardeando Nélson com ideias e perguntas. Nélson, sem se movimentar, esperava a gente entrar no campo dele, para responder.

 

Não interessava mais o que se estava falando, o importante eram os nossos movimentos com a câmera na mão, rapidíssimos, e o olhar de Ozu (genial cineasta japonês) com a câmera fixa, de Nélson Pereira dos Santos. Saímos abraçados e fomos beber uns chopes, certos de que cada um aprendera com o outro, numa troca furiosa de ideias.

 

Nélson seguiu com sua equipe para filmar Mandacaru vermelho e levando como atriz a namorada de Luís Paulino dos Santos. (Na despedida, ela ainda fez um discurso sobre (...) Ele era contra, e essa prática tinha que acabar. Vi logo que ia dar bolo: Sônia Coutinho era engraçadíssima. Conheço esta história de outros carnavais. Sônia era a atriz de Barravento também, versão não realizada, ou interrompida, de Luís Paulino, pelo produtor Gláuber Rocha).

 

Continuei vivendo a Bahia com intensidade, sempre dormia altas horas da madrugada, no navio. Mais uma vez cheguei de manhã: ficara bebendo com Geraldo Del Rey e uma crioula sensacional, chamada Ana Close, ex-mulher de um fotógrafo inglês, e acabei em sua cama. Quando cheguei ao cais, o navio Paraguai não estava mais lá. O navio tinha partido. Me senti condenado à Bahia e não sabia se me entregava a ela ou se resistia ou me mantava. Sentei à beira do cais e fiquei olhando aqueles saveiros e ao longe os navios, era impossível identificar o Paraguai. Fiquei horas ali, sem saber o que fazer, pensando. Eu queria continuar a viagem. Se Vitória tivera o seu sabor, a Bahia me enlouquecera, outros portos até chegar ao final da viagem deviam me trazer me aventuras. Só que esta viagem já ia valer a pena! Tenho que esquecer Arraial, porque até a cópia chegar ás minhas mãos, estarei louro de esperar por ela. Por isso tenho que viver cada momento como fiz na Bahia. Ela me marcou para sempre, que coisa forte. Mas tenho que pensar em como sair daqui. Fui andando até os pescadores donos dos saveiros, fiquei conversando com eles, um jovem me disse: - O Paraguai? Está pronto para partir. Foi fazer manobra. Volta amanhã cedo. Voltei para os braços de Ana Close. Já tinha me despedido de Necy, Rogério, dona Lúcia, Helena Inês, Adamastor, Lu, irmã graciosa de Glauber, Luís Paulino, Del Rey, Pitanga, e de Gláuber, que estava no jornal trabalhando. Baiano trabalho muito. Pensei: é lento, mas faz.

 

Três dias depois, já a caminho de Cabo Verde, verifico que Ana Close tinha me marcado. Minha primeira gonorreia. Eu sabia que a Bahia ia ser fatal. Fui ao médico de bordo, isso era corriqueiro no navio. Me deu umas penicilinas e fiquei pronto para outra. Tinha sido batizado e sofri gozações dos tripulantes. O violonista continuava arranhando seu violino e Rhur, como se chamava o outro, de Niterói, botando banca e contando vantagens.

 

Distante da Bahia, fiquei pensando, fazendo um balanço. Não é possível que vá sertão rápido assim lançar o movimento. A Bahia já tem filmes feitos, sendo feitos ou para serem feitos. Mas não é possível que seja tão rápido, não sinto ainda que estejam preparados. Acho que o que aconteceu com o Nélson e Vidas secas é um sinal. Vamos com calma. Isto é apenas o sonho do “movimento”, não é ainda o movimento. Não vimos nem a Nouvelle Vague ainda, e já queremos fazer um “movimento”, que não tem nome, nem teoria. Agora é que estamos saindo do cinema mudo. A realidade social miserável do Brasil não pode esperar, mas, apressado come cru. Gláuber é genial e vai fazer esse “movimento”, mas não é no tempo que ele pensa fazer. Só se for milagre.

 

Não acredito que seja para já, vai dar tempo de eu ir e voltar.

 

No cais de Cabo Verde era incrível: os meninos vinham nadando com as latas de azeite de oliva português e trocavam por qualquer coisa. Camisa ou calça velha, short velho, escova ou pasta de dente velha, o que fosse. Um maço de cigarros, já aberto, sapatos ou tênis velhos. A tripulação do Paraguai já sabia e levava mercadorias velhas para trocar em pleno mar.

 

Os melhores nadadores faziam melhor negócio. Era penoso ver, mas os meninos saíram felizes quando, por exemplo, troquei uma camisa nova de Esplanada – loja de que minha mãe gostava – por uma lata de azeite português. Estávamos ainda no Descobrimento!

 

Cabo Verde era todo branco, limpíssimo. Os portugueses usavam o branco e a limpeza para esconder aquela vergonha, a miséria dos habitantes. Depois fui até o bordel, com a tripulação. Bordel requintado, com mulatas novas e encantadoras: uma sorriu para mim e fomos dançar. Ele sabia de cor todas as músicas de Orfeu do carnaval, e adorava João Gilberto.

 

Seguimos viagem para Casablanca. Eu imaginava encontrar Bogart e Ingrid Bergman. Era a referência que tinha de Casablanca

 

Em Gibraltar, ficamos cinco dias. Eu já estava bem amigo da tripulação. Eles me contavam as viagens de faziam, as mulheres do cais e as porradas que viram nos bares. Não tinham gostado, preferiam Casablanca. Em Gibraltar, que era metade espanhola e metade inglesa, não tinha bordel. Para dormir com mulher tinham que se registrar e a burocracia demorava dez dias, não dava. O negócio era encher a cara e voltar para o navio, sonhando com o Brasil ou Marselha, que deveria ser a próxima parada. Em Gibraltar, os guardas ingleses faziam o policiamento e ficavam em cima o tempo inteiro.

 

Saíamos em grupo do navio e ficávamos juntos, para que não acontecesse nada de mal com a gente. Íamos fazendo planos para driblar a guarda inglesa, mas não era mole. Todos os cinco dias que ficamos lá, isto já virava até folclore, íamos ao bar onde se encontrava a marinha inglesa e a irlandesa. Seis horas, hora da Ave-Maria no Brasil, mas no bar os marinheiros ingleses se levantavam e cantavam o God Save the Queen, sob os apupos e gozações dos marinheiros irlandeses. Os irlandeses sacaneavam muito. Quando acabava o hino, começava a porrada firme, nós nos escondíamos embaixo da mesa, pois voavam garrafas de todos os tipos e lados. As ambulâncias esperavam na porta do bar para socorrer os feridos. Em Gibraltar, seis horas da tarde é a hora da porrada.

 

Foi nesse bar que encontramos um bailarino brasileiro que nos convidou para assistirmos ao seu show num cabaré, onde ele dançava flamenco com uma belíssima mulata de 1,86m de altura, francesa de Madagascar. Tomamos um porre e fomos assistir. A mulata era sensacional e o nosso amigo se esforçava para ficar à altura dela. No primeiro dia ele, diante dos aplausos e algazarras que fizemos por causa da mulata, exagerou num passo que nada tinha com a dança flamenca e se esborrachou no chão, torcendo o pé. A mulata ficou em pé, esperando. Eu, num porre monumental, pulei a cerca e caí na dança, sem castanholas, mas no ritmo perfeito da dança e da mulata. Foi um sucesso. Queriam que eu ficasse em Gibraltar fazendo o show. Lembrei-me do carnaval, eu dançando as Touradas de Madri. Na saída levei a mulata até a casa dela, seguido do bob inglês e toda a tripulação do Paraguai.

 

Em Marselha a barra começou a pesar, eu já estava cansado daquela interminável viagem e louco para ter notícias do Brasil, da família, de Mário e do Arraial. Todo mundo filmando no Brasil e eu ali, naquele navio morrinha, já inteiramente deprimido e de saco cheio. Chegamos de madrugada em Marselha e andei pela cidade procurando um bar para comprar cigarro. Estava tudo fechado e de manhã seguimos viagem para Gênova, Marselha, o primeiro solo francês que pisei, foi uma merda. E sem cigarro!

 

Chegamos a Gênova depois de 45 dias de viagem. Não tive tempo para ver a cidade e o que via me lembrava os filmes de guerra com alemães chegando de cada esquina. Os grandes arcos como os da Lapa me deram muitas saudades. Minha mãe, meu pai, Norma, Sérgio, o que vim fazer aqui? Quero voltar, o dinheiro estava contado, só dava para chegar de trem a Roma e, de táxi, até o Banco do Santo Spirito. Que loucura foi Gibraltar, eu devia ter ficado lá dançando e morando, registrado como companheiro de fé da mulata imensa de Madagascar.

 

Em Gênova, acompanhei meus companheiros de viagem ao consulado brasileiro. Rhur conseguiu uma bolsa para estudar italiano em Perugia, onde há uma universidade famosa. Ele tinha algum dinheiro. O violonista, sem dinheiro nenhum, tinha que voltar no mesmo navio. Foi chato, fiquei triste com a tristeza dele. Tentamos tudo, mas não deu.

 

Quando nos despedimos, chegamos a chorar, pela inutilidade de tudo. Eu e Rhur pegamos o trem, ele para Pereugia, eu para a Stazzione Termini em Roma. No trem, Rhur falava sem parar, mas eu me desliguei, olhava a paisagem. Pensava em Dante e Rossellini. Lia os letreiros, todos em italiano, e ia estudando, decorando certas palavras e pronúncias. O c é tche.

 

Rhur desceu em Perugia e nos desejamos boa sorte. Ele ia para uma aventura com coragem, eu estava com medo. Agora eu estava sozinho e tinha que começar a me virar no italiano rastaquera que eu sabia e falava. Mas ia falando, errando, tentando me comunicar. Desci na Stazzione Termini. Linda, como no filme de De Sicca. Reocnheci logo o lugar em que Montgomery Clift deu aquele tapa na Jennifer Jones. Havia muita gente na estação e todos falavam ao mesmo tempo. Um bando de italianos passou por mim. Eram simpáticos. Fiquei com vontade de abraça-los e falar do meu pai Guilherme e de Guilhermina. Mas, com todas aquelas malas, eu estava louco para deixa-las na Via Rasella. Contei o dinheiro: será que dá? O Santo Epírito já deveria estar fechado. Tomei o táxi. Via Rasella. Eu olhava tudo, decorando os letreiros. Ansioso.

 

A dona da casa me recebeu como um filho longamente esperado, me mostrou a carta de Carlos Couto que, preocupado comigo, escrevera para ela. Bom cara, o Carlos esgrimista Couto, pensei. Falei da longa viagem de navio e ela se espantou e achou que eu podia estar doente. Preparou-me logo uma sopa e uma pasta. Parecia uma de minhas tias-avós. Falei delas, a signora me entendia, fiquei contente. Fui conhecer as redondezas. Saindo da rua Rasella, chegava-se à Via Tritone. Fui para a direita, cheguei a Piazza Barberini. Vi o cinema da praça, passava um filme americano. Aqui também! Mas anunciavam um filme de Losey e várias comédias com Gina Lollobrigida. Andando, fui até a Via Vittorio Veneto, rua elegante, da moda, que as celebridades frequentavam. Eu não tinha guia, não queria parecer turista, andava por andar e vendo tudo. Passei pela embaixada americana. Procurei o hotel em que Rosselini tinha estado com la Bergman – hotel Savoy, deve ser uma nota. Continuei andando, cheguei ao Café de Paris, muitos milionários e gente famosa. Fui até o fim da rua e cheguei à Vila Borghese, aí voltei pelo mesmo caminho. Eu não tinha nem para um cafezinho. Entrei de novo na Via del Tritone, fui até a Piazza Collona na Via Del Corso. Uma seta indicava à direta a Piazza de Spagna, Trinitá dei Monti. Piazza del Popolo, à esquerda a Piazza Venezia e San Pietro. Escolhi a esquerda, mas quando caminhei duas ruas uma outra seta me indicava Fontana di Trevi; entrei na via e logo dei de cara com aquela fonte cheia de beleza e grandiosidade. Segurei-me para não dar vexame nem bancar o turista. Olhei como carioca quer finge não estar vendo, para não se extasiar muito. Aí, me perdi e fui andando pelos becos e ruelas e cheguei à Piazza de Spagna. Muitas butiques requintadas e muita gente comprando coisas. Sentei na escadaria de Trinità Dei Monti, olhei para cima e vi o Pincio. Entrei na Via del Babuino, passei pela Via Margutta, lugar de grandes ateliês de grandes pintores, e cheguei à Piazza del Popolo, que me assustou de tão perfeita...e voltei para onde morava, onde fiquei com a signora vendo televisão. Via o programa musical da RAI. Felizmente, eu morria de sono e cansaço. Fui dormir, o quarto e o travesseiro eram ótimos, caí duro na cama e dormi até ela me acordar na hora em que o Banco di Santo Spirito abria as suas portas.


Recebo o dinheiro de oito meses, estava rico, mas havia um comunicado do banco e da repartição do governo italiano que cuidava da bolsa dos estudantes estrangeiros. Eu, por ter chegado atrasado, não poderia mais cursas o Centro Sperimentale, tinham suspendido a bolsa.

 

Fui até a embaixada brasileira e me deram mais alguns dólares. Fiz os cálculos. Fico quatro meses. Conheço toda a Itália, vou a Paris, tudo de trem, evidentemente, conheço bem Roma e volto para o Brasil. Brasília deve estar fervendo. Na embaixada do Brasil, que era perto das ruínas do Foro Romano, conheci a figura maravilhosa da telefonista Hilda, coração de ouro, que ajudava todos os estudantes brasileiros, e dois ex-seminaristas, que se tornariam grandes amigos meus, o Geraldo Magalhães, jornalista, poeta, que queria fazer o Centro Sperimentale de Cinematografia, e Paulo, poeta e roteirista de cinema. Geraldo é mineiro e Paulo, amazonense. Telefonei para Murilo Mendes, marquei um encontro – Murilo e sua mulher, Saudade Cortesão, filha do escritor português Jaime Cortesão. Um apartamento confortável, onde predominavam os detalhes requintadíssimos. Uma pinacoteca esmerada. Os dois foram gentis. Murilo era alto e fiquei observando suas pernas imensas, que passavam tirando fino das louças antigas e valiosas de Saudade. Lembrei-me de Mário Carneiro ter-me contado que o Anísio Medeiros e a Teresa Nicolau visitaram o poeta, na hora do chá. Murilo se levantou e levou várias pelas pro chão, quebrando-as. Saudade aguentou duas horas, educadamente, depois deu um esporro no poeta.

 

Murilo me convidou para acompanha-lo à exposição do escultor Nino Franchina. Fui, e me deparei com um grande artista. Como Goeldi, como Iberê Camargo. O artista e sua obra se pareciam. Grande emoção e grande impacto. Sua mulher, Gina, era encantadora. Com eles e mais Murilo e Saudade, me senti em plena cultura europeia. Gino era filha de Gino Severini, o grande pintor futurista. E eram amigos de Rossellini, tinham inclusive trabalhado com atores do episódio Invidia (Inveja), de Rossellini, do filme Os sete pecados capitais.

 

Na exposição conheci dois jovens que se tornariam grandes amigos meus. Tinham 21 anos e queriam fazer cinema. Falavam muito mal do Centro Sperimentale. Sandro Fachina, o único filho de Nino e Gina, esnobe e requintado, trabalhara como ator, como o filho de Ingrid Bergman, que se suicida com apenas dez anos em Europa 51, de Rossellini. E o outro era Bernardo Bertollucci.

 

Depois da exposição, fomos ao bar Rosati na Piazza del Popolo. E de cara fui apresentado a Michelangelo Antonioni e sua mulher Monica Vitti. Eles estavam em pleno sucesso do seu último filme, L´aventura, que eu tinha acabado de ver e ficara inteiramente apaixonado. Com esse sucesso de L´aventura foram redescobertos seus outros filmes, e vi como Otávio de Faria estava certo pelo seu entusiasmo por Il grido (O grito), obra-prima total – operário era tratado como um ser humano, como qualquer outro de qualquer classe, com problemas existenciais.

 

No Rosati conheci Alberto Moravia e Pier Paolo Pasolini. Este, nervoso, perseguido, genial e “luciocardosiano”. Estava intrigado com L´aventura. Antonioni fizera com que a personagem maravilhosa, que a atriz Lea Massari encanta e encarna, sumisse numa ilha deserta. O filme todo é essa procura por ela, sem sucesso. Lea some no filme e fica na nossa imaginação.

 

Lembrei-me da carta de Lelena para ela. Deixei para entregar depois, naquele momento eu não teria coragem, nem estava preparado para encontrá-la.

 

No Rosati. Sandro e Bernardo me fizeram mudar de planos. Vivíamos vendo filmes e conversando até a matina, bebendo do bom vinho.

 

Mas acabei encontrando, numa praça das mais belas de Roma, a Campo dei Fiori, uma professorinha com suas alunas adolescentes e lindas, que estavam marcando uma excursão a Nápoles, Capri, Pompeia e Pesto. Entrei na conversa e na excursão. Eram seis garotas, entre dezessete e vinte anos. Tomamos vinho e falei do Rio. Nápoles é aquilo mesmo que a gente sabe: muitos italianos discutindo, se abraçando, cantando em cada esquina. Pobreza comendo solta e latiníssima.

 

Fizemos muitas fotos e eu não me decidia por nenhuma. Queria namorar todas. Verifiquei que as garotas italianas eram muito mais reprimidas que as cariocas e brasileiras. Para ganhar um beijo, eu tinha que suar. Havia uma que parecia a Ana Lúcia de Santa Rita, nadadora do Fluminense, dos tempos da minha adolescência. Era a minha preferida, mas a mais dura. Tinha que namorar.

 

Aprendi logo o chá-chá-chá e fazia sucesso com as garotas. A professora ia dando aulas e eu adorava as aulas dela. Ela já havia passado pela liberação sexual, as meninas não, iam esperar pelos Beatles.

 

Encontrei outro estudante brasileiro, João Batista, paulista que queria estudar cinema na Europa, Polônia, ou Idec ou mesmo o Centro Sperimentale. João Batista veio me dar uma mãozinha, era louro e bonito, foi bem aceito e entrou no barco que seguiu para Capri, Pompéia e Pesto.

 

Atravessar de barco aquelas grutas de Capri, de mar azul como o da Portela, aos beijos na ida e na volta, foi gostoso. De noite, Chiaro de luna nas areias ao som dos chá-chá-chás ardentes. Não havia ciúmes entre nós, ninguém era de ninguém. Em Pompéia, fiz questão de visitar o local onde Rosselini filmou Viaggio e senti a mesma emoção vendo as múmias e as ruínas.

 

Pesto era como a Grécia que Alair me contara. O Partenon lindo ao pôr-do-sol. Treinei muito o meu italiano e já estava dando para o gasto.

 

Acabaram as férias das meninas. Voltamos para Roma, as despedidas foram tristes. Nunca mais vi nem a professora nem as alunas. Ficou como sendo um sonho ou um filme. Fiquei horas na famosa “Boca del Leone”, vendo a água cair, num misto de saudade e tristeza. Quis viajar – fui a Siena, Florença, Veneza, Milão, numa viagem cultural, vendo tudo e não me importando em parecer turista ou em guardar dinheiro. Hospedei-me em ótimos hotéis e bebi do melhor. Comia pasta todos os dias. Em Siena, lembrei-me de meu pai e do Sérgio. Visitei a casa do conde Gigi Saraceni, que descobriu o músico Vivaldi. E, em Veneza, os quadros e a cúpula da Piazza di San Marco de Carlos Sareceni. Meus parentes e ancestrais estavam ali. No catálogo telefônico tinha mesmo muitos Saracenis, eu não ia procurar por todos, mas vez ou outra encontrava um na rua ou no bar.

 

Para mim já bastava um descobridor de Vivaldi e o autor daquela cúpula de gênio. Ficava horas nos museus e nas praças históricas. Visitava muitas igrejas. Conheci os afrescos de Giotto e Piero della Francesca, que pareciam cinema. Os renascentistas. Caravaggio iluminava seus quadros como Ziembinski ou Mário Carneiro. Boticelli era capaz de dar um close num plano americano, ou no geral. Voltei a Roma: o dinheiro da bolsa estava acabando e nada de notícias de Arraial do Cabo. Voltei a procurar Murilo Mendes, aquele poeta de finos biscoitos e finos tratos. Murilo estava apaixonado pela pintura abstrata. Um dia discutimos, eu defendendo a pintura figurativa me lembrava de Goeldi, Iberê, Newton Cavalcanti, Ferdy Carneiro. Di Cavalcanti, mas citei os mexicanos. Murilo gritou: “Vocês, comunistas, são iguais aos estetas do Vaticano”. Eu não queria brigar com ele. Era fascinante vê-lo gesticular com seus braços imensos e dramáticos no meio dos romanos que não entendiam nada, mas paravam para ver. Tive ímpeto de abraça-lo e beijá-lo. Grande poeta. Ensinava literatura brasileira com muito saber e conhecimento.

 

A vida em Roma era muito barata nos anos 60, mas já se tinham passado três meses e meio, o dinheiro voava. E eu estava gostando demais da cidade e da turma do Rosati. E a cópia do Arraial não chegava. O embaixador brasileiro mudava, agora Hugo Gouthier tinha uma ideia fixa: comprar o belíssimo palácio Doria Pamphilli, um dos mais belos de Roma e o mais requisitado por todos os países, localizados na linda Piazza Navona. Gouthier, amigo de JK, com a inauguração de Brasília, estava com a moral alta. Era cheio de charme, muito inteligente, mulherengo e de gosto artístico refinado. Possuía uma pinacoteca com quadros comprados barato durante a Segunda Guerra, de matar de inveja qualquer europeu ou americano, ou mesmo os japoneses de hoje. Tinha um ritmo alucinante e falava dez assuntos ao mesmo tempo e em várias línguas, e se o telefone tocasse, ele atendia o mata-borrão ou o que visse pela frente, e ia falando até se dar conta de que usara o aparelho errado. “Atendia” até os braços maravilhosos das mulheres que tinha a seu lado. As brasileiras bonitas que iam visita-lo eram logo convidadas a dar um pulo com ele na Via Condotti, nas melhores butiques de Roma, e faziam uma festa de compras. Gouthier gozava ao vê-las felizes, usando vestidos das grandes grifes europeias.

 

O prestígio do Brasil cresceu com Gouthier na ambaixada. Ele fazia ótima tabelinha com JK. Mas parece que ia dar Jânio Quadros, diziam.

 

Vi Dolce vita e não gostei, achei que Rossellini tinha razão quando chamou Fellini de provinciano. Mas Fellini era provinciano mesmo, vestiu a carapuça e fez o belíssimo Oito e meio, depois o Amarcord, em Rimini, cidade onde nasceu.

 

Com Sandro Fachina e Bernardo Bertolucci eu passava os melhores momentos do dia, conversando e vendo filmes. Guido Cosulich, amigo deles, o fotógrafo e grande iluminador de Desafio, Macunaíma e Brasil, ano 2000, fazia o Centro Sperimentale e defendia a instituição. Muitos jovens começaram a frequentar o Rosati. Estávamos, sem querer, formando um movimento,. Que mais tarde Gianni Amico chamaria da “geração do Rosati”. Bebíamos vodca com água tônica e não falávamos de cinema com quem não conhecesse o assunto.

 

A estrutura da Piazza del Popolo é a mais perfeita e harmoniosa de todas as praças que conheci: tinha duas igrejas gêmeas, no meio das vias Babuino e do Corso; com os dois bares: um da direita, Canova (que era dos intelectuais de direita, liberais e conservadores), e do outro lado, à esquerda, o Rosati (do pessoal de esquerda). Roma era muito politizada. Muitas greves, o PC estava crescendo. Já era governo em muitos estados e municípios da Itália. Roma fervia, nas discussões ideológicas. Eu adorava ver Pasolini discutir, meio católico, meio marxista, mas sempre poeta. Identificava-me com ele e me lembrava sempre de Lúcio Cardoso, apesar do seu carro Giulietta branco e potente, que ele dirigia como um matto (louco). Alberto Moravia adorava Pier Paolo. E Bernardo babava.

 

O Rosati, para quem gosta de bar, é o supra-sumo. O barman era da pesada, conhecia qualquer bebida e, para os amigos, chorava nas doses. Sentar nas mesas, só quando havia beldades, ou um papo sério. As cadeira chegavam até a praça e dava para ficar olhando o obelisco central e, no fundo, as esculturas pagãs que ficavam na ladeira que dava para Pincio, Vila Borghese, lá em cima. Numa noite daquelas vi Robert Bresson passar entre as mesas do bar. Eu tinha visto Pickpocket. O cinema de Bresson era o perfume maior que vinha da França. Esperávamos com ansiedade a Nouvelle Vague, Godard principalmente. Juntos com Antonioni, Losey, Nicholas Ray e os independentes americanos, Bresson era o que dava maior ibope nas madrugadas do Rosati.

 

Nós, os jovens cineastas, botávamos banca, todo mundo queria saber o que achávamos do último filme que estava passando em Roma. Só respeitávamos quem a gente gostava, como cineasta ou como artista. Eu adorava conversar com Nino Franchina e seus amigos. A capacidade humana de Nino não tinha limites: que grande criador e artista! Suas esculturas eram ao mesmo tempo sutis e fortes. Era a aristocracia do espírito. Ouvia-se de longe a voz sensual e rouca de Monica Vitti, suas gargalhadas que me lembravam um tempo que não conheci – as mulheres do teatro lírico das crônicas de João do Rio ou Oswald de Andrade.

 

Ali, eu esquecia um pouco a tristeza e o sofrimento de não receber a cópia de Arraial. Mas esta demora começou a pesar, eu comecei a ficar nervoso, a beber demais. Escrevi sem parar para o Rio, querendo o meu filme, só falando nisso. Morava num apartamento na Via Rasella quando vi Era a Notte a Roma, um filme médio de Rossellini, mas com duas sequencias extraordinárias: o encontro dos camponeses e rebeldes com os padres na igreja, e o jantar dos oficiais, o americano, o inglês e o russo com a moça italiana, Giovana Ralli, que os esconde dos soldados alemães...ah, esse sopro de amor do grande cineasta. O filme se passa perto do prédio onde houve o atentado histórico dos partigiani contra os oficiais alemães antes do fuzilamento de vários italianos, na Via Rasella, onde eu morava.

 

Mas Via Raselle estava além das minhas possibilidades, depois de quatro meses em Roma. O dinheiro tinha acabado e eu não queria voltar. Graças aos meus amigos ex-seminaristas, mudei-me para um quarto pequeno num prédio antigo na Via Brizzollatti, onde havia uma inscrição dizendo que Rossini ali morara. Era perto das Vias de Banchi Nuovi e Banchi Vecchio e perto da Piazza Navona e da nova embaixada brasileira. No palácio Doria Pamphilli. Eram do tempo do Império romano, ou pareciam, de tão antigas.

 

Mudei de casa e de turma. Comia, almoçava e jantava na Cucina do Luigi. Um pequeno restaurante pobre, como um botequim de São Cristóvão, mas a família que dirigia, também cozinhava, servia e limpava o restaurante, composto do seu Luigi, de uma bondade e compreensão sem limites, sua mulher, a gordíssima Yole, com seu vasto bigode querido, capaz de fazer um macarrão que nenhum paulista, com toda a banca, jamais viu. Luigi, um coração de ouro e pedras preciosas, e seus dois filhos, espertos e amáveis. Os estudantes brasileiros com bolsa mínima e desempregados comiam ali, e jamais pude saber como eles faziam para dar tanto crédito à gente. Alguns brasileiros assinavam notas, sem pagar, há seis meses. A grande maioria dos frequentadores, como eu, assinava estas notas. Eu cheguei a dever três meses, fora o dinheiro que eles nos emprestavam para irmos ao cinema. E sempre sorrindo, sempre amáveis, jamais cobraram com indelicadeza. Seu Luigi só brigava com os filhos. Os fregueses faziam parte de sua família. Adorava os brasiliani. Tinha o Paulo, o Geraldo e o Pierre, que era cearense, e o Mauro, nissei paulista. Nos encontrávamos todos os dias no almoço e no jantar. Senti minha saída do Rosati e do espaçoso e luxuoso quarto da Via Rasella para Cucina e para o mínimo quarto em que eu morava agora. Foi como um abismo.

 

Fiquei muito comunista. Comecei e ler Lukács, Gramschi, Umberto Barbaro e a só pensar na revolução. Lia Rosa Luxemburgo e Brecht e fazia discursos inflamados para os operários que frequentavam a Cucina do Luigi.

 

Estava bem de maiêutica socrática e dialética pasoliniana. Rebatia todo pensamento de direita, com muito humor e invenção. Nunca fui tão comunista como naquele tempo. Recebia cartas do Sérgio, que estava fazendo um curso no Iseb e metendo o pau no Jânio. Pensava: se Losey estudou com Brecht e era comunista, se Antonioni e Pasolini eram comunistas e faziam cinema quer fazem, porra, o caminho é este. Mas eu estava muito radical, vivia ouvindo e vivendo como os operários italianos que não tinham dinheiro, como eu também não tinha. Via as bandeiras rossas e os cantos da Internacional e ficava imaginando o Brasil assim. Comecei a escrever, com Paulo, um roteiro, sobre a revolução na Amazônia. Panfletário e radical. Mandei para Gláuber, que adorou e queria produzir.

 

O Rio tinha se esvaziado. As cartas de Marcos Faria e Leon eram desanimadoras. Havia o Centro Popular de Cultura, que estava sendo formado mas ainda era muito abstrato. Eu via claramente que aquele meu comunismo escondia uma grande frustração. De não ter a cópia de Arraial, de ficar nos bares bebendo e falando de um filme que não existia. Fora tudo mentira. Eu via que Mário era incapaz de finalizar o filme sem a minha presença, que Joaquim e Montanha eram produtores de merda, que eu nunca devia ter saído do Brasil sem a cópia do filme. Que eu tinha sido precipitado e louco. Havia uma jornalista brasileira que me fazia companhia naquele humilde quarto.

 

(Agora, lembro-me com saudades daquele tempo que me deu uma grande experiência de vida; ali eu vivi mesmo sozinho, sem papai e mamãe, apesar das cartas trocadas com eles. Sofria e fazia eles sofrerem. Foi uma merda. Mas aprendi muito, e conheci pessoas santas, como Luigi e Yole.)


Eu tomava porres terríveis e uma vez fui com um jovem florentino de nome Remo (que trabalhava como garçom num bar perto da Piazza Navona), inteiramente bêbados, ao Café de Paris, e desacatamos todos os que achávamos que eram burgueses e ricos, ao ponto de sermos presos. Passamos um dia na cadeia de Regina Coeli. Baríssima. Saímos como dois perigosos agitadores comunistas.

 

Começaram a chegar cartas do Brasil, do Sérgio, da minha irmã Norma, do Mário, de Ana Letícia, todos falando das sessões de Arraial. No Alvorada, o filme tinha sido vaiado, mas dona Heloísa, doutor Lúcio Costa, Aluísio Magalhães, os amigos cineastas, os intelectuais de esquerda, tinham gostado muito. E Mário tinha entregue uma cópia em 16mm para o Aluísio Magalhães, que viria a Roma, me trazer. Finalmente chegaria Arraial.

 

Mas Aluísio demorou muito, e aquela espera foi pior ainda, quase me matou; situação horrenda, mesmo. Kafka era pinto! Somente depois, nos tempos de Collor de Melo e Ipojuca Pontes, em 26 de março de 1992, depois que nossa atividade cinematográfica brasileira foi apunhalada de forma cafajeste e cruel, é que vi algo comparável, e, mesmo assim, comparável até o gesto de Judas. Traidores de todos os lados, guiados por um mentor irreverente e ignorante. Enquanto escrevo este livro, vivo sentindo o sofrimento por meus amigos mortos e dos amigos vivos, à beira de um reencontro infeliz.

 

Não guardas ressentimento nem amargura: primeira lição para um artista. Deus e a Arte são maiores.

 

Mas tudo isso para quê? A miséria e a fome aumentaram. A educação, a saúde, a habitação, a cultura e o lazer da maioria da população pioraram. Não apareceu nenhuma Rádio Nacional. Nenhuma grande tevê. E lembrar do teatro da TV Tupi, com Cacilda, Sérgio Cardoso, Ítalo Rossi, Sérgio Brito, Walmor Chagas, fazendo e recriando grandes textos...nenhum Silveira Sampaio...Nada. Só Jô Soares, nessa tevê de 1992, vale a pena.


Cadê jornal como o Correio da Manhã, ou a Última Hora do Samuel Wainer? Ou o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil? Cadê críticos como Otávio de Faria, Paulo Emílio, Almeida Sales, José Sanz, Muniz Viana, Rubem Biáfora, Salviano Cavalcanti, Alex Viany? Cadê políticos como Getúlio, Tancredo ou JK? Cadê revolucionários como Luiz Carlos Prestes? Cadê? Tirando o Ulisses...

 

Eu não sou saudosista, sou futurista.

 

Mas, voltando a Roma...Em 1960, eu estava desesperado, Aluísio Magalhães não chegava nem dava notícias. Sem dinheiro algum e devendo muito ao Luigi, pensei em trabalhar. Trabalhar em quê? Apesar de oriundo, um Seracheni – como se pronuncia meu nome por lá -, estava complicado. Penseri em ser garçom como o Remo, mas ele já tinha voltado par Florença. Talvez eu descolasse um contrato com o Lazio, para voltar ao futebol. Geraldo arranjou duas entradas para ver o Santos jogar contra o Roma. Fomos. O estádio estava cheio. Primeiro tempo, o Santos não jogou. Roma 2 a 0. A torcida dos tifosi, torcedores fanáticos, vibrando. Segundo tempo, o Santos começou a jogar. Os romanos não pegaram mais na bola. Zito e Mengálvio dominaram o meio-de-campo. Dorval e Pepe resolveram jogar. E aquela fantástica e jamais vista tabelinha Pelé-Coutinho estraçalhou a  defesa do Roma. Santos 3 a 2. Quando acabou o jogo, com todo o cuidado, fomos até o vestiário do Santos. Fui falar com Getúlio, beque direito do Santos, e o ponta reserva Ney; ambos tinham jogado comigo no Fluminense e achavam que eu estava jogando no Lazio. Disse a eles que eu estava treinando, mas que tinha vindo a Roma para estudar cinema. Eles não acreditaram. O Roma pediu revanche, um segundo jogo. O Santos ganhou de 5 a 0. Dando um baile total. Aquele time não jogava por música. Era música. Escrevi uma carta desesperada ao Sérgio, e meu pai leu. Escreveu-me outra, pedindo que eu voltasse para o Brasil. Ser advogado, voltar para o banco. Que mamãe estava chorando muito. Pensei em voltar. Mas, naquela noite, o cinema Rialto ia fazer uma homenagem a Rossellini e a Anna Magnani. O cinema Rialto era perto do Cucina, e estava passando Roma, cidade aberta. Eu e Geraldo fomos. Adorei rever o filme. Não tive coragem de me aproximar de Rossellini. Fiquei olahdno para saber se ele, durante o filme, olhava para la Magnani, ou ela para ele. Eles estavam sentados separados, mas sei lá, num certo momento do filme ela podia lembrar-se do amor que tiveram e que a Bergman quebrou. Que podia haver perdão da parte dela. Ele estava sozinho, sem Sonalis das Gupta, sua mulher naquela época. Mas...nada. Ele só respondeu aos aplausos finais entusiásticos. Aí, ela sorria e ria de felicidade. Era uma sala de cinema popular, era o povo mesmo, que aplaudia de pé essa grande atriz. Rossellini, discretamente, foi saindo de mansinho. Eu vi o gênio sair feliz.

 

Eu podia ter chegado até ele e dizer: lembra-se do Brasil, do Rio de Janeiro, quando o senhor acendeu meu cigarro de costas para mim? Ele se lembraria, estou seguro. Lembraria das fotografias, onde eu sempre estava por perto, dentro delas. Depois de 25 anos, Roma, cidade aberta estava novo, como Paisá, como Alemanha, ano zero, como Francisco, arauto de Deus, como todos os filmes dele. Não foi Rossellini que realizou o filme Milagre? O tempo era seu aliado.

 

Numa entrevista, poucos dias antes, ele tinha falado de sua formação cinematográfica. Tinha elogiado Aleluia, de King Vidor, e A turba, de Fritz Lang. Dizia que ia muito ao cinema, pois seu pai era dono de uma sala em Roma: Cinema Corso. Falou com entusiasmo dos seus primeiros filmes documentários, sobre a natureza, A libélula que voava. Falou de sua dificuldade em filmar cenas que não são essenciais, que só servem para a narrativa. “O que não é último episódio, quando me lembrava de ter visto muito, no rio Pó, aqueles cadáveres dos parigiani descendo pelo rio, mortos pelos nazistas. Era um limite”, confessava. Falou mal dos roteiros com decupagem de ferro. Ridículos. Elogiava a Magnani, a Bergman, Aldo Fabrizi, Marcelo Pagliero. Mas preferia os atores não profissionais. Elogiou a música de seu irmão Rezon, grande colaborador. E dizia que a fase que mais gosta em seu filme é o ato de filmar. A espera. A espera é tudo. Cria uma curiosidade pelo que vai suceder e depois a explosão, como a matança de atuns em Stromboli.

 

Fiquei pensando em Arraial – a espera dos peixes em Arraial era assim. Mas o filme não chegava a Roma e seria preciso eu voltar ao Brasil para vê-lo. Sacanagem. Não vou. Quando você tem aí no bolso. Geraldo? Trezentas liras, eu tinha duzentas, dá para três jarros de vinho. Vamos ao Transtevere.

 

Eu queria continuar na Europa, e combinamos fazer uma entrevista com Pasolini e vender para a Manchete ou O Cruzeiro. Pier Paolo era figurinha fácil no pedaço. Vivia na Via Panico, uma rua atrás da Cucina do Luigi. Ás vezes o encontravam cheio de porrada e ensanguentado, jogado ao chão, às margens do Lungotevere (Tibre), o rio que banha Roma. Pasolini, além de famoso poeta e romancista, era o melhor roteirista do momento e ia passar a dirigir. Ou melhor, ia fazer seu primeiro filme. A Manchete ia querer. Isto podia até dar uns mil dólares. Fomos falar, no dia seguinte, com Regina Castelo Branco, adida cultural e nosso anjo da guarda. Mas Regina estava me procurando com uma bela novidade – a cópia de Arraial chegara. Quase beijei seus pés. Ela me disse: “Aluísio não pôde vir, ficou preso em Paris, mas mandou, finalmente, a cópia. Diz que se perdeu em Sevilha com o João Cabral de Melo Neto, diplomata e poeta maior”. Claro que Magalha não ia perder essa. Filho da puta, pensei, me deixou nessa merda, e ficou fazendo charme para as espanholas com seu violão e o ABC do amor. Mas Magalha era um encanto, lamentei que não tivesse vindo. Eu ia leva-lo a Frascati e afundá-lo num barril de vinho. Regina disse que a sessão já estava marcada: “Hoje, às três horas”.

 

Mulher maravilhosa. Avisei a quem pude e fui tremendo de emoção. Era Arraial, curti demais! Sempre gostei mais da primeira versão de 24 minutos, tinha muito Villa-Lobos, é verdade, mas é melhor 4 minutos de Villa a mais do que a menos. Mas a outra versão de 20 minutos é mais comercial. Só houve duas versões de Arraial do Cabo. A de 24 minutos e a outra de 20 minutos. Repito porque falaram em versões de 14 minutos, de 7 minutos, etc. Não é verdade, nunca houve.

 

O pessoal gostou. A embaixada gostou e a bela Regina, fada boa, comprou a cópia em 16mm por 340 dólares, e pagou na hora.

 

Festa na Cucina do Luigi. Paguei a minha e as dívidas dos amigos. Dei presente para a família toda. Luigi ganhou uma gravata tricolor, com cores do meu Fluminense e da Itália dele. Minha vida mudou. Papai me mandou recorte de jornais. Medalha de Ouro no Festival de Bilbao, na Espanha.

 

Fui comemorar no Rosati. Encontrei Sandro e Bernardo. Eles pensavam que eu tinha ido para Paris, ou outro lugar qualquer. Falei do prêmio e marquei uma sessão para eles. Adoraram o filme, ficaram impressionados com a minha direção e a fotografia do Mário. Nino, Gino, Murilo e Saudade também curtiram. Voltei com sucesso ao Rosati, mas me segurei, gastava pouco, guardava o dinheiro para o outro dia. Tinha aprendido. Cuidei para que o estudo não parasse, estava querendo defender uma tese que era indefensável naquele momento na Itália. Fazia um paralelo entre Eisenstein e Rossellini: “Duas revoluções cinematográficas: Encouraçado Potemkin e Paisà”. Eu tinha lido o livro de Lukács, Prolegômenos de uma estética marxista, e me basearia nele. Talvez inconscientemente eu estivesse querendo explicar as duas montagens que existem dentro de Arraial. A eisensteinisiana, de choque, de atração, intelectual, e a rosseliniana, de puro espírito. A gente não vê, mas ela está ali.

 

Enquanto isso, recebo cartas da família: Norma está mal. Casara e se separara, pedindo anulação do casamento. Eu sabia que aquele cara era um cafajeste. Longa e penosa separação. Norma não fora criada para isso, se separava, mas não queria ser mulher descasada. Pobre irmã adorada, que sofrimento! Eu ainda a veria assim na minha volta do Brasil em setembro de 1961. Amada irmã.

 

Sérgio, sempre de uma atenção extraordinária, não media esforços para me segurar na Europa e Norma em casa. Foram trocas de cartas em que eu me esforçava para dar força a ela. Sérgio, um irmão dedicado e amoroso. (Norma se casou depois com Dante, hoje tem dois filhos e três netos.)

 

Meus pais, preocupados. Mas agora, depois do prêmio em Bilbao, me dando força para ficar e estudar, só voltasse quando estivesse pronto, o Brasil estava meio devagar com Jânio e Lacerda, na certa iam fazer besteiras. O quente mesmo era Cuba e sua revolução. Fidel e Che Guevara, heróis da luta contra a ditadura de Batista.

 

Ninguém tinha me escrito que o filme tinha ido para o Festival de Bilbao. Mário disse que escreveu, mas não recebi a carta.

 

Arraial do Cabo, depois que chegou à Europa, só deu prazer. As portas ficaram abertas para mim. E foi ganhando vários prêmios. Sete ao todo. Eu só participei de um, quando mesmo o inscrevi, que foi o de Santa Margherita. Dos outros só tomei conhecimento depois, junto com os prêmios.

 

Quando entrei no Centro Sperimentale, os professores e alunos me tratavam com respeito. Muitos dos professores do Centro haviam concorrido com Arraial e perderam para ele; a professora Rosada, professora de montagem, a mais conhecida, pois montou vários filmes da primeira fase neo-realista, deu uma aula inteira sobre a montagem de Arraial. Mas ninguém deu bola para a minha tese. Rossellini estava em baixa. Diziam que ele tinha traído a luta anti-imperialistae anticapitalista. Que seu casamento com Ingrid Bergman tinha destruído o seu talento, que era enorme, disso ninguém duvidava. Paisá era uma obra-prima, mas compará-lo com Encouraçado não dava para engolir.

 

Chegam do Brasil notícias falando dos prêmios de Arraial:

 

FILME BRASILEIRO NUM FESTIVAL EM BILBAO, MEDALHA DE OURO

Bilbao, 13 (A. P. – O Globo) – O filme documentário brasileiro Arraial do Cabo, de Mário Carneiro e Paulo Saraceni, ganhou a Medalha de Ouro do Festival Internacional que se realiza nesta cidade. O prêmio Medalha de Prata foi conferido a um documentário francês, e a Medalha de Bronze, a um documentário português intitulado Viagem do presidente Kubitschek a Lisboa.

 

BILBAO ENTREGA PRÊMIO A FILMES NOSSOS

Ontem, às 17:00h, no salão nobre da Reitoria da Universidade do Brasil, na avenida Pasteur, nº250, o Instituto Brasileira de Cultura Hispânica, presidido pelo Magnífico Reitor da Universidade do Brasil, professor Pedro Calmon homenageou o sr. Brás Piñal, diretor do Instituto de Cultura Hispânica de Madri.

Na mesma ocasião, o sr. Blás Pinãl fez entrega dos prêmios conquistados pela representação do Brasil ao II Certame de Cinema Documentário Ibero-Americano e Filipino, realizado em outubro der 1960 em Bilbao.

No mencionado certame, o documentário Arraial do Cabo, dirigido pelos srs. Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, recebeu a Medalha de Ouro (prêmio das Nações) na Seção Hispano-Luso-Americana e Filipina.

 

Publicado originalmente em SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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