terça-feira, 26 de abril de 2022

Por Dentro do Cinema Novo, minha viagem por Paulo César Saraceni, capítulo 5: Definindo cinema

Capítulo 5: Definindo cinema

Festival de Santa Margherita (1961), Itália : Paulo César Saraceni, Rudá de Andrade e Eva Wilma


Por Paulo César Saraceni

 

A tese para o Centro Sperimentale foi, resumidamente, mais ou menos assim: chamava-se “Nova Crítica” e começava falando do livro de Umberto Barbaro e Guido Aristarco, principais críticos marxistas do neo-realismo italiano, que abordava a confusão que eles encontravam na crítica de cinema, principalmente na Itália. Que era estéril continuar a discutir se cinema era uma forma de narrativa rítmica – o ritmo das imagens – ou o novo romance, ou somente uma arte figurativa, ou ainda era a síntese das outras artes.

 

Os italianos enfrentavam, no início dos anos 60, a mesma dificuldade que nós, cariocas da Faculdade de Filosofia, tínhamos na ocasião do Manifesto Bola- Bola. Esqueciam de considerar o texto mais importante, que era o de André Bazin, sobre o cinema impuro, além de saltar no tempo, passar definitivamente do específico filme (teoria do cinema silencioso) para o cinema falado. Do cinema puro ao impuro. Mudo/falado. Bazin abre caminho para a nova crítica francesa, mil furos na frente das demais críticas, e a crítica jovem francesa, principalmente do Cahiers du Cinéma, ainda tinha e não escondia – outra vantagem: todos os jovens críticos queriam fazer filmes.


Foi aí que repeti, e Bernardo Bertolucci divulgou: cineasta é aquele que faz filme. Como é que a gente vai saber se o cara é cineasta ou não? Só quando ele faz filme.

 

O importante é que, agora, devemos definir o cinema assim: é a forma de expressão mais apropriada para refletir o nosso século. A arte social que melhor exprime o século XX. Não interessa situar a obra, o filme na sua essência, entre o singular e o universal. Nacional ou internacional. Particular ou coletivo. O universal é sempre uma alegoria. É do particular que nasce a obra de arte. Eu seguia o pensamento da estética marxista de Lukács, pensando em Mário Carneiro, que defendia o cinema-catedral, o cinema em que toda a equipe faz o filme – eu defendia o autor-diretor. Pois é ele quem, naquele momento, tem as antenas ligadas para o universal. E citava Goethe:


A qualidade fundamental da unidade vivente: separar-se, unificar-se, fundir-se com o universal, persistir no particular, transformar-se, especificar-se e, no mesmo modo pelo qual o vivente se pode mostrar em mil condições, aparecer e desaparecer, solidificar-se e fundir-se, irrigar-se e escorrer, estender-se e contrair-se. Porque todos esses efeitos acontecem contemporaneamente no mesmo momento, assim cada coisa pode ocorrer no mesmo tempo. Surgir e parecer, criar e anular, nascimento e morte, glória e dor, tudo se mistura na mesma medida. Logo também o acontecimento mais particular se apresenta sempre como uma imagem ou símbolo dos mais universais.

 

Para mim, Goethe exprime claramente a relação entre o particular em direção ao universal, falando da coincidência entre o particular e o universal. Um é ligado ao outro.


Depois eu defendia a realidade, contra Arheim, por exemplo, que diria que o cinema só era arte atuando se distanciava da realidade. Para defender a realidade é que eu entrava em Paisá e Encouraçado Potemnkin. O filme de Eisensteins era de época, pois foi filmado em 1924, sobre um acontecimento passado em 1905. O de Rossellini era sobre o presente. Mas o cinema é sempre presente mesmo quando é flashback. Se ficamos falando e teorizando sobre cinema, puro ou impuro, o filme de Eisenstein é cinema e o de Rossellini não é, ou vice-versa. Como sabemos, os dois são obras-primas. No tempo de Vivaldi não havia o contraponto, no de Bach sim, e isto não quer dizer que os dois não sejam grandes músicos. Os dois filmes são realistas e revolucionários, nascidos em dois momentos importantes da história da humanidade. Mas como podem ser realistas dois filmes feitos de formas diversas? O que existe é uma forma diferente para cada conteúdo, ou cada momento histórico.

Eu vinha de Hegel:

 

A mudança histórica do conteúdo está na base da transformação da forma, no estilo, na composição. A obra de arte não deve somente fazer ver como também deve analisar a transformação da realidade no nascimento do novo e na morte do velho. Conseguindo, no justo conteúdo, na justa forma e na justa proporção, elaborar uma forma originariamente adequada a novo conteúdo e dessa gerar uma nova forma.

 

Penso que esta nova crítica marxista italiana, ou brasileira (e eu pensava em Miguel Borges e Marcos Faria, etc), baseava-se no filme específico e na montagem rápida, e se via embaraçada ao considerar os filmes recentes.

 

Era uma tese confusa, principalmente para os professores do Centro, que a acharam, com toda razão, pernóstica e pretenciosa. Mas eu estava na verdade falando com o Centro Popular de Cultura (CPC), com Leon Hirzsman, com os futuros cineastas brasileiros, com Carlos Pérez e Miguel Borges, que me gozavam de ser rosseliniano e ao mesmo tempo querendo resolver dentro de mim o impasse que havia também na forma estética que Arraial tinha sido feito. E, ao mesmo tempo, o impasse quando à minha dificuldade ideológica. Mas mostrava também que o período de dureza da Cucina do Lugi me fez estudar muito e querer nesta tese responder a todas as perguntas que me afligiam.

 

O que Léon Moussinac, grande teórico e escritor francês, escreveu em 1926 sobre Encouraçado Potemkin me impressionara:

 

Com este filme aparecem sobre a tela pela primeira vez as qualidades primordiais do cinema soviético. O dinamismo irresistível, a utilização ao máximo da expressão mais direta, o retorno aos elementos da natureza, o abandono voluntário e deliberado da vedette, expressão forte do grupo, da coletividade, do movimento de multidão, o desejo de atravessar a imagem, de criar uma alma coletiva. Uma obra de arte que nada deve à literatura ou ao teatro. Uma obra de arte que reflete um momento da consciência universal, além de todo um povo unido em torno da mesma ideia e um mesmo sentimento nacional.

 

Colocando no lugar de cinema soviético o cinema italiano, as mesmas palavras de Moussinac em 1926 serviram para o filme de Rossellini. Podia ser dito sobre Paisá, em 1946. Sigo falando das afinidades dos dois filmes, com uma montagem inteiramente diferente. Uma rápida, outra longa. Logo, o julgamento de uma obra de arte não pode limitar-se nem ao seu conteúdo nem à sua forma, tomados isoladamente. Não precisei da tese para ser aprovado no Centro Sperimentale: Arraial do Cabo me fez passar direto, com louvor. O trabalho do meu irmão Sérgio junto ao consulado italiano no Rio e Regina Castelo Branco na embaixada do Brasil, que agora já era no Palácio Doria Pamphilli de Roma, foram também fundamentais para a bolsa.

 

Mas, antes de entrar para o Centro Sperimentale, recebi um comunicado de que o sr. Gustavo Dahl tinha chegado a Roma e gostaria de marcar um encontro comigo. Quem era o sr. Gustavo Dahl? I never heard about him. Sabia, sim. Era colaborador de Paulo Emílio na Cinemateca Brasileira de São Paulo, mas esse era jovem – sr. Gustavo, pode ser o pai, chi lo as? Boo! Falando romano. Eu ia curtindo aquele encontro marcado num bar perto da antiga embaixada. Fui com Geraldo, que era mineiro e também queria conhecer o paulista. Entramos num bar e vimos um jovem, encapotado com um belo chapéu de feltro francês, esnobe paca, lendo o Chiers du Cinéma. Caímos fora do bar quase correndo. No dia seguinte sim, encontrei Gustavo e nos tornamos grandes amigos. Levei-o ao Rosati, aos meus amigos Sandro e Bernardo, e ele logo entrou para a turma e para a geração Rosati. Deu-se muito bem com Bernardo. Com Sandro, Gustavo competia muito, mas com Bertolucci ficou unha e carne.

 

As coisas melhoraram muito para mim com a admissão ao Centro, agora eu tinha o dinheiro da bolsa do governo italiano e a ajuda do Itamarati – pequena, mas ajudava. Eu, Gustavo e Geraldo alugamos um espaçoso apartamento em Cinecittà, de três quartos. Era longe do Rosati e do centro e Roma, mas perto do Centro Sperimentale. Gustavo tinha achado horrível comer na Cucina do Luigi. Eu disse a ele: “Não esnoba, não, que você pode precisar”. Ele cruzou os dedos e se mandou. Mais tarde, quando eu já tinha voltado para o Brasil, ele precisou e foi lá, assinou conta, ficou amigo da família do Luigi e dos operários comunistas.

 

Na Via Pânico, que Pasolini frequentava, havia uma senhora jovem ainda que eu gostava de ver falar e gesticular. Era bem romana, tipo a Magnani, com duas filhas encantadoras de quatorze e quinze anos. Chamava-se Liliane Pogessi e um dia veio tomar satisfações comigo por eu ficar paquerando ela. Ficamos amigos. Ela era contrabandista de roupas, coisa pouca, mas tinha guardando dinheiro e comprado também, com a ajuda do seguro de seu marido – Liliane era viúva -, dois apartamentos em Cinecittà. Liliane tinha um temperamento forte. Tórrido mesmo. Me contaram que ela, assistindo ao julgamento de seu irmão – preso por ter roubado um relógio de pulso do amigo de um amigo, parceiro no roubo e autor intelectual dele -, viu o irmão, só por ser pobre, ser condenado, e o amigo, por ser rico, absolvido. Liliane pulou a grade de madeira do tribunal e mandou o sino grosso da campainha do juiz na cabeça dele e ficou presa algum tempo. Alugamos um dos seus apartamentos em Cinecittà. Tomávamos o bonde na Stazione Termini e chegávamos à Via Marco Valerio Corvo, onde morávamos.

 

Gustavo demorou seis meses para falar italiano. Só falava francês, perfeito. Quando falou italiano, parecia ter nascido lá.

 

A Via Marco Valerio Corvo e o edifício onde morávamos era modernoso, dessa má arquitetura italiana de periferia de péssimo e medíocre gosto. Mas o apartamento era simpático, o local era inteiramente deserto. Havia o estúdio cinematográfico imenso, nunca fui lá, nunca me interessei em conhecer os estúdios, nem a Hollywood ou da Vera Cruz. Havia também o Centro Sperimentale a dez minutos de bonde. O resto era uma vegetação rasteira e pequeninas casas e edifícios isolados. A noite não existia, mesmo para comprar cigarro tínhamos que ir longe. O aluguel era barato e, dividido por três, era quase nada. Liliane morava com as filhas num apartamento perto de nós e dava a maior cobertura, fazendo uma pastaciutta deliciosa e arrumando camas, lavando roupas. Ela gostava da gente e ria muito quando falávamos português. Gustavo não queria saber de italianas, só namorava polaca, holandesa ou francesa. Geraldo cansou de ficar esperando o dinheiro das bolsas, agora era funcionário da embaixada brasileira. Cera vez, quase um ano sem receber a bolsa, pediu que eu falasse com o Sérgio, que já estava craque no negócio de bolsa no Itamarati e consulado italiano, pelo muito trabalho que eu lhe dera. Aí Sérgio conseguiu e chegou uma bolada para Geraldo, no tempo ainda de dureza de Cucina do Luigi. Geraldo me convidou para irmos a uma boate de Via Veneto, a mesma do filme Giordana Ballorda, de Mauro Bolognini, roteiro de Pasolini. Fomos, mas eu sugeri que ficássemos no balcão, bebendo vinho e olhando as mulheres. Mas, depois de duas garrafas de champanhe, Geraldo se entusiasmou e foi danças com uma daquelas mulheres, e acabamos nos sentando numa mesa em que chovia champanhe, com direito a música, violinos embalando nossa mesa cheia de mulheres ótimas. O dinheiro de um ano de bolsa foi todo naquela noite. Saímos num porre colossal e sozinhos, as mulheres tinham se mandado. Felizmente Geraldo tinha pago ao Luigi antes. Mas agora, na embaixada, Geraldo estava sempre acompanhado de brasileiras recém-chegadas. Mostrei Roma para Beila Genauver, que rui muito quando lhe falei do bordel do porto de Vitória. Ela achou que tinha que fazer um laboratório stanislaviskiano lá, para voltar a fazer Pedro Mico. Concordei. Demos muitas risadas falando mal de Paulo Francis, com ternura, apesar de tudo.

 

Revi L´aventura e quase procurei Lea – que mulher extraordinária! Lelena não errava nunca, tomara que Lelena veja esse filme. Uma fuga de Bach. Lea não badalava, sua vida era mais misteriosa que a de Greta Garbo, e no tempo dos paparazzi, não era mole. Cada vez eu gostava mais de Antonioni, Losey e Nicholas Ray, diretores que faziam minha cabeça naquele tempo. Ansiava para ver A bout de souffle, de Jean-Luc Godard.

 

No Centro Sperimentale, depois do sucesso cada vez maior de Arraial, todos queriam saber como era Mário Carneiro, como tinha feito aquela luz branca sobre branco. Eu respondia que teriam que ir ao Brasil para falar com ele. Eu ficava um pouco isolado, pois era “aquele que já tinha feito um filme”: era chato acompanhar as aulas de direção, por exemplo, que ficavam meses falando da diferença entre a lente grande angular 25 e 50, das teleobjetivas 75, 1150, 300. Era um saco. Gostava da aula de montagem da Rosada e curtia muito a aula do conde-general Maximiliano Benteracio, que ensinava direção de produção. Dizia sempre, de forma dramática: “Qualsiasi sbaglio nel momento di girare è veramente fatale”. Traduzo: “Qualquer erra no momento de filmar é verdadeiramente fatal”. Ele contava como Luschino Viscontio rodou Senso, e era muito divertido. Eu passava muito tempo na cinemateca do professor Montesanti vendo filmes clássicos italianos. Vi Cabiria e as divas Francesca Bertini e Pina Menichelli, que Otávio de Faria adorava. Vi os primeiros filmes de Alessandro Blasetti. E todo o neo-realismo, eu queria saber como era fazer um movimento cinematográfico novo e revolucionário. Trinta anos depois, Júlio Bressane me diz que Porto das Caixas era um filme que revia e passava a limpo o movimento neo-realista. Genial, o neo-realismo, autores-diretores extraordinários, fazendo um filme atrás do outro. Que maravilha – um filme de Rossellini, outro de Visconti, De Sica, Zavattini mandando recados e notícias. Fellini e Antonioni junto com eles, dando uma visão nova da Itália, do mundo, do ser humano, da sociedade em que viviam. A luta heroica de conviver com o vivendo, que bola movimento cheio de talentosos diretores coadjuvantes. Belíssimo momento do cinema e do século.

 

Luchino, Roberto, Vittorio, Federico e Michelangelo. Que time!

 

O neo-realismo não acabou: ele continua, está vivo, apesar de baleado pelo derrame. Michelangelo Antonioni está vivo. Federico Fellini idem.


Em 1962, eu devia estar mesmo adorando este movimento, para fazer o nosso no Brasil. Porto das Caixas reflete isso.

 

Havia quatro alunos de direção, italianos 0 Silvano Agosti, Marco Bellochio, Sergio Tau e Enzo Delachila. E quatro brasileiros – eu, Gustavo, Geraldo e Glauco Mirko Laurelli. Um vietnamita, uma canadense, um holandês, um americano, um cubano. Eu gostava de frequentar o segundo ano, porque lá davam-se aulas práticas com as câmeras de tevê da RAI. Fiquei amigo do Paul Bangansen, que era norueguês, e da dinamarquesa, filha de turcos, Nili Arutai, com quem tive um caso de amor e dor. Gostava de ficar enquadrando as alunas e as arizes do Centro. Virma Onorato, lindíssima ragazza romana, muito inteligente, companheira e amiga. Era namorada de todos. Fiquei muito amigo de Marco Bellochio e levei-o para o Rosati. Tornou-se um dos astros da geração Rosati.

 

Gustavo era muito inteligente e bem diferente de mim, pois não lia romances, só lia ensaios e Cahiers du Cinéma. Sabia de tudo, ele era um crítico do Cahiers, da extraordinária e maravilhosa geração de críticos de cinema. Gustavo ainda não escrevia, mas já era um deles. Namorava com a polaca Cristina, aluna e atriz do Centro, e que tinha debutado com o primeiro filme de Polanski, teste para o seu curso na Escola Polonesa de Cinema. Era linda, vermelha e rosa, com muito dengo. Gustavo era muito articulado, carinhoso e amigo. Foi bom aquele tempo em que moramos na Via Marco Valerio Covo. Eu, Gustavo e Geraldo. Ás sete horas, Liliane Pogessi acordava a gente, íamos para o Centro e voltávamos de tarde, almoçávamos e íamos para o Rosati ou para o cinema, ou para os dois.

 

Éramos convidados para avant-premières e vernissages. O tal dia esperado chegou: a estreia romana de A bout de souffle (Acossado), de Godard. Todo mundo de terno e gravata vendo descer pela escadaria do cinema Luchino Visconti, ladeado por Claudia Cardinale e Alain Delon. Que trio! Todo Rocco e seus irmãos esperava por eles. O filme de Godard era genial. Que leveza. Extraía tudo do real, fazendo Rimbaud. Poesia cinematográfica da mais alta qualidade. E citava Faulkner – fiquei impressionado, chegando mesmo (...). Que transgressor formidável!

 

Gustavo chegou até Luchino Visconti e perguntou-lhe: “O mestre gostou?”, “Superficiale”, respondeu Visconti. “Muita pele, não é?”, disse Dahl, e eu me afastei. Eles conversaram muito. Visconti era um grão-senhor: sobrancelhas enormes em olhos penetrantes que te arrastavam para um mundo obsessivo de prazer e dor e tudo que virá depois. Gênio – Terra trema, Senso, Rocco. Mas a noite era de Godard. Mais tarde, o próprio Godardi diria que eles eram só 200 mil – para mim foram muito mais. Houve “gerações Paissandu” em todo o mundo.

 

Claudia Cardinale ria mostrando os dentes de divina gata. Alain Delon e ela faziam um casal de dar inveja aos grandes mestres do Renascimento. Brilhantes da festa de Jean-Luc Godard.

 

Agora no Rosati só davam Antonioni e Godard. Eu, conservador, inventei uma frase: Non si può vivere senza Rossellini, utilizado por Bernardo Bertolucci em seu filme Prima dell revolluzione, dita pelo grande cineasta Gianni Amico. O filme de Bertolucci, feito em 1964, é sua segunda obra.

 

A geração Rosati estava pronta para um movimento como o do Rio, ou da Bahia, ou ainda de Paris. Fizemos as reuniões, iguais às da casa de Joaquim Pedro, na rua Nascimento e Silva, em Ipanema. Em Roma, foi na Via Marco Valerio Corvo.

 

Concurso de roteiros. Ganhou Marco Bellochio com L`alba romana. Gustavo tirou o segundo lugar, com ótimo roteiro. O meu não foi entendido. Falava do medo que os italianos tinham de falar do duce Mussolini. Era um vômito. E tinha a estrutura de dois roteiros que eu faria mais tarde, Amor de gente moça e Desafio.

 

Bellochio me chamou para ser seu co-roteirista. Trabalhei com prazer, era um filme fortemente influenciado por Antonioni, mas já tinha muito de Pugni in tasca, primeiro filme de Marco, feito em 1965.

 

Foi muito bom para a geração Rosati e para o cinema italiano em geral, pois os jovens cineastas italianos eram obrigados a ficar muito tempo como assistentes de direção antes de iniciar a carreira de diretor. Depois isto mudou.

 

Eu defendia a prática do filme em 16mm, onde a gente vai sacando a linguagem cinematográfica. Eu e Marco fazíamos uma boa tabelinha. Mas Sandro Franchina nos convidou para trabalharmos no roteiro de Morire gratis, um longa e em 35mm. Já havia produtores interessados. Fomos, deixando L´alba romana para depois.

 

Morire grátis (Morrer gratuitamente) tinha uma ideia avançada para a época, até para nós, que só íamos de birita. Bebíamos bem, éramos bebuns, sabíamos pouco de drogas. A história do filme falava de dois pintores italianos de vanguarda e muito amigos. Um era sério, vivia pintando e acreditava no trabalho. O outro não dispensava uma vida social intensa. Moravam juntos. Franco, o que gostava de festa recebeu convite para expor em Paris. Dá uma festa de despedida, onde é procurado por um traficante de cocaína que o contratara para levar dentro da sua escultura, uma loba romana, quilos e quilos da droga. Paolo, o pintor sério, está bêbado e é inteiramente contra mais essa loucura do amigo. Mas Franco vai com sua linda companheira de carro para Paris, levando a lupa romana, e demora muito na viagem, amando a jovem e sedutora namorada. O filme terminava em Paris, com perseguições por causa da droga. As influências de Antonioni e Godard estavam todas ali. O fotógrafo era Guido Cosulich. No entanto, o tema avançado só conseguiu viabilizar-se como filme em 1966, depois dos Beatles e de Desafio, com a experiência que Guido trouxe da produção deste filme. Em 1966, quando voltava do Festival de Pesaro e ia ficar uns dias em Roma, fiz o papel do Paolo, o pintor sério. Franco Angeli, pintor vanguardista importante, seu próprio papel. O filme só foi entendido em Roma já em 1990, quando elogiado pelo grande crítico Adriano Aprà.

 

No Centro Sperimentale, eu continuava esnobando as aulas e vendo tudo na filmoteca do Montessanti. Silvano Agosti me diz que eu devia era viajar de carona tipo auto-stop, muito na moda, e que o Centro só podia me atrapalhar.

 

Joaquim Pedro está em Paris. Veio montar e mixar Couro de gato, que filmou no Rio, com Mário Carneiro na câmera e na luz. Estava em negociação com Sacha Gordini, o produtor de Orfeu do carnaval, de Marcel Camus.

 

Vinícius de Moraes tinha me dito que Gordini era péssimo caráter. Fiquei grilado. Joaquim Pedro me manda uma carta de Paris dizendo que Arraial do Cabo vai ser apresentado lá, no Musée de L´Homme. Este museu tinha a direção do genial cineasta Jean Rouch, autor de vários filmes, em cinema direto, considerados revolucionários. O Joaquim, com aquela dicção pior que a minha, tinha dado seu nome errado, mas adorei o artigo que saiu a respeito. Começava assim meus caminhos na Europa, chamado de Saracelli em Bilbao e Guarrasini em Paris. Fiquei besta com o nível da crítica – os críticos franceses sacam tudo! O falecido André Bazin fez escola. Quem será que assinou a crítica?

 

Traduzo, aqui, a crítica.

 

A última sessão do filme etnográfico do Museu do Homem não nos trouxe nenhuma surpresa, mas mostrou muito charme.

O charme da vida dos pescadores brasileiros. Um charme até demasiadamente cinematográfico.

Há também violência nas imagens do curta-metragem de Guarrasini, Arraial do Cabo. Uma força na percepção dos objetos, das cabeças e dos momentos que faz de Pierre (Paulo) Guarrasini (Saraceni/Carneiro) um dos mais evidentes temperamentos de cineasta entrevistos nos últimos tempos. Há tanta pobreza e poesia brutal nesse documentário brasileiro quanto na metade da obra de Buñuel.

Tudo é imóvel entre os seres e tudo é móvel nos objetos.

É o contrário do “grande cinema”, os homens dessa praia de pescadores felizes que lutam contra a fábrica de conserva são estáticos – os olhos não se movimentam. Só as grandes barcas se mexem. E os peixes que vão morrer. Tudo isso se expressa sem nenhuma palavra.

Há algo de John Ford no temperamento de Guarrasini, mas um John Ford que nem mesmo necessita de iluminação para sublinhar a revolta contida na mudez das faces.

Trata-se de um verdadeiro cineasta.

Gostaríamos de assistir a um filme de longa-metragem desse poeta do choque de câmera. Infelizmente Arraial do Cabo só dura vinte minutos, tendo uma história que daria muito mais.

YL

 

Eis a carta de Joaquim Pedro:

 

Paris, 22/3/61

Paulo querido,

Este artigo sensacional saiu no Combat três dias depois no Museu do Homem. Quase uma semana depois é que a Gilda Cesário Alvim me falou sobre ele. Comprei cinco exemplares do jornal. Mandei um pro Mário, dei dois pro Paulo/Carneiro, fiquei com um. Os nomes dos realizadores saíram errados, um pouco por minha culpa: a secretária do Museu do Homem tomou nota deles me ouvindo ditar ao telefone. O Paulo Carneiro já escreveu uma carta para o autor do artigo fazendo as correções necessárias.

Escrevi também para o Mário a propósito da história da versão do Arraial financiada pela mulher do Tele-Cine. Na carta para ele, eu já tinha mudado de opinião. Passei a achar melhor que ele mandasse logo os negativos, som e imagem e deixasse a versão aos cuidados da mulher. Foi a mesma consulta que fiz a você. Continuo esperando a resposta dos dois. Otávio não falou mais nada com a mulher. Está esperando para ver o que vocês decidem.

O Couro de gato continua no mesmo impasse. Paulim, o distribuidor, disse que entregou a cópia a um produtor de filmes para tevê, que seira a pessoa diretamente interessada na compra. O homem não dá jeito de se manifestar e guarda a cópia há mais de três semanas. Paulim não diz quem é o cara. Com uns trezentos dólares que eu podia arranjar emprestados, pensei que fosse possível terminar o filme. Quase morri de susto quando consegui fazer um orçamento. Dá cerca de setecentos dólares, imagine! Se apesar de tudo eu ainda conseguir acabar o filme, talvez tente leva-lo ao festival de Sta. Margherita. Você, de qualquer modo, não deve perder a oportunidade. O diretor do festival chama-se Amico e está em Columbianum, Gênova. Foi o Fulchignoni quem me deu essa informação. Diz ele que o festival é uma grande oportunidade para vender os filmes e contratar outros. Dá um abraço grande no Gustavo e recebe outro. Todas as mulheres conhecidas estão partindo para Roma, em tua busca. A última que anunciou esse propósito foi a Neusa, do Embaixador. Minha miséria está ficando dramática. O Itamarati não paga o auxílio há três meses.

Escreva!

Joaquim.

 


Nada mal começar com uma crítica daquela. Nunca consegui saber quem assinava Y.L. Procurei, mas não achei.

 

Se o meu prestígio no Rosati já era alto, com esta crítica aumentou muito. No Centro, a crítica veio confirmar o que tinham achado. Ficaram contentes.

 

Muitas cartas do Rio e da Bahia dando parabéns. Otávio de Faria traduziu a crítica no Jornal do Commercio. Mário Carneiro brincava: Pablo Saracelli em Bilbao e, em Paris, onde não se falava noutra coisa, era Pierre Guarrasini.

 

Maldito nome, pensei, desde menino não acertam o nome! Aqui em Roma é fácil, no telefone só preciso falar uma vez. Eles sabem quem é e como é. No Brasil, me confundem o nome com o circo Sarrazzani.


Nino Franchina saiu mostrando a crítica no Rosati, fui cumprimentado por Antonioni, Moravia e Pasolini.

 

A turma continuava acesa, depois das sessões íamos discutir os filmes vistos, cada um com uma garrafa de vinho tinto no Campidoglio, harmonia de Michalengelo, com a estátua equestre do Buonarroti no meio. Lua, porre e beleza.

 

Guido: Guarda la luce.

Marco: Che cretina, non sà um saco, coisa è la Transcendencia?

Sandro: Hai visto, che plano. Belo si!

Gustavo: Mi hai fato paura. Sembrava uma scema.

Paulo: Non c´è piu vino. Cosa facciamo?

Bernardo: Me ne vado. Lavoro domani.

Marco: Como é Pier Paulo trabalhando?

Bernardo: Geniale. Tem muita violência e é lírico o tempo todo.

Gustavo: Ele é muito masoca?

Paulo: Eu não confiaria nisso.

Bernardo: Geniale, como Godard.

Marco: Antonioni.

Paulo: Losey.

Gustavo: Nicholas Ray.

Sandro: Misoguchi.

Guido: Raul Cotard. Mário Carneiro.

Paulo: Gláuber Rocha.

Sandro: John Mekas.

 

Mas com Arraial do Cabo tudo parecia um milagre. Sem saber que o filme tinha participado do Festival de Florença, fui comunicado do mesmo e da entrega do prêmio numa estrondosa festa num palácio romano. Festival del Popolo, segundo prêmio de Arraial. Recepção requintadíssima, fomos todos de terno e gravata. Muita gente, champanhe, caviar, muitos jornalistas, a RAI, tevê italiana. Embaixada do Brasil presente, com o embaixador Gouthier brilhando. Eu poderia ver, um pouco afastada, Regina Castelo Branco. Teria sido ela que mandou o filme para Florença?

 

Na hora de falarem, do prêmio do Arraial e me chamarem para receber a taça, meu nome, Saraceni saiu corretamente pronunciado, e me levantei. Mas Gouthier não ia perder uma oportunidade dessas, me deu uma leva empurrada e foi recebe-lo diante de mil fotos espocando. Era como se o prêmio fosse dele, só dele. Adorei o gesto, e só depois, quando nossas mesas ficaram sem champanhe, é que fui pedir meu prêmio ao Gouthier, uma bela taça que ele levava debaixo do braço ou expunha para todos. Com ela em nosso poder, choveu champanhe em nossa mesa.


Vários jornais e revistas publicaram as fotos de Gouthier recebendo o prêmio de Arraial. Com a gente na premiação, um bando de lindas mulheres. Margarida, Nili Arutai, Kristina, Virma Onorato. Foi uma bela festa e um porre monumental.

 

Fomos dormir de porre, sem saber quem com quem. Estávamos afinados com os novos tempos, os anos 60. A taça florentina nunca me abandonou, até hoje serve de jarra para as lindas flores do campo de Ana Maria.


Eu e Gustavo aproveitamos a Semana Santa e fomos a Paris. De trem, evidentemente. Na Gare de Lyon, Gustavo tremia, emocionado. Dizia: “Volto, depois de um longo exílio”. Era a primeira vez que visitávamos Paris. Pela primeira vez me sinto no estrangeiro, falando francês – vou brigando com a língua, mas vou falando; já Gustavo estava em casa. Ficamos na bela residência do embaixador Paulo Carneiro. Encontramos Joaquim Pedro – que alegria! Quincas estava lindo, feliz, e se deu bem com Gustavo. Reencontro primo Otávio, primo de Mário, Otávio Lins, companheiro de Liliane Lacerda de Meneses. Descendo as escadarias, Neusa Azambuja, que conheci junto de Albino Pinheiro e Norma Rego. Neusa era uma bela mulher, mas Otávio, vi logo, lhe servia de fiel escudeiro. Fiquei na minha. Paulo Carneiro logo desceu para nos saudar. Enorme e encantador. Era bem o pai de Mário. Longos papos. Paulo estava feliz de receber os amigos de Mariozinho e Titise. Fomos tratados com o maior carinho.

 

Neusa me diz que Norma Rego vai se casar, na sinagoga, com Leon Hirszman. Brindamos com o beaujolais do ano e rimos muito, falando do valoroso Albino.

 

Otávio Lins estava trabalhando na Unesco com o tio e conhecia os lugares quentes de Paris. A conversa do Paulo Carneiro era definitiva, em meia hora ninguém queria saber de outra coise senão se encantar com toda aquela sedução e saber. Quem tivesse mulher bonita era melhor ficar longe. O Embaixador era demais. As mãos imensas em braços enormes se movimentavam perigosamente à volta dos decotes femininos, com uma fala irresistível. Ficamos boquiabertos com sua juventude e cultura. Era falante, alegre, otimista e se interessava por tudo. Depois chegou Bombom, baiana e amiga de Paulo, hilária e inteligente, logo se enturmou conosco. A tensão ficou por conta de um tio de Mário que queria saber quem era filho de quem. Joaquim Pedro passou com louvor, filho de Rodrigo de Melo Franco. Fiquei pensando em papai, me sentia orgulhoso dele, mas não saberia como retratar meu pai para o tio de Mário. Era uma situação embaraçosa. Mas Gustavo cortou o papo: - Não sou filho de ninguém.

 

Toda família de Mário, por parte de pai e mãe, era positivista. E Paulo mantinha o Museu Augusto Comte, com dedicação e competência, Paris, ao lado da Sorbonne.

 

Bombom e Otávio nos levam ao Café de Flore. Genial bar, bebi de tudo, misturando tudo, querendo ficar logo de porre e ansioso por ouvir as novidades de Joaquim Pedro. Ele falou da Nouvelle Vague, da crítica francesa, de política de Brasil e França, dos amigos, do CPC, das filmagens de Couro de gato, rimos muito. Eu quis saber onde Sartre costumava sentar. Gustavo achou que foi uma gafe. Caguei. Bombom e Neusa estavam a fim, mas Otávio policiava Neusa. Falei muito da Bahia e do Gláuber, li para Joaquim Pedro sua última carta. As cartas de Gláuber Rocha serão transcritas respeitando-se o seu estilo quanto às caixas altas e baixas:

 

meu querido césar

tudo bem em matéria de barravento que já está sendo rodado com Paulinho na direção. paulinho vai bem e animado. bahia de todos os santos não ficou pronto em tempo para a exibição em Veneza. mas trigueirinho vai à europa e se encontrará com você em roma. o filme é uma beleza, do ponto de vista político, formal, comercial. vai ser um sucesso total. cidade ameaçada é outro grande filme e a primeira missa de lima barreto também. Estamos recriando nosso cinema e você precisa voltar para ser soldado nesta luta. não quero que você fique mais tempo na itália. escrevi um artigo no jornal do brasil sobre arraial do cabo. espero que Mário tenha lhe enviado. estou de firma produtora funcionando e barravento custa quatro milhões. para o ano poderemos produzir teu filme no amazonas. vá escrevendo logo o esboço do roteiro e mande-me para um estudo prévio. vou ser produtor e só realizarei a/A ira de Deus/por estes anos. você não deve se demorar porque a temporal da vida é pouca. precisas FAZER FILMES aqui no Brasil dentro de nossa luta: joaquim, eu, paulino, você, miguel, marcos, leon e os outros novos que surgirão. você é um sacana que escreve para todo o mundo menos para mim que sou o amigo que mais se preocupa com você. e para brutus também que lhe ama tanto. tenho uma filha linda de nome paloma. e tenho saudades de você, com quem estive tão ligado em todos meus problemas íntimos. barravento fica pronto em abril e vai ao festival de Berlim, para o ano, em junho. Escreva. abraços, Gláuber.

você tem mais novidades para contar...

 

Falei com Quincas e Gustavo que Gláuber era genial, mas estava ansioso demais para fazer o nosso movimento. A Bahia está fervendo e pronta. Quincas reclamou das interferências ideológicas, o movimento tem que ser autoral, eu e Gustavo concordamos. Cada um faz o que quer. Somos todos comunas, mas fiéis ao comunista de Maiakovski: somos artistas. O roteiro da Amazônia era um desabafo da viagem. “Muita miséria, saiu muito radical”, falei quase me desculpando. Não acredito nesses filmes de que fala Gláuber. Barravento é outra coisa. Pode ser o primeiro longa do movimento.

 

Fomos para o La Coupole. Durante todos os dias que ficamos em Paris, fomos ao Flore e ao La Coupole. Depois íamos as boates. Dançávamos muito. (...)

 

Joaquim Pedro me falou pela primeira vez de Ruy Guerra, que tinha ido para o Brasil com Vanja Orico filmar um livro do pai dela sobre a lenda do boto. Falou da montagem de Couro de gato, de Sacha Gordini que queria agradar a Paulo Carneiro para filmar Os sertões, de Euclides da Cunha. Falei do que Vinícius me contara, do mau-caratismo do Gordini, estava com medo que ele fosse atrapalhar o projeto Ira de Deus do Gláuber, mas não estava querendo prejudicar Quincas, Couro de gato é fundamental. Arraial e Couro é que vão iniciar o movimento brasileiro nessa nova bossa inserida na nova onda cinematográfica internacional.

 

Gustavo- Estás fazendo profecias?

 

Paulo- Não, tô querendo ouvir João Gilberto cantando Noel Rosa.

 

Eu e Quincas gozamos o gosto de Gustavo: Francisco Alves e Juca Chaves. Sacaneamos o samba paulista.

 

No Flore, influenciados por Sartre e Simone de Beauvoir, ficamos existencialistas. Lembramos dos nossos tempos de cineclube da Filosofia. De dois professores, marido e mulher. O professor comia as alunas e a professora comia os alunos. Pintou ciúmes, acabaram se matando. Nélson Rodrigues e Lupicínio Rodrigues juntos dão filmes geniais. Quincas ria com um prazer enorme.

 

No outro dia, Liliane Pogessi me envia cartas de Rio/Roma/Paris.

 

Carta de Gláuber – fodeu tudo. Gláuber briga com Luís Paulino e assume a direção de Barravento. Tudo por causa do filme(...) do Nélson Pereira dos Santos. Joaquim Pedro – a tese de Nélson só servem para os outros. Sônia, atriz-pivô da situação e dos ciúmes de Luís Paulino, foi substituída.

 

Gláuber está puto também com Ruy Guerra, que está plagiando seu trabalho fazendo um filme com a atriz Irma Álvarez, Cavalo de Oxumaré. Os dois quase saem na porrada.

 

Quincas me diz que eu sou capaz de sacrificar minha mãe para fazer um filme. Respondo, puto “Adoro sua mãe, dona Graciema, mas Mariá, minha mãe, é a minha paixão”.

 

Joaquim e Gustavo achavam que devíamos ficar na Europa mais um ano ou dois. No Brasil não vai acontecer nada agora. Eu achava que não ia demorar tanto.


Otávio Lins chega nos fez um ótimo convite. Assistir ao trio de Bud Powell. Fomos, era uma boate na Étoîle, perto do cinema Mac-Mahon, onde eu tinha visto um filme de Fritz Lang na véspera. Bud Powell no piano, Pierre Michelot no baixo, e Kenn Clark na bateria. Som de primeira. Em roma, assisti a um genial concerto de Thellonius Monk. O trio de Bud Powell estava todo drogadão e mantinham entre si uma ligação, que era de se imaginar um filme em que toda a equipe estivesse ligada assim. Som da pesada, que nos encheu a alma. Conto que no Lamas, quando eu e o Ghigia chegávamos com os discos de jazz, levávamos a maior gozação dos comunistas liderados por Manduca, dono do pedaço, das putas da rua Alice e do Catete. Quincas ria e eu me deliciava com seu riso intenso. Falávamos de Charlie Parker, de Miles David, Coleman Hawkins, Ella Fitzgerald, Sara Vaughan, Billie Holiday, João Gilberto, Tom Jobim, Cartola, com o maior entusiasmo.

 

Joaquim diz que sua prima Heloísa está chegando a Paris. Fomos ao seu encontro, era uma linda graça mineiro-carioca, ficamos todos a fim dela. As gatas do Rio nos faziam falta. A disputa era intensa. Numa noite de luar, caminhando pelo Sena, Gustavo percebeu um olhar mais forte de Heloísa para mim e teatralmente quis se jogar no Sena, nas águas geladas do rio. Desceu correndo e de brincadeira, mas tropeçou e quase caiu. Corremos para salvá-lo. Tudo bem, apenas torceu o pé. Eu apertei a mão de Helô, ela gostou. (Aproveitando que Gustavo dormia, olhei certa vez para seus pés e, sem querer, dei com aquele pé decepado: ele tinha perdido um dedo na brincadeira com elevador, na infância. Eu nunca tinha tido coragem de vê-lo. Fiquei impressionado.) Por causa do tombo, Gustavo continuou seus dias de Paris apoiado numa bengala emprestada de Paulo Carneiro; estava chique, parecia Oscar Wilde.

 

Meu namoro com Heloísa tomou dimensões que eu não esperava. Ela queria namoro sério e Joaquim ficava de olho. Ele sabia que eu tinha Ana Letícia, Helena Costa e, em Roma, a dinamarquesa Nili. Queria me empurrar a Neusa, mas havia o Otávio que não me deixava chegar perto.


A despedida foi no Gare de Lyon. Saímos com muitas saudades de Paris. Prometemos nos rever em Roma, ou Paris, ou Rio, ou qualquer parte do mundo. Paulo Carneiro era gentleman total. Com ele, o Brasil estava bem servido. Beijos em Heloísa, Bombom e Neusa; Otávio se despediu falando de Lodos das ruas de Otávio de Faria. Os personagens da “Tragédia Burguesa” eram nossos amigos ou inimigos. Falamos também de Liliane e da sua beleza. E de Mário Carneiro, primo querido de Otávio. Pérola rara. Não se sabe se é santo ou se é artista. Deve ser os dois. E de Goeldi e Ana Letícia. Saudades, não vejo a hora de voltar para o Brasil

 

Eu e Gustavo ficamos sozinhos no trem. A viagem fora saborosa.


Com Heloísa, o namoro por carta ficou intenso e ela foi a Roma me visitar. Namoramos muito até ela partir para o Rio. Heloísa era um amor. Foi procurar minha mãe e minha irmã Norma. Ficaram amigas e muito tristes quando o namoro não deu certo. Gostei de Joaquim ter ficado amigo de Gustavo. E que belo encontro com ele, vimos o copião de Couro de gato, filme genial que mostra tudo que Quincas poderá fazer num longa. E nossas conversas sobre as cartas de Leon e Marcos Faria. O Centro Popular de Cultura, com Jânio Quadros e Lacerda, não vai dar. Mas o Teatro de Arena vai dar frutos.

 

O quente mesmo era o artigo de Paulo Emílio que saiu no Estadão: dá um panorama exato e preciso da situação colonial do nosso mercado cinematográfico. (Meu Deus, que sofrimento. São 94 anos de burrice e sofrimento, e é tão fácil resolver...Se houvesse uma luz nesses nossos políticos...Basta vontade política. É aí que está a possibilidade da nossa volta por cima. Nossa identidade, nossa cultura). Como é possível não dar atenção a um intelectual da altura de Paulo Emílio? Gustavo trabalhou com ele na Cinemateca Brasileira e escreveu uma carta me apresentando, Paulo Emílio me escreveu uma carta didática, com uma sensível inteligência de grande mestre – dissertava, deliciosamente, sobre meu P e meu C de Paulo César. Carta primorosa e cheia de toques. Que eu saquei e guardei para toda vida.

 

O artigo foi publicado em livro por Carlos Augusto Calil, na Embrafilme. O artigo é de 1960, e em 1992 estamos em situação pior. Paulo Emílio ali nos dava a certeza de que o nosso movimento tinha quer ser revolucionário, mudar tudo.

 

Lembro que, em Paris, Joaquim Pedro nos levou ao apartamento do adido cultural do Brasil – Francisco Luís de Almeida Sales -, a melhor coisa que Jânio fez. Com ele a cultura, a arte, a afetividade, estavam bem representadas. Até brinquei que Paris, com Paulo Carneiro e Almeida Sales, era o melhor lugar do Brasil. Almeida falou que Rudá de Andrade escrevera, dizendo que o cineasta italiano Gianni Amico estava em São Paulo, escolhendo os filmes brasileiros que iriam ao Festival de Santa Margherita, onde haveria uma retrospectiva do cinema brasileiro. Vibramos, porque iríamos ver Ganga bruta de Humberto Mauro.

 

Era o cúmulo, ver, finalmente, uma das pérolas do nosso cinema mudo no estrangeiro. E quando veremos Limite? – Vai depender de Saulo Pereira de Melo.

 

Nos bares e cafés parisienses ouvíamos, babando, Almeida Sales. Seu amor pelo Brasil não tinha fronteiras. E a graça com quer emitia suas opiniões tinha um sabor encantado.

 

Liliane Pogessi, nossa proprietária e patroa, ficou radiante com a nossa chegada. Ela estava com saudades, fomos matar as saudades na cama. Era fogosa e ainda não se habituara à condição livre de viúva. Ficava muito culpada.

 

Geraldo Magalhães traz notícias novas da embaixada brasileira. Chegou a Roma a família Pinto. Fui encontra-los, me diverti muito com Mário Pinto, namorei um pouco Marília com saudades de Mário. Apresentei Maria Lúcia a Gustavo. As duas estavam lindas. Tremi quando elas resolveram conhecer o Rosati. Eu sabia que todos iam se apaixonar por elas. Fiquei com ciúmes.


Vi logo que Marília ia ser uma grande figurinista, fiquei observando a atenção com que ela viu Ivan, o Terrível de Eisenstein, num cinema em Florença. Não perdeu um só detalhe, se emocionando muito. Eu também.

 

Anos depois eu transmitira essa emoção no filme Capitu, baseado na obra em que o genial Machado de Assis nos ensina a confusão dos nossos sentimentos. Bentinho ama Sancha, que ama Escobar, que ama Capitu, que ama Bentinho, que ama Escobar.

 

Drummond já tinha percebido isso também. Marília faz em Capitu o papel de Sacha.


Só acredito na poesia que sai do real, onde até o maior desvario tem o pé na genialidade. No sentimento do real. Para abstrair tem que realizar.

 

Mas o sentimento é cheio de mistérios e enigmas. É outra forma de fazer o suspense de Hitchcock, a espera rosseliniana, grandes mestres cristãos, e o engima de Capitu nos conduz também por esse caminho.

 

Mais tarde chega em Roma a encantadora Adail. O Rosati aí pegou fogo. Enlouqueceu de vez: o trio Marília, Maria Luiza e Adail era um pouco forte para os romanos. Uma grande seleção carioca. Conheci Adail na casa de Lili Costa, junto com Helena. O China e o Donald eram apaixonados por ela, que tinha que escolher entre o arquiteto e o empresário economista. Adail fez muito sucesso em Roma.

 

No Centro Sperimentale iam começar as provas finais, com os testes dos alunos do segundo ano. Fui convidado para ser assistente de dois filmes. O do norueguês Paul Bang Hansen e da italiana Liliana Cavani.

 

Nesse tempo, o namoro com Nili Arutai estava intenso mas eu estava apaixonado por um visor que enquadrava em cinemascope, ficava paquerando as atrizes, as paisagens, a realidade – o homem em cinemascope. Como fazer um filme intimista em cinemascope? Nili Arutai, mistura escandinava de Dreyer e a perdição turca, vou te levar num armarinho do Saara, no Rio e cobrir teu corpo branco e nu com fitas encarnadas e verdes. Turca de verdade, ela achava que eu era selvagem e louco. Vou à embaixada do Brasil rever os amigos e ler os jornais do Rio. Dou de cara com a notícia da morte de Goledi. Oswald Goeldi morreu. Puta que pariu. Porrada no estômago, quase caiu escada abaixo. O Palácio Doria Pamphili me pareceu aterrador, fugi dali, me escondi na Cucina do Luigi e chorei paca. A notícia dizia que Goledi tinha morrido sozinho em seu ateliê. Sacanagem. Ana Letícia deve estar sofrendo. Que artista genial. Suas gravuras continuam sendo a coisa mais forte que vi. Desesperadas e humanas. Um clima que falava da fragilidade do ser humano, de sua miséria. Tudo com rara dignidade e beleza.


Fiquei no meu quarto da Marco Valerio Corvo, numa terrível solidão e tristeza. Sentia-me como se estivesse muito doente. Não me levantei da cama por uma semana, por desgosto. Foi neste período que recebi carta da atriz Edla van Steen, me sugerindo Luchino Visconti para dirigir a Crônica da casa assinada. Os produtores eram dois gêmeos Taylor, Carlos e Amaro, o mesmo Carlos que comprou as latas do negativo de Caminhos. Eles eram riquíssimos, ou foram, e depois perderam muito dinheiro. Edla me convidava para ser assistente de Visconti.

 

Respondi dizendo que não ia falar de maneira alguma com Visconti, porque Lúcio Cardoso tinha me prometido o filme do seu livro. “Sou eu que vou fazer”. Joguei. Achava que estava com a bola cheia, e eles não. Por que os Taylor? E por que Lúcio Cardoso? Era muito destino junto...Quem, falou da Crônica com os Taylor fui eu. Eu quero fazer A casa assassinada.

 

Uma semana depois, quando já estava de pé, graças aos cuidados dos amigos e amigas, voltando a frequentar o Centro, recebo a resposta da Edla: “Venha para o Brasil para dirigir o filme”. Já tinha escolhido o elenco e a equipe. Achei meio irresponsável. O filme que eu quero fazer não começa enquanto o diretor não chega. Resolvi fazer “doce”, custei a responder. Mas vi notícias nos jornais brasileiros, li cartas que chegavam dos amigos e da família anunciando minha chegada ao Rio para dirigir a Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, com Sérgio Cardoso, Edla van Steen, e muitos nomes de atores de teatro, do TBC.

 

Eu gostaria que tudo fosse verdade, mas não acreditei muito. Edla me dizia que o Lúcio tinha feito um roteiro, mas era muito romântico e que por isso ela havia encomendado um novo roteiro ao Millôr Fernandes.

 

Tudo isso era uma loucura para mim. Não é o cinema que me interessa. Que poder tem esta nova Carmen Santos – a que fez furor como produtora, atriz e diretora no cinema brasileiro dos anos 30 e 40?


Como eu estava muito na dúvida, ia adiando o problema. Vamos ver o que acontece. Vamos dar um tempo para a bola da Edla baixar.

 

Enquanto relia a Crônica e esperava boas notícias, eu ia jogando com o tempo. Ele é bom conselheiro, vamos esperar o peixe. O Guia, de Arraial do Cabo, nos dirá quando partir. Chegavam cartas do Mário e do Sérgio esculhambando Lúcio Cardoso. Carta do Gláuber me pedindo cautela e me informando mil coisas. Eis a carta de Gláuber:

 

paulo césar

vocês não escrevem. por quê? já não tenho mais notícias para dar a não ser que atrasamos por falta de dinheiro e que os filmes só estarão prontos lá pra julho ou agosto, o que modifica os planos todos. isto é o diabo do azar e da frustração nacionais.

Leio nos jornais que você será o diretor de “A Casa Assassinada”, de Lúcio Cardoso e acho que isto, apesar da temática, é bom. O melhor é você vir logo fazer uma fita longa. Aqui no Brasil começa a repercutir o sucesso de “Arraial do Cabo”, felizmente. Sou amigo de Edla Van Steen e fiz uma carta a ela apoiando seu nome. Vamos partir para “A Casa Assassinada”, pois, leio também que Sérgio Cardoso será ator e seu assistente de direção, o que achei mau, pois como você sabe, gente de teatro como assistente pode atrapalhar tudo. a desgraça do Brasil são estes filmes com assistentes vedetes;

Quem fez o roteiro? A adaptação? O próprio Lúcio? Cuidado com os diálogos excessivamente literários, chatos e discursivos. Peça um novo diálogo, em língua de gente que todo mundo entenda. Assim o resultado final vai lhe prejudicar. Com um bom diálogo que não encha o espectador o filme pode fazer sucesso. Mas este negócio de incesto é meio deslocado no cinema brasileiro. Em todo caso, acho que você deve topar, pois e uma maneira de se lançar logo num “longa”, o que pode lhe dar logo independência. Conte comigo para ajuda-lo no que for possível. Mesmo assim você continua em minhas metas. Trabalharei para que você faça um “longa” logo, logo, se este negócio da Edla Van Steen não der certo. Mas estão fazendo publicidade com o seu nome. O diretor Saraceni, dizem, e o público pensa que é um italiano...

Diga a Gustavo que quero um artigo sobre o novo Antonioni. L´Aventura e La Notte, para o Jornal do Brasil. É preciso discutir o caso aqui. Não vi não sei. Só ouço elogios. Mande o Gustavo me enviar o artigo pessoalmente. Mande carta e tudo o que mais para a Bahia que a Helena me envia para o Rio. Assim não haverá mais confusão de endereço, pois vou ficar incerto entre Rio-São Paulo e Bahia. Mas tudo pode vir para a Bahia. Escrevam, por favor, seus sacanas.

E Joaquim? Por onde anda? Outro dia recebi carta de Marcos dizendo que “apesar de tudo eu ainda era um dos nossos”. Por que apesar de tudo? Nunca fiz nada com eles, pelo contrário, sempre me preocupei com todos. Respondi pra ele que não havia nada. E “Couro de Gato”? Por que Joaquim não me escreve? Será que ele pretende voltar ao Brasil? Receberam minhas reportagens, do Cruzeiro, com sugestões?

Este meu entusiasmo é uma batalha, pois no fundo o meu desespero permanece o mesmo. Você sabe bem, me conhece demais. Ou será que não conhece? Se eu estivesse pelo menos uma hora com você lhe diria tanta coisa, ia lhe confessar todo o acontecido, desde que lhe vi pela última vez. E a Ana Letícia? Como vai? Continuam? Romperam? Alguma italiana no papo? Você bem que podia se casar com a BB e trazê-la pra um filme aqui com a gente...Tive uma briga violenta com o Francis por causa do Martim. É um filho da puta, teu amigo Francis. Fiz dois artigos esculhambando com ele no Jornal do Brasil. Estou em luta com muita gente. Vou terminar dando tiro no Rio e São Paulo. Você sabe que tenho sangue de cangaceiro.

Escrevi um artigo negando o cinema. Não acredito no cinema mas não posso viver sem o cinema. Acho que devemos fazer a revolução. Cuba é um acontecimento que me levou às ruas, me deixou sem dormir. Precisamos fazer a nossa aqui. Não se esqueça de seu país, veja se politiza o Gustavo. Cuba é o máximo, eles estão construindo uma civilização nova no coração do capitalismo. São machos, raçudos, jovens geniais.

Estão fazendo um novo cinema, possuem uma grande revista, vários filmes longos e curtos. Estou articulando com eles um congresso latino-americano de cinema independente. Vamos agir em bloco, fazendo política. Agora, neste momento, não acredito nada à palavra arte neste país subdesenvolvido. Precisamos quebrar tudo.

Do contrário eu me suicido.

Estou em processo para isso. Jamais serei um reacionário, um alienado, comprometido com a corrupção, o capitalismo, a escravidão. Creia-me, com sinceridade.

A)  Ontem quase me suicido;

B)   Hoje estou melhor, mas dentro de algumas horas receberei o impacto da morte novamente;

C)   Tenho um problema fundamental. Não posso dizer por carta.

Escreva, escreva, escreva.

Gláuber.

 

Vou para casa e me fecho no quarto, me sinto doente, uma grande depressão. Recebo carta de Otávio Lins com duas crônicas sobre a morte de Goeldi escritas por dois dos maiores poetas do Brasil: Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.

 

Eu já conhecia bem o Gláuber e acreditava em tudo que ele me dizia, pois era verdade. Cheio de contradições, querendo dirigir tudo, as pessoas e os acontecimentos. Era um grande revolucionário enlouquecido de sonho e loucura. Ele tinha uma santa indignação e carregava essa bandeira como se empunhasse um punhal. Já tinha planejado tudo, agora é montar no cavalo real e seguir em frente. Era entusiasmante, com uma fé de fazer inveja.

 

Foram chegando várias cartas de Joaquim Pedro, de Paris. Lutando para acabar Couro de gato e conduzindo as rédeas do movimento, se ligando com tudo que estava acontecendo no Brasil. Era uma conspiração. Bahia-São Paulo- Rio, Roma, Paris. Eis as cartas de Joaquim:

 

Paris, 18/4/61

Paulo, meu irmão, isso aqui é um bilhetinho rápido e muito urgente. Guido chegou e me procurou. Ele não está muito bem informado, mas enfim o que existe é o seguinte. Há duas vagas para cineastas brasileiros no festival de Praga, que é uma jornada de cinema para os trabalhadores. Não sei até onde isso restringe a concorrência, mas de qualquer jeito tanto o Arraial quanto Couro de Gato se encaixam na história. Mas o Couro não está pronto. Aquele produtor barbudo, o Paulin, me pediu no fim para aumentar o filme até 20 minutos, não sei se já te contei. Entrei numa fossa danada, até que o Sacha Gordini, interessado em agradar o Paulo Carneiro por causa do seu projeto de filmar Os Sertões, de Euclides, se ofereceu para me ajudar. Mostrei a ele o Arraial e a cópia muda do Couro. O sacana praticamente não me disse nada de objetivo, nem fez apreciação nenhuma, apesar de eu ter puxado por isso. Consegui apenas ouvir que os filmes eram interessantes, feitos com uma visível carência de recursos, que o Couro ia bem na segunda parte, mas precisava ser remontado na primeira, e que ele me apresentaria à montadora que dentro de dez dias deve iniciar o trabalho final de sincronização do Le tout pour le tout, para que eu terminasse meu filme aproveitando as obras desse. Não sei se isso vai dar certo, mas de qualquer jeito é uma chance ótima de escapar do círculo vicioso e ruinoso em que eu tinha me metido. Se tudo correr bem, talvez o Couro fique pronto a tempo de participar do festival de Sta. Margherita. Continuo achando o filme muito fraco, mas a necessidade de vende-lo impõe o sacrifício da vaidade nossa. Será que o Gustavo pode me mandar informações sobre Sta. Margherita?

Mas o que importa decidir já e correndo é o negócio de Praga. Resolvi com o Guido que o melhor era você ir pessoalmente acompanhar o Arraial. O 2º cineasta deve ser homem de longa-metragem, talvez o Gláuber. Pra mim não dá jeito, porque o filme inscrito deve seguir logo. Segundo o Guido, há o problema da versão que precisa ser feita a tempo, mas como os negativos do Arraial devem ainda demorar para chegar a Paris, acho melhor – e o Guido também – mandar logo uma cópia positiva. Posso entregar a ele essa que está aqui? Você tem outra 35mm em Roma? De qualquer jeito as cópias não podem ir desacompanhadas, de modo que, com a margem necessária de antecedência que eles impõem, parece melhor entregar essa cópia daqui ao Guido. Se eles quiserem comprar e distribuir o filme, você assa por Paris na hora de seguir para Praga e leva o negativo. Escreva depressa decidindo, porque o Guido parte na próxima semana. Um abraço grande para você e Gustavo de Joaquim.

P.S. Voc|ês, que que pretendem fazer em relação a Cuba? Vamos?

 

Paris, 4/5/61

Paulo e Gustavo, excelentes caracteres,

Á carta de vocês foi ótima. Na situação em que estou aqui em Paris, acho que só mesmo uma boa cachaça podia ter me levantado o moral como ela pôde. As coisas vão de mal a pior.

Guido Araújo voltou para Praga antes que vocês respondessem à minha carta última. Ele estava aflito por causa da noiva, que tinha ido para Havana. Poucos dias antes da partida do Guido, a mulher do Tecinex, sabendo que o som do Arraial estava em ótico e que não havia banda internacional, decidiu rever a cópia em companhia de um técnico de som. Marcou para isso um dia posterior à data de viagem do Guido. Preferi então ficar com a cópia aqui em vez de manda-la logo para Praga, por dois motivos. Primeiro, Guido estava mal informado sobre o festival. Não sabia o prazo exato de inscrição e não sabia também de uma cópia como esta, em português e já bem machucada, seria aceita para projeção. Segundo porque o Paulo Carneiro me disse que poderia dar um jeito de enviar outra cópia ou o negativo para lá, por via diplomática. Além de tudo, achei que o negócio com a mulher do Telecinex dizendo que desistia de fazer a versão pelo fato de nós não dispomos de banda internacional e propondo a distribuição, meio a meia com a gente, de uma cópia nova com subtítulos em francês. Nós pagaríamos a cópia e eles pagariam a inscrição dos títulos. Fiquei besta com essa proposta, porque nunca acreditei que fosse possível imprimir qualquer coisa em cópia positiva. Achei também que o negócio era péssimo, no ponto de encalacramento financeiro a que se chegou. Alguém teria de adiantar o dinheiro, sem ter ideia de quanto poderia render a distribuição. Acho que nem o Mário nem D. Heloísa estão dispostos a botar mais dinheiro no fogo. Resolvi então fazer uma contraproposta, da qual ainda não tive resposta, com três alternativas. Eles pagavam a distribuição; eles nos comprariam uma cópia nova e os diretor de exibição dessa cópia por um preço que deveria cobrir as despesas de laboratório e dar negativo (cópia master) e os direitos de exploração do filme na França, por um preço mais elevado, também a ser proposto por eles.

Beatriz, irmã do Mário, vem para Paris dentro de duas ou três semanas. Pedi que ela trouxesse os negativos, som e imagem.

Depois de chegar a Praga, Guido já escreveu, atendendo aos meus apelos. Disse que a noiva está salva e adiantou mais que o diretor do festival tem o maior empenho em apresentar um filme brasileiro, seja em cópia positiva nova seja em negativo. Fiquei sem saber ainda o prazo e as perspectivas financeiras da história, porque o Guido acabou a carta no meio para ir ver a chegada do Yuri Gagarin. Vou escrever de novo a ele e perguntar tudo direito.

Couro de Gato continua inacabado. Sacha Gordini ficou de me chamar logo que a montadora dele recomeçasse a trabalhar, o que já devia ter acontecido há mais de uma semama, e até agora continua mudo, apesar de minhas frequentes cutucadas. Li um artigo, sobre o Bahia de Todos os Santos, em que ele é atacado violentamente. Acho que a coisa foi publicada no Jornal do Brasil, não me lembro direito. Possivelmente ele é mesmo o veado filho da puta que você imagina (Paulo), mas não acredito que o fato de ele fazer filmes no Brasil nos prejudique. Os benefícios, em material, formação e importação de técnicos, atração de capitais brasileiros ou estrangeiros mais importantes para serem aplicados em cinema feito no Brasil, ampliação do mercado para os filmes brasileiros (por ação indireta), compensam os malefícios: elevação do custo de produção (o que talvez seja mesmo necessário para se poder enfrentar a concorrência estrangeira) e queima dos grandes temas nossos – que eles têm mesmo um capital enorme de originalidade – nessas superproduções escrotas e sacanas de comerciante estrangeiro. As promessas dele sobre Couro de Gato só se aguentam enquanto o Paulo Carneiro lhe for de alguma ajuda, mas eu não posso pedir generosidade a ninguém, salvo os amigos. Li o argumento que um debilóide contratado por ele sacou do Euclides. É uma bosta ignominiosa. Isso é segredo, foi o Paulo Carneiro que me deu pra ler. Envenenei o espírito no Embaixador, que é pra ele tentar convencer o Gordini a fazer reescrever tudo pelo pessoal bom do Nordeste.

Indiferente às manobras desse gringo sacana, o nosso Mário, que é uma boa figura, recebeu as medalhas do Arraial, em cerimônia a que o Wladimir Murtinho compareceu. Nesse e em outro encontro posterior, Mário conseguiu da Divisão Cultural do Itamarati a encomenda de um filme, que ele talvez já tenha começado a fazer, sobre gravura brasileira. Conseguiu mais a promessa, parece que agora sendo reestudada pelo diplomata Carlos Pérez, de que o Itamarati compraria por 300 dólares, pagando adiantado, uma cópia 16 do Couro de Gato que eles pensam ser um filme artístico. Com isso e mais os 200 dólares que o Paulo Carneiro ofereceu, eu teria o grosso necessário para atacar a sonorização do filme. Como vocês veem, apesar dessas esperanças que aparecem de repente, é tudo sempre vaguíssimo e nada se resolve enquanto o tempo vai passando e minha bolsa chega ao fim, marcado para julho. Em face de tudo isso, meu bom Gustavo, desistir de ir ou mandar qualquer coisa ao festival de Sta. Margherita. Já estou cheio de andar exibindo o Manuel Bandeira, que além de tudo não pode interessar a um público estrangeiro. Não escrevi ao Amico. Vou escrever ao Paulo Emílio, qualquer dia desses, mas falando só no trivial dos meus acontecimentos europeus, e me desculpando por algumas grossuras cometidas. Fiquei dando de não poder me encontrar com vocês em Sta. Margherita, mas com dinheiro ou sem dinheiro ainda encontro vocês em Roma. Eu já estava até esquecido de que algum lugar ainda se trabalha com entusiasmo. Mesmo as complicações sexuais de que vocês se queixam me deslumbram. Desde que eu cheguei em Paris entrei num regime de masturbação física e mental igual àquele que nós vivemos juntos no começo do ano. Há quatro meses não sei o que é trabalho mesmo, meu nem dos outros, não encontro uma mulher com o mínimo de consistência no corpo, drama na alma, matéria mítica. São todas veadas ou virgens convictas. É incrível. Mas chega de lamentação. Vocês, Yuri Gagarin, FIDEL CASTRO e Gláuber Rocha me salvaram da dissolução pelo álcool. Ainda não escrevi ao Gláuber, mas não demoro. As ideias dele são inteiramente loucas, mas dão uma animação danada. Eu gostaria de saber porque diabo ele me reservou os pampas gaúchos. A Amazônia deve ter ficado pra você, Paulo, ainda se explica com aquele roteiro que você andou escrevendo aí em Roma, de parceria com um amazonense. De qualquer jeito essa distribuição de regiões não está muito legal não. Vou escrever a ele pedindo para me transferir para Minas, porque eu tenho argumento esboçado que só funciona lá.

As notícias sobre o Carlos Taylor e o Lúcio Cardoso são incríveis de tão boas. Não sei como é que você Paulo ainda se aguenta em Roma. (Esta merda de escrever carta pra vocês dois ao mesmo tempo parece que não funciona mesmo no trivial do português.) Achei ótima a ideia de nós três trabalharmos juntos no roteiro. Será que ainda dá pé? A gente podia fazer isso em Roma e discutir com eles por carta. Não posso imaginar nada de melhor agora do que uma temporada assim. É também uma experiência que eu tinha muita vontade de fazer, essa, na base da briga, do entusiasmo, das invenções e soluções geniais que a gente podia descobrir.

De qualquer modo ninguém pode voltar antes de Sta. Margherita e da chegada de Gláuber com o Barravento.

VIVA O BRASIL!

Joaquim.

 

Eram muitas as possibilidades, os sonhos, os caminhos e as veredas – viver é muito perigoso.

 

Fui conhecer Gianni Amico.

 

Gustavo e Bernardo me apresentaram a ele. Muito agitado, Gianni não parava de andar e falar. Estava entusiasmado com o Brasil, que conhecera através da música e o cinema brasileiros, que trazia para retrospectiva dos filmes.

 

Me falou com muito entusiasmo de Rudá de Andrade e Paulo Emílio.

 

E que São Paulo e o governo brasileiro estão trazendo uma delegação grande. Infelizmente, não viria a atriz Marlene França, por quem Gianni ficara totalmente apaixonado. Gianni era um grande bebedor de vinho. Conhecia tudo e era encantador quando falava de cinema, política e samba. Pediu-me que inscrevesse Arraial. Eu disse que o filme já tinha participado de dois festivais e ganhara prêmios. Disse-me que não fazia mal. Gianni era jovem e acreditava num cinema que a nova geração, a dos anos 60, faria. Adorava Rossellini, Antonioni e Godard, que anunciavam um novo cinema que vinha por aí.

 

Antes de partirmos para Santa Margherita, ainda fui levar Nili Arutai a Stazione Termini. Ela ia partir para Copenhague para fazer um filme. Quando voltasse, eu não estaria mais em Roma, teria voltado para o Brasil. Ela estava muito emocionada e nervosa e chorava, coisa a que não estava acostumada. Subiu ao trem. Chorava sem parar. Vi o trem partir, tive medo de que ela caísse ou se jogasse. Felizmente, o trem partiu. Voltei, caminhando pela plataforma da Stazione Termini como Montgomery Clift depois de levar o tapa de Jennifer Jones, ou James Dean nas mãos de Nicholas Ray. É incrível a identificação do cinema.

 

Fomos para Santa Margherita no carro de Sandro Franchina, que pilotava; Bernardo como co-piloto e, atrás, eu e Gutavo. Percorremos a costa de Ligúria, parando quando achávamos que a região tinha bom vinho. Todo aquele mar me dava saudade de Ipanema e das minhas preocupações: devia ou não voltar para o Brasil? Largar o Centro Sperimentale não era problema. Eu estava de saco cheio. Mas não queria voltar para o Brasil e fazer justamente o filme que adoraria fazer, pelo tema, por ser romance do Lúcio, mas não naquelas circunstâncias, com elenco e equipes formados. E com roteiros prontos, Otávio de Faria me escreveu mandando seu artigo sobre Arraial e com tradução da crítica francesa. Logo, eu estava bem no Brasil. Otávio, porém, era completamente contrário a que eu voltasse e suspendesse meus estudos para entrar numa aventura louca. As saudades e o tesão de partir para um longa eram enormes. Mas, com roteiro de Millôr Fernandes, não.

 

Foi forte a impressão ao conhecer Gianni Amico e a expectativa de ver Ganga bruta, Canto do mar e Cangaceiro juntos e, quem sabe, Bahia de Todos os Santos. E quem era o padre Arpa? Um jesuíta, presidente do Columbianum, que tinha organizado o evento e era co-roteirista de Fellini. Fora ele quem inventara o personagem do Steiner, interpretado por Alain Cuny, um intelectual católico que mata os filhos e se suicida, temendo o momento que a humanidade está passando, e seu futuro, na Dolce vita.

 

Havia também, além da retrospectiva brasileira, os filmes em competição. Arraial do Cabo competiria. Diziam que os argentinos vinham com tudo.

 

Santa Margherita era uma graça. Simpática, nos recebeu com muito carinho. A delegação brasileira era a maior de todas. Eu nunca tinha visto aquelas tantas atrizes pessoalmente, e agora ia conhece-las. Norma Bengell, Maria Della Costa, Vanja Orico, Eva Wilma, Araçari de Oliveira, Odete Lara, Aurora Duarte, e mais Alberto Ruschel e John Herbert. Muitos produtores, chefiados por Fernando de Barros. Havia ainda Alberto Cavalcanti, no júri, e convidados da Cinemateca Brasileira, Almeida Sales e Rudá de Andrade. Joaquim Pedro veio de Paris, apesar de não ter terminado ainda Couro de gato. Os argentinos se apresentaram muito bem e ganharam quase todos os prêmios. Arraial também ganhou. O prêmio de Arraial foi um espanto para a delegação brasileira, que não conhecia e nem fora ver o filme. Novaes Teixeira também foi e fez gozação com o fato.


Fernando de Barros fez um discurso pretensioso, dizendo que Jânio Quadros inauguraria o cinema brasileiro. Alberto Cavalcanti e o jornalista português Novaes Teixeira, grande figura, correspondente do Estadão na Europa, aproveitaram para chamar seu patrício, Fernando de Barros, de impostor. O tempo fechou ainda mais com a discussão e a censura que fizeram ao filme de Triguerinho Neto: Bahia de Todos os Santos.

 

Mas foi uma estadia maravilhosa. Conversas com Jean Rouch, Almeida Sales, Rudá, Cavalcanti, Torre Nilson e Simon Feldman, e diretores argentinos. Conhecer os cineastas cubanos, os latino-americanos. Problemas iguais em cada país, imperialismo de Hollywood, por exemplo, que detinha 95% do mercado.

 

Os brasileiros falavam do Geicine, que seria dirigido por Flávio Tambellini, com entusiasmo. Mas nós formamos um núcleo de resistência – Cavalcanti, eu, Joaquim, Gustavo, Geraldo Magalhães, João Batista, aquele que eu havia conhecido em Capri, com as meninas romanas, o Novaes Teixeira e mais Sandro e Bernardo Bertolucci, que faziam parte da nossa resistência ao Jânio e à UDN. Os argentinos estavam fazendo um bom cinema, mas não parecia que estivessem começando um movimento, pareciam estar no fim do movimento, sem muito fôlego. Era um surto de bons filmes, mas sem consistência. A influência de Borges era marcante. Mas não tinham fôlego.

 

Um dia saímos de barco, com muitas garrafas de vinho a bordo. Na volta, já escurecendo, o vento sumiu e tivemos que voltar a remo e rápido, pois às oito horas ia passar Ganga bruta. Chegamos mortos no cinema.

 

Ganga bruta era melhor do que esperávamos. O sucesso foi grande entre todos os que assistiram – italianos, europeus em geral e latino-americanos. Saímos de alma levada. Os argentinos ficaram bestas, O cangaceiro, Canto do mar, Ganga bruta e Arraial do Cabo acabaram fazendo a festa. Rudá e Almeida Sales ficaram alegres. Eu, com o prêmio na mão, uma taça, que guardo com carinho, esnobava as atrizes brasileiras, que tinham me esnobado antes.

 

Gianni Amico era o maior produtor cultural e organizador de festivais - genial. Eu ficava paquerando ele e sua equipe: Adriano Aprà, Bruno Torri, gente que amava o cinema e que sabia estar trabalhando num evento revolucionário. Padre Arpa flanava com grande inteligência e coragem pelo festival.

 

Magnífico, como sempre, o Grande Otelo de Rio, Zona Norte de Nélson Pereira dos Santos. Foram várias festas de encerramento. Luciano Salce, um dos diretores italianos que fizeram filmes no Brasil, deu uma festa num barco em Porto Fino. Eu tomava meu vinho na taça e o porre foi geral, passando a taça de boca em boca. Fiz as pazes com as atrizes brasileiras, mas queria beijá-las todas. Acho que Joaquim se deu bem num camarote, mas, mesmo bêbado, ele era moita. As atrizes brasileiras perderam a grande oportunidade de namorar Bernardo Bertolucci. Gustavo Dahl fez um discurso extraordinário visualizando o nosso movimento que por enquanto só tinha mostrado Arraial. Falava de Gláuber e Barravento como se o tivesse visto, o mesmo de Couro de gato.

 

Dei entrevista para Morando Morandini, grande crítico de Milão. Falava de Casa assassinada, que eu faria em cinemascope.

 

Conspiramos muito em Santa Margherita. E fizemos profissão de fé: o movimento tinha que ser democrático, revolucionário no conteúdo e na forma, e autoral. Sugar da nossa experiência com Jean Rouch e a câmera na mão, e introduzir o Nagra, gravador moderníssimo. O cinema é audiovisual Som/imagem. Joaquim Pedro disse que ia fazer um curso com os irmãos Meyselle, para aprender tudo do cinema direto. Som e imagem. Cinema-verdade, nos States.

 

Ao sairmos do iate, já noite, indo para a festa oficial de encerramento do Festival, descíamos a ladeira do Porto Fino, bebendo vinho na taça-prêmio de Arraial, quando fomos surpreendidos por centenas de vaga-lumes gigantes. Eram os paparazzi com suas máquinas infernais, fazendo mil flashes, cegando inteiramente aqueles bêbados cineastas. Eu vinha abraçado com Gianni Amico. Um grande irmão para toda a vida. A grande festa preparada por eles incluía Gino Paoli e o conjunto de Gatto Barbieri, com Don Sherry dando um show inesquecível. No final da festa, já de manhã, estourou uma porrada geral no melhor estilo John Ford. Porrada monumental, sem que ninguém soubesse quem estava brigando com quem. Porrada só superada pelo réveillon de 1967-68 na casa de Luís e Heloísa Buarque de Holanda.


Repercutiu muito bem na imprensa europeia o discurso de Gustavo e as intervenções de Joaquim Pedro e Novas Teixeira. Arraial falou por mim, por Mário. Alberto Cavalcanti me convidou para conhecer sua casa em Anacapri. Por segurança, levei João Batista. O local e a casa de Cavalcanti eram paradisíacos. Com vista para toda Capri.


Cavalcanti me falou do perigo de começar a carreira com um filme de sucesso. Ouvi com atenção e respeito. Foi muito importante para a minha vida, sempre tratei o sucesso aos pontapés.

 

De noite fomos ouvir a Traviata ao ar livre na praça principal de Anacapri. Todo o povo que assistia cantava junto com os cantores do palco. Lindo. Eu de porre e alegre, dançava a música de Verdi. Lembrando-me de Santa Marguerita. Lembrava do discurso de Gustavo, com toda a crítica internacional falando de Arraial, anunciando Couro de gato e Barravento e um movimento cinematográfico quer iria revolucionar o cinema, principalmente por ser um movimento de país subdesenvolvido, terceiro-mundista. Os críticos perguntaram pelos filmes e Gustavo respondeu: “Serão feitos ainda”. Um grande discurso profético.

 

A carta de Gláuber, que lemos juntos com Joaqum, era um prenúncio que o movimento tinha começado. Eu sabia que Arraial do Cabo tinha essa missão, mas não esperava tanto. Arraial ganharia seu terceiro prêmio, ganharia mais quatro depois. No SDJB, no Rio, Gláuber aproveita os prêmios de Arraial e lança o movimento, cujo nome, Cinema Novo, foi dado pelo crítico Ely Azeredo em junho de 1961.

 

Gláuber logo adotou a denominação e começou a divulgar. Achei tudo ótimo e fiquei feliz. Escrevi para o Mário, dando-lhe parabéns.

 

Lembro-me do sufoco que passamos no barco de volta para a praia com Rudá de timoneiro e nós remando como loucos para não perder Ganga bruta. Que filme e que diretor o Humberto Mauro! Como é que o Brasil trata assim dois cineastas como Mário Peixoto e Humberto Mauro!? Que nós nos preparássemos para enfrentar a burrice nacional...Que eles sofreram – um, exilado numa ilha, Ilha Grande, sem fazer seu segundo filme, e o outro, exilado no Ince, fazendo documentários que não são vistos, depois de ter feito, em 1931, o filme Descobrimento do Brasil, com música especial de Villa-Lobos – é de matar. E São Paulo, que cria a Vera Cruz sem eles, e ainda por cima está começando a enlouquecer Lima Barreto, por não conseguir fazer O sertanejo e, ainda, expulsando Alberto Cavalcanti.

 

Sabíamos que iríamos entrar numa terrível aventura e tínhamos que nos preparar, não só para dirigir bem os filmes, mas nos tornamos políticos, legisladores, roteiristas, diretores, técnicos e artistas. Formando um público e uma mídia para os filmes. Tínhamos que aproveitar todos os talentos que aparecessem. Arraial tinha sido uma glória, mas era só o primeiro tijolo de um prémio imenso. Mais tarde, Gláuber o chamaria de Mapa Building. Era uma grande aventura, perigosa, mas não tínhamos nada a perder. É vida ou morte.

 

Vamos mudar a face cultural do país que tem Gláuber, Joaquim, Leon, Gustavo, Mário, e precisamos conquistar o Nélson. O pessoal da PUC e do Metropolitano, o CPC tem cacife. Vamos apostar. Façam o jogo, senhores. Vem aí o “cinema novo”.

 

Publicado originalmente em SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

Um comentário:

Almir disse...

Prezado, sugiro uma postagem sobre as peças de sexo explícito nos teatros da boca nos anos 80.
Acho que seria interessante