quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Especial Mojica nas Eleições: Zé do Caixão candidato para Deputado Federal em 1982

 


Por André Barcinski e Ivan Finotti

 


Não havia passado uma semana desde sua demissão da Record, quando Mojica foi com seu parceiro Mário Lima à Câmara dos Vereadores de São Paulo visitar um amigo, que havia prometido conseguir dinheiro para um filme. A Câmara vivia um período de intensa agitação, por causa das eleições marcadas para dali a um ano. Nos corredores, políticos faziam alianças estratégicas e tentavam atrair bons nomes para suas chapas. Mojica mal colocou os pés no recinto e foi logo abordado por vários vereadores, que o convidavam a se candidatar a um cargo público:

- Você é muito famoso, Zé, não quer ser candidato? Podemos fazer um bom par, você como deputado e eu como vereador – disse um sujeito do PMDB.  

- É, mas tem que ser no PDS – respondeu outro, puxando-o pelo braço.

Em cinco minutos, ele recebeu convites de todos os partidos e tendências, do mais reacionário direitista do PDS ao mais xiita dos petistas.

O tal amigo de Mário Lima trabalhava no Partido Popular (PP), um grupo liderado por Tancredo Neves e egresso da ala moderada do antigo MDB. Mojica foi apresentado ao presidente regional do PP, o banqueiro Olavo Setúbal, dono do Itaú, que imediatamente o convidou para ingressar no partido e candidatar-se a deputado estadual:

- Você é muito importante para nós. Se resolver sair candidato pelo PP, garantimos todo o apoio!

O PP, assim como todos os outros partidos, estava realmente desesperado atrás de candidatos. Pouco antes, um novo pacote eleitoral proibia as coligações partidárias, o que intensificou a luta por candidatos de peso. Na corrida para ganhar votos valia qualquer coisa: o próprio PP havia convidado Solange Jobert, a autoproclamada “rainha das massagistas” – e imortal da Academia de Letras do Vale do Paraíba, por sua obra Estes Homens Passaram por Minha Mesa de Massagem – para concorrer a uma vaga na Assembleia Legislativa. Agora era a vez de Zé do Caixão.

 

Mojica nunca havia sonhado em entrar para a política e não entendia nada do assunto. Quando lhe perguntavam sua posição ideológica, dizia situar-se “em algum lugar entre a esquerda e a direita, mais para o meio”. Era impossível negar, no entanto, que aquela bajulação toda não lhe havia subido à cabeça: por que não poderia ser um deputado? Se todos aqueles políticos já davam como certa sua vitória, por que não arriscar? Afinal, um deputado ganhava bem, tinha privilégios, e tudo que ele precisava naquela hora era um empreguinho bom. Resolveu aceitar.

Se houve uma classe de profissionais que se favoreceu de imediato com a candidatura de Zé do Caixão, foi a dos jornalistas. Nunca foi fácil criar manchetes bacanas. Algumas das melhores: “O candidato das forças ocultas”; “Zé do Caixão garante que não será um político-fantasma”; “horror na Assembleia”; “Mojica, uma luz nas trevas da política”; “O candidato que é um horror” e “Da urna funerária à urna eleitoral”.

Em entrevistas, Mojica afirmava que, caso eleito, concentraria seus esforços na defesa de três classes que considerava as mais desprivilegiadas do país: os coveiros, os lixeiros e os cineastas. “São pessoas que ninguém gosta, mas todo mundo precisa”. Quando um repórter lhe perguntou por que havia escolhido o PP, um “partido de banqueiros”, ele retrucou: “É melhor que sejam banqueiros, assim já são ricos e não precisam mais roubar. Pior seria se eu tivesse me juntado a uns mortos de fome!”. Depois, disse que a política nacional se assemelhava a um filme de ficção-científica e terror: “Veja só, os candidatos prometem mundos e fundos e, depois de eleitos, desaparecem, como se fossem tragados por um disco voador para outra dimensão. Só aparecem de novo na época de outra eleição. Parecem umas múmias, que só acordam de tempos em tempos”.

Sua plataforma incluía a proibição de seriados de TV americanos (“Precisamos prestigiar os programas brasileiros!”) e cursos obrigatórios de tiro para vigias noturnos (“Esses coitados arriscam a vida para proteger a família brasileira e nem aprender a atirar; é um absurdo!”). Mas ele também tinha boas ideias para incentivar o cinema nacional, como a criação de escolas para formar técnicos de laboratórios onde cineastas independentes pudessem revelar seus filmes por preços mais baixos.

Poucos dias antes de Mojica formalizar sua candidatura, o PP fundiu-se ao PMDB. No novo partido, o mais poderoso do país, não haveria lugar para Zé do Caixão. Foi então que o radialista Fernando Silveira, candidato a deputado estadual pelo PTB, convidou-o para se filiar a seu partido, prometendo arcar com todos os custos da campanha caso Mojica topasse aparecer ao seu lado em cartazes e santinhos. Só havia um problema: como Silveira já estava concorrendo a deputado estadual, Mojica, se quisesse entrar numa dobradinha, teria que se candidatar a deputado federal – uma parada muito mais dura. Mesmo assim, ele topou. Na mesma hora, Silveira o levou para o diretório central do PTB, na avenida Angélica, onde o apresentou a Ivete Vargas, filha de Getúlio, que preencheu pessoalmente sua ficha de inscrição. Mojica saiu empolgado: “Pô, a filha do Getúlio Vargas preencheu minha ficha! Esse partido é bom mesmo!”.

O candidato do PTB ao governo de São Paulo era outro velho conhecido de “forças ocultas”: Jânio Quadros. Mojica foi apresentado ao ex-presidente, que logo o convidou para um bate-papo em seu apartamento. No dia combinado, Mojica foi à casa de Jânio. Não passava das dez da manhã quando tocou a campainha. Jânio atendeu a porta de pijamas e chinelos. Bem-humorado, levou-o para a mesa da sala, onde sua esposa, dona Eloá, serviu suco de laranja e biscoitos.

- José, quero que você saiba que sua presença é muito importante para nós – disse o ex-presidente. – Você é uma pessoa de nome, pode atrair muitos votos!
         Mojica só balançava a cabeça, concordando. De vez em quando soltava uns “é claro”, “sim, sim”, mas na maior parte do tempo ouviu calado. Jânio pediu que não esquecesse de incluir seu nome para governador em todos os santinhos, e disse que Mojica teria de trabalhar muito para se eleger:

- Tem que fazer campanha o tempo todo, sem descanso. É preciso fazer como eu, que acordo todo dia ás seis da manhã e durmo à meia-noite! (Mojica continuaria dormindo às seis da manhã e acordando meio-dia). Jânio deu dicas de como falar em comícios, e reiterou a importância da campanha corpo-a-corpo. Aí, Mojica falou pela primeira vez:

- Jânio, estou com um problema muito sério...Eu não tenho dinheiro para a campanha...

- Eu também não tenho pra te dar, mas vou te passar o telefone de dois amigos que podem te ajudar...

Os amigos de Jânio eram o dono de uma fábrica de embalagens em Santo Amaro e o proprietário de uma casa lotérica. Também não tinham grana, mas prometeram emprestar uma kombi para a campanha. Já a dobradinha com Fernando Silveira não deu certo: os dois brigaram e Mojica acabou se juntando aos candidatos Fábio Porchat (deputado estadual) e Fábio Fleming (vereador), que também se dispuseram a imprimir cartazes e santinhos, com a condição de que ele os apoiasse. Alguns dias depois, Mojica recebeu do Tribunal Regional Eleitoral (TER) a oficialização de sua candidatura: Zé do Caixão, candidato a deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, com o número 430. Até soava bem.

Mojica logo percebeu que campanha política não era brincadeira: ele começou a ser chamado para reuniões do partido e encontros com políticos. Gostava especialmente das reuniões de cúpula do PTB, no centro, porque serviam uísque importado com amendoim. Mas nunca bebeu além da conta, pelo menos na presença dos graúdos. Sempre que avistava Jânio, Ivete Vargas ou algum outro figurão, maneirava na birita. Vexame mesmo só deu numa convenção do partido em São José dos Campos, quando subiu ao palanque com duas garrafas de Tatuzinho na cuca e fez um discurso que ficou para a história da política joseense:

- A quem pertence a terra? A Deus? Ao Diabo? Ou aos espíritos desencarnados? Meus eleitores, a besta está chegando para tomar a terra e o leite das crianças! Vamos dar leite pras crianças! Temos que dar leite pras crianças!

Num comício no Anhangabaú, Mojica foi rodeado por um grupo de motoristas de ônibus, que queriam saber mais sobre sua plataforma. Ele disse que pretendia liberar o jogo do bicho e legalizar a prostituição, inclusive dando 13º salário e benefícios às profissionais do ramo. Depois de se recuperar do baque, um dos motoristas perguntou o que ele pretendia fazer pela economia. Mojica, longe de ser um Galbraith, respondeu:

- Vou aumentar os juros da poupança! Vamos ficar ricos!

Os motoristas disseram que, se ele aumentasse os juros da poupança, as lojas também aumentariam seus preços, e ficaria tudo na mesma.

- Não, não, você vai ver! Vamos aumentar a poupança sempre mais que a inflação! Confiem em mim!

A campanha de Mojica era realmente revolucionária: ele substituiu o tradicional “corpo-a-corpo” pelo “copo-a-copo”: todo dia, visitava um bairro diferente e fazia a ronda dos botecos, enchendo a cara com os eleitores e divulgando sua plataforma, entre um gole e outro de Velho Barreiro. Enquanto isso, a candidatura de Jânio não decolava: os institutos de pesquisa anunciavam uma liderança folgada de Franco Montoro, do PMDB, seguido de longe por Reinaldo de Barros, do PDS. Jânio só aparecia em terceiro, empatado com Lula, do PT.

Para dar impulso á campanha, o PTB marcou um grande comício para o dia 9 de outubro em Sapopempa, na zona leste. As maiores atrações, além da presença de Jânio e Ivete Vargas, seriam um show de Moacir Franco – também candidato – e um concurso de sósias de Getúlio Vargas, Sílvio Santos e Pedro de Lara. O evento foi visto como a última grande cartada de Jânio. Ele declarou aos jornais que, se não conseguisse levar pelo menos 20 mil pessoas a Sapopemba, renunciaria à candidatura. Todos os candidatos do PTB foram convocados a discursar, inclusive Zé do Caixão.

Jânio cumpriu sua promessa: bem mais de 20 mil pessoas compareceram ao comício. Naquela manhã, Mojica vestiu um terno, encontrou-se com o amigo Samuel Moura e partiram juntos para Sapopemba. Antes, porém, deram uma paradinha na casa de Elza Leonetti, onde Mojica matou meio litro de Cinzano. Acabaram chegando atrasados ao comício. Largaram o carro numa esquina qualquer e só então perceberam que haviam estacionado ao lado errado, próximo à multidão e longe do palanque. Tiveram que atravessar a massa a pé, cortando pelo meio do povão. Mojica era reconhecido e abraçado. Foi um sufoco. Levaram quase uma hora para alcançar o palanque e, quando chegaram, os discursos já haviam terminado. Mojica não pôde discursas e ainda sofreu a humilhação de ouvir o apresentador chamá-lo de “José Maria Marin”.

Com todas essas galhofadas, não foi surpresa alguma quando saiu o resultado da eleição: Zé do Caixão obteve 1.228 votos, ficando em 61º lugar entre os 71 candidatos do PTB. Na classificação geral, ficou em 256º lugar entre os 278 candidatos. Jânio acabou mesmo em terceiro, atrás de Franco Montoro e Reinaldo de Barros. Os parceiros de Mojica também entraram pelo cano: nenhum dos Fábios, nem Porchat nem Fleming, conseguiu se elegar. Mojica depois acusou o TRE de ter anulado os votos dados a Zé do Caixão e computado apenas as cédulas com seu nome verdadeiro, mas a reclamação não procedia: em sua ficha de inscrição, ele havia registrado tanto o nome José Mojica Marins quanto Zé do Caixão.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.