sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Mojica early years, parte X: 1967-1968: O Auge

       Capítulo 10: 1967-1968: O Auge

 


         Por André Barcinski e Ivan Finotti

        

         No fim de 1967, Mojica era um dos artistas mais populares do Brasil. Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver continuava lotando cinemas, seu programa de TV batia recordes de audiência e os jornais não paravam de escrever sobre os testes macabros. Mojica ficou tão famoso, que já não podia andar na rua sem guarda-costas. Quando arriscava um passeio a pé pela cidade, era invariavelmente cercado por uma multidão.

         O nome Zé do Caixão começou a ser incorporado ao vocabulário nacional, como sinônimo de qualquer coisa esquisita ou macabra. Se algum zagueiro se destacasse por sua maldade dentro de campo, era imediatamente apelidado de Zé do Caixão. Mães começaram a usar o nome para domar filhos levados: “É melhor se comportar, senão eu chamo o Zé do Caixão pra te pegar!”. Até o desenhista Maurício de Souza homenageou Mojica, com uma charge na qual apelidava de “José Canjica”.

         As pragas que Mojica rogava no fim de seu programa na Bandeirantes eram assunto nacional. Lucchetti espertamente as escrevia com o objetivo de atingir o maior número possível de pessoas: numa semana, criava uma praga para os que cobiçavam a mulher do vizinho (“Ao cobiçar a mulher do próximo, que o próximo fique com a tua mulher!”); na semana seguinte, escrevia para aqueles que bebiam além da conta; depois, para os que maltratavam os filhos.

         A aura mística de Mojica acabou transformando-o, aos olhos de muitos, numa espécie de curandeiro. Todo dia, uma multidão ia aos estúdios da Bandeirantes para “se tratar” com ele. A Folha de S. Paulo chegou a publicar uma reportagem sobre o assunto: “Se você tiver torcicolo, lumbago, prisão de ventre, mau-olhado, dor de barriga, de calo ou de cabeça, não se preocupe: vá ao estúdio do Canal 13 e procure o Zé do Caixão (...) Cheguei até ele e peça-lhe para curá-lo. Zé do Caixão colocará suas mãos e unhas compridas sobre o lugar onde você sente dores e não dirá nada. A cura virá por sugestão. Se você acredita que o Zé pode curá-lo, não perca tempo. Zé não cobra nada, mas também não sabe se cura ou não (...) Mas Mojica não acredita nessas histórias e só coloca as mãos sobre as pessoas que o procuram porque acha que não custa nada contentar os outros”.

 

         Certo dia, Mojica foi procurado na sinagoga por um grupo de moradores da Moóca. Um deles havia encontrado, num cruzamento do bairro, um despacho de macumba fora do normal: além dos tradicionais pratos de farofa, velas e garrafas de cachaça, havia treze bonecos. Julgando tratar-se de alguma maldição, o pessoal pediu a Mojica que solucionasse o problema. Ele tentou argumentar que não era macumbeiro não pai-de-santo, mas a turma insistiu: não saíram de lá enquanto ele não fosse à Moóca. Tanto imploraram que Mojica acabou cedendo e foi ao bairro, acompanhado por Mário Lima. Quando viu o despacho, ficou intrigado: os treze bonecos haviam sido arranjados num círculo, bem no meio de uma das ruas mais movimentadas da região. Ele olhou o despacho por vários minutos, compenetrado. Depois disse ao pessoal:

         - Quem de vocês tem doze irmãos?

         Ninguém ali tinha tantos irmãos, mas logo alguém lembrou de um vizinho que era caçula de uma família de treze.

         - Isto aqui é uma macumba para matar todos os treze! – disse Mojica, para espanto de todos. Ele continuou:

         - Quem fez isso está tentando matar todos eles atropelados. O que vocês têm que fazer é ficar tomando conta do despacho até o nascer do sol, amanhã, e garantir que nenhum carro passe por cima...

         O pessoal imediatamente se mobilizou e cercou o despacho, formando uma corrente humana no meio do cruzamento. Mojica desejou boa sorte a todos e disse que ele tinha que voltar a seus aposentos para pedir aos espíritos que protegessem os treze irmãos:

          - Rezarei por eles!        

         Na volta, Mário Lima, impressionado com seus conhecimentos místicos, perguntou:

         - Mojica, como é que você sabe o que fazer?

         - E eu sei lá, Mário? Você acha que eu tinha alguma ideia do que estava falando?

         - Mas vai dar certo?

         - Bem, se os treze irmãos morrerem atropelados na mesma noite, a gente sabe que deu errado!

 

         A fama de Mojica se multiplicava, mas o mesmo não acontecia com sua conta bancária. Ele recebia 1,5 mil cruzeiros novos da Bandeirantes (o equivalente a 530 dólares), uma mixaria, levando-se em consideração seus impressionantes índices de audiência. Além de ganhar mal, Mojica ainda gastava todo o salário sustentando seu séquito. Não era segredo no Brás que ele era o maior mão-aberta do pedaço: todas as noites, levava uma comitiva para se esbaldar nos restaurantes do bairro, os bares da região tinham contas em seu nome, onde muitos integrantes de sua equipe comiam e bebiam de graça e mandavam pendurar na conta. Assim que recebia o ordenado, Mojica corria os bares, saldando as dívidas. Apesar dos conselhos de Nilce e de Lucchetti para que fosse mais responsável, nunca foi de guardar dinheiro. Se tinha algum no bolso, imediatamente arranjava alguma maneira de gastá-lo.

         Também não era o homem de negócios mais esperto do planeta. Depois do sucesso do programa de TV, ele começou a receber ofertas de transformar Zé do Caixão em garoto-propaganda. Em vez de solucionar as propostas de empresas mais confiáveis, Mojica topava qualquer negócio e acabou se envolvendo com toda sorte de picaretas. Primeiro, foi lançada a vela para macumba Zé do Caixão. Depois, a Pinga Zé do Caixão, uma bomba alcóolica tão poderosa que nem ele mesmo aguentava um gole. A bebida durou apenas dois meses, até que a empresa fabricante, entusiasmada com os lucros, começou a adicionar água nas garrafas para render mais.

         A próxima oferta viria do dono de uma perfumaria de Serra Negra, cidade ao norte de São Paulo. O sujeito queria usar o nome de Zé do Caixão para divulgar uma nova linha de produtos de beleza, batizada de Mistério. Mojica topou o negócio, em troca de 10% do lucro, sem exigir sequer um adiantamento. O primeiro produto lançado foi o vitalizante para unhas Mistério. Mojica tratou de divulgar o produto, visitando redações de jornais e inventando uma bizarra explicação pseudo-científica para garantir sua eficácia: “O vitalizante funciona porque é feito com lama radioativa de Serra Negra. Agora qualquer um pode ter unhas fortes e compridas como as minhas!”.

         O produto fez um sucesso danado e logo a empresa lançou outros artigos: primeiro um sabonete, seguido por um xampu, um desodorante, um fortificante capilar e um creme para a pele. Mojica distribuiu uma caixa de fortificante capilar para alguns alunos calvos, como teste, mas os resultados foram desastrosos: em vez de fortalecer o cabelo, ele acabou com os poucos fios que restavam na cabeça dos coitados. O produto mais popular era mesmo o vitalizante para unhas. Quando Mojica foi convidado por Sílvio Santos para aparecer em um anúncio do Baú da Felicidade, ele exigiu seu pagamento não em dinheiro, mas em espaço publicitário para o vitalizante. As vendas quadruplicaram e ele ganhou um bom dinheiro.

        

         Em outubro de 1967, o produtor Antônio Polo Galante procurou Mojica com a ideia de fazer um filme de Zé do Caixão. Mojica propôs rodarem A Encarnação do Demônio, a continuação de Esta Noite Encanarei no Teu Cadáver, mas Augusto Pereira, dono do projeto, não liberou. Galante e Mojica resolveram, então, fazer um filme de episódios, Trilogia do Terror, inspirado nas histórias que Lucchetti escrevera para o programa da Bandeirantes.

         Galante era um dos produtores mais importantes da Boca e um dos mais astutos empresários do cinema brasileiro. Órfão de pai e mãe desde um ano de idade, ele havia sido criado num instituto de menores carentes em São Paulo, e conseguira seu primeiro emprego em cinema como faxineiro na produtora Maristela, em 1953. Poucos anos depois, já era dono de uma loja de material de filmagem que abastecia boa parte das produtoras da cidade. Em 1966, sonhando tornar-se produtor, Galante comprou um filme inacabado de Ody Fraga, Erótika, adicionou algumas cenas de strip-tease e mudou o título para Vidas Nuas. A fita foi lançada no Cine República, no centro da cidade. Ficou dez semanas em cartaz. Deu tanto dinheiro que ele fez mais trinta cópias e começou a distribuí-las pelo interior. Ficou rico.

         Galante sempre se destacou por sua esperteza, tino comercial e criatividade para bolar títulos chamativos. Em 1976, seguindo o conselho de um amigo (“O que está dando grana agora é filme com mulher nua atrás das grades!”), produziu uma lucrativa série de filmes de presídio, incluindo Escola Penal de Meninas ViolentadasInternato de Meninas VirgensFugitivas InsaciáveisReformatório das DepravadasPensionato das Vigaristas e o clássico Presídio de Meninas Virgens, cujo bizarro título parece sugerir que as pobres mulheres foram presas porque foram violentadas.

         Galante gostou da ideia de produzir Trilogia do Terror, mas queria garantir o co-financiamento do INC (Instituto Nacional do Cinema). Ele sabia, no entanto, que seria dificílimo convencer a comissão do INC – que na época favorecia diretores já estabelecidos, como Walter Hugo Khouri e Anselmo Duarte – a investir no filme se um sujeito que obrigava os atores a comer minhoca com groselha.

         Foi aí que entrou na história o produtor Renato Grecchi, outro veterano do cinema paulista e que havia inclusive trabalhado no lançamento de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Grecchi soube da ideia de Mojica e propôs a Galante dividir os episódios entre três diretores: Mojica, Ozualdo Candeias e Luiz Sérgio Person. A escolha dos três não foi casual. Candeias e Person eram nomes bem cotados pela intelligentsia brasileira da época e haviam recebido prêmios do INC por A Margem e O Caso dos Irmãos Naves, respectivamente. A presença dos dois certamente garantiria a benção do INC. Já Mojica asseguraria o sucesso de público, uma vez que nem Person e muito menos Candeias eram grandes atrações de bilheteria.

         Grecchi e Galante tornaram-se parceiros na produção da fita e combinaram que cada diretor poderia escolher, entre os episódios já apresentados no programa de TV de Mojica, as histórias que gostariam de filmar. Ozualdo Candeias optou por Noite Negra, sobre um homem que faz um pacto com o demônio em troca da cura para uma doença que atacara sua filha. Ele mudou o nome do episódio para O Acordo e adaptou a trama para um cenário interiorano. Já Person escolheu A Procissão dos Mortos, história de um menino que vê fantasmas numa floresta. Ele também mudou bastante a história, substituindo os fantasmas por guerrilheiros, que andam pela mata usando boinas e empunhando metralhadoras, numa óbvia alusão a Che Guevara, morto alguns meses antes.

         Mojica decidiu adaptar o primeiro episódio apresentado na Bandeirantes, Pesadelo Macabro, que fora inspirado pelo ataque de catalepsia do quitandeiro que ele havia presenciado ainda criança. Cláudio (Mário Lima) é um sujeito que sofre terríveis pesadelos. Em seus sonhos, ele prevê que será enterrado vivo. Durante um passeio com sua noiva, Rosana (Vani Miller), os dois são atacados por uma gangue. Os marginais estupram Rosana e dão uma surra em Cláudio, que sofre um ataque e é dado como morto. Ao sair do cemitério, depois do enterro de Cláudio, Rosana tem um pressentimento de que ele está vivo. Ela implora para que desenterrem seu noivo. Todos voltam correndo à tumba e desenterram o caixão. Quando o esquife é aberto, veem Cláudio de olhos esbugalhados e mãos ensanguentadas.

         Pesadelo Macabro é um dos melhores trabalhos de Mojica e do fotógrafo Giorgio Attili. O episódio começa com uma colagem psicodélica de cenas de cobras, lagartos e sapos, simbolizando os pesadelos de Cláudio. Depois, há uma violenta cena num terreiro de macumba, onde Cláudio procura a ajuda de um pai-de-santo para tentar acabar com seus pesadelos. O ritual de macumba é brutal: o curandeiro chicoteia cinco moças e cada lambada arranca uma peça de roupa das mulheres; em seguida, ele come uma galinha viva (não há truques nessa cena; o sujeito de fato decapitou a galinha a dentadas). A última sequência é um primor: quando Cláudio acorda de seu transe cataléptico e percebe que está, de fato, enterrado vivo, ele grita em desespero. A cena é mostrada sem som, dando a entender que ninguém poderia escutá-lo. O pânico demonstrado pelo personagem faz um contraponto assustador com o silêncio da cena. De gelar os ossos!

         Mojica filmou Pesadelo macabro em apenas nove dias. Enquanto Person e Candeias ainda trabalhavam em seus filmes, ele já dava início à filmagem de O Estranho Mundo de Zé do Caixão, outro filme de episódios, composto das três histórias que havia encomendado a Lucchetti, quando este o visitou pela primeira vez na sinagoga. Mojica conseguiu a verba para o filme com o egípcio George Michel Serkeis, dono de uma confecção próxima à sinagoga. Apesar da pouca idade – 23 anos – George era um comerciante bem-sucedido, de bastante experiência em cinema e teatro, tendo atuado em diversas peças durante sua adolescência, no Egito, e participado como coadjuvante de vários filmes estrelados por Omar Sharif, antes mesmo deste se tornar um astro internacional com o sucesso de Lawrence da Arábia (1962).

         George achou que seria um bom investimento produzir um filme de Zé do Caixão e decidiu vender um sobrado que tinha em Vila Mariana para bancar a produção. Só havia um problema: seu velho tio, também chamado George, ainda morava no local, e não queria sair de jeito nenhum. Ele matutou por alguns dias, pensando numa maneira de convencer o tio a abandonar sua casa, até que teve uma ideia das mais absurdas – tão absurda que até Mojica, um expert em bizarrice, ficou chocado quando ouviu.

         Numa noite em que sabia que o tio não estaria em casa, George foi com Mojica e com um de seus assistentes, o português Jean Garrett – que, anos depois, se tornaria um dos diretores de maior sucesso da Boca do Lixo – até a Vila Mariana. Enquanto George e Mojica vigiavam a rua, Garrett, carregando um rolo de corda no ombro e uma marreta, subiu no telhado da casa, tirou umas telhas, amarrou a corda numa viga e desceu por ela até a sala do tio. Com a marreta, destruiu absolutamente todos os móveis da casa. Não satisfeito, arrebentou também algumas paredes, abrindo buracos do tamanho de melancias entre os quartos. Depois subiu pela corda, recolocou as telhas e desceu de encontro aos dois.

         O coroa quase teve um ataque do coração quando chegou e viu sua casa em ruínas. Apavorado, não quis passar nem mais uma noite no sobrado, acreditando que a demolição havia sido obra de algum ladrão maluco. George vendeu a casa e financiou O Estranho Mundo de Zé do Caixão com o dinheiro. E o tio, sem desconfiar de nada, foi morar com o “sobrinho querido” que tanto o ajudara.

         Mojica, animado, mandou construir os cenários do filme na sinagoga e rodou três episódios de O Estranho Mundo de Zé do Caixão – com elencos e cenários totalmente diferentes – em apenas dezessete dias. A essa altura, seus colaboradores mais próximos – Giorgio Attili, Gaúcho, Roberto Leme, Mário Lima, Nilce, Salvador do Amaral, Jean Garrett, Evandro Barreto e alguns outros – já estavam acostumados com seu ritmo de trabalhado e haviam evoluído bastante em suas respectivas funções. Mojica sentia que a fase de amadorismo mambembe de sua equipe era coisa do passado. Se ainda não dispunha de verbas milionárias e de um esquema de produção mais sofisticado, pelo menos já podia contar com um time de profissionais competentes e bem-preparados.

         Ele sempre recompensava a competência de seus pupilos com promoções. Nilce, que na época ainda usava o nome de Denise Maria, passou e continuísta a secretária de produção, enquanto Robertinho Leme, ex-contra-regra, foi promovido a continuísta do novo filme. Jean Garrett, por sua vez, assumiu o cargo de contrarregra. Gaúcho, que até então trabalhara como assistente de cenografia, tornou-se assistente de câmera. Como de hábito, muitos técnicos também atuaram na fita. Trabalhar com Mojica era como frequentar um curso intensivo de cinema, onde se aprendia todos os aspectos da produção de um filme.

 

         O primeiro episódio de O Estranho Mundo de Zé do Caixão, O Fabricante de Bonecas, conta a história de uma gangue que invade a casa de um artesão para roubá-lo e violentar suas lindas quatro filhas. O que eles não sabem é que o sujeito tem por hábito usar olhos de seres humanos em suas bonecas. Alguns críticos levantaram a hipótese de a história ter sido copiada do conto O homem de areia, do alemão E.T.A. Hoffman. Embora Lucchetti conhecesse a obra de Hoffman, a hipótese de plágio é infundada, uma vez que o próprio Mojica – que sabiamente nunca leu Hoffman – quem sugeriu a história a Lucchetti. O Fabricante de Bonecas é um episódio mediano. Visualmente não tem muito de inventivo, exceto por um belo plano de um casal fazendo sexo, filmado sob os lençóis. De curioso, há a presença de Luiz Sérgio Person no elenco interpretando o chefe da quadrilha (os outros são Rosalvo Caçador, Mário Lima e Toni Cardi).

         O segundo episódio, Tara, é muito melhor. O personagem principal é um pobre vendedor de balões, corcunda e repugnante, que se apaixona por uma linda moça do bairro. Ele a segue pelas ruas, sem se aproximar ou arriscar sequer uma conversa. No dia do casamento da moça, uma rival enciumada a mata a facadas na porta da igreja. O corcunda chora assistindo ao enterro da sua amada. Depois invade seu túmulo, abra o caixão e consuma sua paixão com o cadáver.

         Lucchetti achava a história tão forte que teve a ideia de roteirizá-la sem diálogos, como um exercício de pura poesia visual. Ele escreveu um roteiro esplêndido, em que a trama e todos os sentimentos dos personagens ficavam implícitos através de expressões e gestos. Adicionou também vários toques poéticos, nitidamente inspirados em histórias como O corcunda de Notre DameA bela e a fera e Cinderela – há inclusive uma cena em que a moça deixa cair na rua uma caixa de sapatos. George ficou tão entusiasmado com o roteiro que pediu para interpretar o mendigo. Mojica aceito. No roteiro original escrito por Lucchetti, não havia cenas explícitas de necrofilia; tudo era insinuado e implícito. O filme terminava com uma sequência surreal e poética, no qual o mendigo, ao abrir o caixão da moça, sofria uma alucinação e se via dançando um balé com ela. Mojica achou aquilo muita frescura e mudou o fim.

         O papel da moça ficou com a gostosíssima Íris Bruzzi, um dos grandes símbolos sexuais da época. Íris havia sido vedete de Carlos Machado e Walter Pinto (com quem fora casada), e suas fotos de maiô embelezaram por anos a coluna “As Certinhas de Lalau”, de Stanislaw Ponte Preta, publicada no jornal Última Hora, do Rio.

         Íris era uma estrela, mas nem por isso Mojica livrou-a de cenas perigosas. Como a produção não contava com um dublê, a própria atriz teve de interpretar a cena em que rolava nas escadarias da igreja depois de ser esfaqueada. Embora acostumada a trabalhar em novelas, onde a produção era bem mais caprichada, Íris logo se adaptou ao improviso de Mojica. Ela acabou ajudando com a maquiagem e até emprestou peças de seu guarda-roupa para outros atores. Íris também matou uma charada que por dia confundiu toda a equipe técnica: no início das filmagens, Mojica havia pedido a seus assistentes que conseguissem um “penhoral” para rodas determinada cena. O pessoal não tinha a menor ideia que diabos era um “penhoral” e todos ficaram com medo de perguntar e levar uma bronca do diretor. Foi Íris quem decifrou o enigma: o que ele queria era um penhorar!

         O único choque entra Mojica e a atriz aconteceu durante uma cena em que sua personagem tomava banho numa banheira. Ela não aceitou ser filmada nua; no máximo aparecer de calcinha e sutiã. Mojica resolveu o problema filmado Íris de sutiã e depois a substituindo por uma dublê, que aparece nua em silhueta, atrás de uma janela. Ele nem se importou com o fato de a dublê ser pelo menos 20 quilos mais gorda que Íris e ter uma pança indigna de vedete. O mesmo aconteceu na sequência em que o corcunda transa com o cadáver da moça no caixão. Depois que ele tira a roupa da falecida, há um plano mostrando o caixão de lado. Vê-se um par de seios salientes, que obviamente não pertencem a Íris, mas sim a uma coadjuvante bem mais parruda.

         Íris também ficou cabreira quando soube que teria de contracenar com um amador como George Michel. Na verdade, todos os membros da equipe ficaram um pouco receosos. Ninguém sabia de sua experiência em teatro e cinema no Egito, e achavam que Mojica estava apenas fazendo média com o produtor do filme. Logo nas primeiras cenas, no entanto, George mostrou ser um ator competente. Era expressivo, confiante e fazia qualquer sacrifício pelo filme, indo a extremos para interpretar seu personagem com o maior realismo possível. Quando percebeu que seu rosto imberbe em nada sugeria o corcunda sujo e maltrapilho imaginado por Lucchetti, George resolveu o problema cortando o próprio cabelo e colando-o em seu rosto. A barba transplantada deu conta do recado e só criou problemas na hora em que foi beijar o cadáver da moça: um tufo descolou-se de seu rosto e caiu na boca de Íris Bruzzi, que engasgou feio com o chumaço de cabelo.

 

         O último episódio do filme, Ideologia, começa num programa de televisão, Homens que Fazem Notícias, onde o professor Oaxiac Odez (leia de trás para frente!), interpretado por um Mojica de peruca e longos brincos na orelha, está sendo entrevistado por um painel de especialistas. Odez defende sua tese de que o instinto sempre supera a razão (ele diz, entre outras coisas, que o amor não passa de uma atração instintiva). Mas os outros membros da mesa discordam e o tomam por louco. Depois do debate, Odez convida seu maior adversário, dr. Alfredo (Osvaldo de Souza), para ir até sua casa conhecer as provas de sua teoria.

         Alfredo aceita o convite e vai à mansão de Odez (por sinal a mesma casa de Esta Noite Encanarei No Teu Cadáver, fotografada por Ozualdo Candeias), acompanhado pela esposa Vilma (Nidi Reis). O anfitrião não perde tempo e imediatamente leva o casal para uma câmara dos horrores, onde eles presenciam toda sorte de cenas dantescas, como uma mulher sendo torturada com banhos de ácido, um sujeito tendo agulhas espetadas no peito e outro que engole chumbo derretido (para essas duas cenas, Mojica usou artistas de rua que foram à sinagoga exibir seus “dons artísticos”). A cena mais pavorosa, no entanto, é a que mostra um coitado servindo de banquete a um grupo de canibais. Os canibais mordem a pele do sacrificado (na verdade, pedaços de filé cru colados no corpo do sujeito) e parecem arrancar nacos de sua carne a dentadas.

         Dr. Alfredo e Vilma, são, presos em jaulas separadas e deixados por sete dias sem comida nem bebida. A teoria de Odez é de que, privado de condições mínimas de sobrevivência, o ser humano transforma-se num animal, esquecendo qualquer noção de amor e caridade. No sétimo dia, a tese se prova verdadeira: o professor fura o pescoço do dr. Alfredo com uma faca e Vilma sacia sua sede com o sangue do próprio marido. Odez havia conseguido transformar homens em feras, provando que o instinto sempre superava razão.

         A cena em que o professor fura o pescoço de Alfredo é mostrada em close, sem truques. Para fazer esta sequência, Mojica comprou um porco vivo, mandou raspar os pelos do pescoço do bicho (que, em close, ficou surpreendentemente parecido com um pescoço humano) e furou o animal. Ninguém diz que aquilo não é pescoço de gente. O filme termina com o cúmulo do barbarismo: um banquete antropofágico ao som de Aleluia de Handel, no qual Odez e seus asseclas comem mãos, braços e pernas do casal, enquanto suas cabeças repousam em bandejas de prata.

         Ideologia não tem comparação, em termos de sadismo e crueldade, com nada que se fazia no mundo inteiro em 1967. Enquanto os outros dois episódios do filme, O Fabricante de Bonecas e Tara, traziam um horror mais fino, Ideologia é uma aberração, filmada com o ultrarrealismo de um documentário. O episódio inclui closes de feridas escabrosas, sangue jorrando aos borbotões e barbarismos gráficos impensáveis, além de um amontoado de blasfêmias e ataques à religião. Não era preciso ser nenhum vidente para prever que a Censura implicaria com a fita...

        

         Trilogia de Terror e O Estranho Mundo de Zé do Caixão ficaram prontos quase simultaneamente, em março de 1968. Depois de marcar o lançamento de Trilogia para o dia 22 de abril no Rio, e 13 de maio, em São Paulo, o produtor Antônio Polo Galante começou a agendar sessões especiais para críticos. A revista Visão publicou um pequeno artigo esculhambando o episódio de Mojica: “Como de costume, (Mojica) utiliza amadores. O resultado não é dos mais brilhantes. Os atores recitam o tempo todo, segundo uma marcação típica de fotonovela malfeita”0 O artigo termina com uma previsão certeira: “O filme tem um estupro que, por excesso de realismo, certamente será podado pela Censura”.

         No dia 9 de abril, a Censura proibiu Trilogia de Terror. A cena do estupro encenada por Mojica foi considerada forte demais. Um dos censores, num rompante racista, mandou cortar “a cena em que aparece o preto com a língua na boca da moça”. Foram exigidos também cortas nas sequencias de Person em que apareciam guerrilheiros e em cenas do episódio de Candeias no qual eram mostradas mulheres barbudas numa caverna. Em seu parecer, o censor José Vieira Madeira listou as razões que o levaram a votar pela proibição:

 

         O filme (...) tem cenas de nudismo, flagelação de mulheres, inteiramente despidas: uma curra em que sujeitos, como bestas humanas, aproveitam-se de uma jovem; mulheres despidas numa caverna etc. Há, também, cenas de péssimo gosto, como a de um homem que come cobras vivas, moscas, aranhas etc. Filme de péssimo gosto, com cenas violentas, repulsivas etc.

        

         Renato Grecchi, co-produtor de Trilogia, foi a Brasília tentar solucionar o problema. Ele pediu uma reavaliação do parecer e conseguiu, sem muito esforço, a liberação do filme, com um total de quatro cortes. Essa súbita mudança de opinião dos censores não foi provocada por algum repentino ataque de bondade ou compreensão, mas por um grande escândalo que abalava o Serviço de Censura e Diversões Públicas, deflagrado pela revelação de que seu chefe, Antônio Romero Lago, era um criminoso procurado pela Justiça como mandante de dois assassinatos.

         O nome verdadeiro de Lago era Hermenildo Ramirez de Godoy. Vinte e quatro anos antes, ele havia mandado matar dois homens em São Borja, no Rio Grande do Sul. Preso e condenado a vinte anos de cadeia, Godoy subornou o chefe da prisão e fugiu para o Paraguai, onde tornou-se amigo íntimo do futuro ditador Alfredo Stroessner e enriqueceu vendendo pneus. Em 1951, foi para o Rio de Janeiro, onde falsificou sua certidão de nascimento e mudou seu nome para Antônio Romero Lago. Sua ascensão na capital foi fulminante: dois anos depois, já trabalhava dentro do Palácio do Catete, como assessor de gabinete do presidente Getúlio Vargas. Em seguida, foi nomeado diretor do Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC).

         Como Lago passou de técnico do INIC a chefe da Censura é desses mistérios que só a ditadura militar pode explicar. O fato é que, em 1964, o general Riograndino Kruel nomeou-o para o posto de chefe do Serviço de Censura. Na Censura, Lago destacou-se por interditar filmes sem os assistir, como fez com Terra em Transe, de Glauber Rocha. Foi ele também que assinou a liberação de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, com as mudanças exigidas pelo censor Augusto da Costa, ex-zagueiro do Vasco.

         A revelação de que havia um assassino na chefia da Censura foi um constrangimento para os militares. O caso ficou ainda mais empepinado depois de descobrirem que Lago fizera parte do Conselho de Polícia, órgão da cúpula do Departamento de Polícia Federal, e que havia representado a polícia em diversos congressos de prevenção ao crime. Ele foi acusado de crime de falsidade ideológica e exonerado da chefia da Censura, mas permaneceu em liberdade e foi tratar de suas várias fazendas no interior de Goiás.

         Os cineastas e produtores preferiram ficar calados diante do escândalo, pois haviam apoiado Lago durante sua gestão na Censura e aplaudido seus esforços para fazer cumprir a lei de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais. O produtor Luiz Carlos Barreto chegou a lamentar sua saída: “Ele é um grande nacionalista e durante sua gestão beneficiou o cinema brasileiro com inúmeros portarias (...) Era um homem de coragem e assim agiu quando prejudicou, para o bem do Brasil, inúmeros interesses do cinema estrangeiro”. O crítico de cinema do Correio da Manhã, Salvyano Cavalcanti de Paiva, ficou furioso com a hipocrisia dos profissionais de cinema, que só preferiram manter-se neutros no caso Romero Lago, como não se manifestaram contra os cortes perpetrados em Trilogia do Terror:

         Obra surpreendente, menos pelo tema do que pela segurança artesanal, pela inventividade artística, sobretudo dos episódios de Marins e Candeias. O de Marins, que é perfeito na concepção e na realização, tem algumas cenas de sadismo e erotismo. Ou melhor, tinha: a Censura foi impiedosa e todo-poderosa: cortou, retalhou, escangalhou. Os protestantes e outras alimárias emudeceram, subitamente. O filme é importante, é brasileiro, mas não pertence à gang. Calaram, consentiram, retiraram a máscara; seus interesses não estão em jogo (...) Onde estão os que dizem defender o cinema brasileiro – se confessam, por fim, cúmplices do ex-censor-chefe e ex-Romero Lago, além de ex-fugitivo da Justiça???

        

         Pelo menos o caso de Romero Lago serviu para ajudar a liberação de Trilogia. Quando o filme estreou no Rio de Janeiro, em 22 de abril de 1968, Salvyano ficou tão entusiasmado que escreveu nada menos de três críticas, em dias seguidos, nas quais reiterou seu apreço pela genialidade de Mojica e cutucou a turma do Cinema Novo:

         Quando há dois anos fomos dos que apontavam em José Mojica Marins um diretor de cinema invulgar, misto de intuição e incultura, de genialidade sem amparo porque circunscrita em um contexto primário de objetivos imediatistas, poucos nos apoiaram. Agora, depois de Trilogia do Terror, os honestos darão a mão à palmatória.

         (...) A inteligência de Trilogia de Terror foge, talvez, à compreensão de apenas duas espécies de cinespectadores: os falsos puritanos, obnubilados por uma neblina de preconceitos intransponíveis, que rejeitam aprioristicamente o erotismo e a violência intrínseca de seres humanos projetados em personagens de criação artística legítima, onde a pureza é apanágio – e, evidentemente, este é o caso genérico de José Mojica Marins, e em particular do episódio no filme em questão, Pesadelo Macabro; os falsos estetas de um cinema supostamente engajado em inovações formais, a mais importante das quais seria o enclausuramento e o distanciamento do público, e inovações conteudísticas que consistiram na rebeldia indicriminada contra valores estabelecidos. No fundo, uma atitude típica dos crédulos da sabedoria convencional, impotentes para romper com o status quo de maneira ativa, exigindo dos artistas, ginásticas mentais – e financeiras – para o atendimento de meia dúzia de pernósticos ociosos. Inversão social? Nada disso; esses déspotas do pensamento alheio precisariam ler Thornstein Veblen urgentemente e não cair na esparrela de citar Marx ou Engels ou fazer corolário de certas teses apenas na mesa dos bares e ao sabor do chope. Convençam-se de que estão agrilhoados à fartura e ao conforto que o mediocrismo white colar proporciona. E deixem que floresçam as mil flores do cinema nacional...

        

         No mesmo Correio da Manhã, Carlos Dantas elogiou Mojica e também lançou farpas contra os que criticavam seu cinema popular:

         Já com três realizações do mesmo gênero, o cineasta paulista vem sendo tratado como um “grosso”, meio debiloide, sempre insistindo em fazer troços horríveis. Infelizmente a maior parte de nossos experts só tem observado Mojica através da aparelhagem crítica inteiramente desfocada. Não conseguem, ou não querem, fixar as inequívocas demonstrações de um talento vigoroso para o mais legítimo gênero de horror e ficam na malhação fácil em cima do primitivismo técnico, da rusticidade interpretativa, do que menos importa. Já Salvyano Cavalcanti de Paiva é uma exceção nesse nevoeiro crítico e tem sabido ver com lentes claras aquilo que verdadeiramente conta. Isto é: uma intuição certeira na captura de elementos estruturais do terrorífico que permite a Mojica supera debilidades de um trabalho basicamente tosco. Intuição que configura a exata, a medida certa de seu grande talento inventivo. Portanto, cabe ao menos lúcidos um novo enfoque no assunto. E não perderia tempo em recorda que “todas as fraquezas muito aparentes são forças” (Pascal).

 

Enquanto Salvyano e Carlos Dantas louvavam o primitivismo acessível dos episódios de Mojica e Candeias, outros críticos reclamavam exatamente desse aspecto. Foi o caso de Orlando Fassoni, da Folha de S. Paulo. A crítica de Fassoni contém algumas contradições que refletem bem a divergência de opiniões entre os críticos ligados ao Cinema Novo, que defendiam um “cinema de autor” – mesmo que inacessível ao grande público – e a turma da “velha guarda” liderada por Salvyano, que criticava o hermetismo do Cinema Novo:

        

         Trilogia de Terror é, evidentemente, um filme primitivo em suas estruturas; uma obra de encomenda para o grande público; uma fita que não pode ser inserida no grupo de filmes que procura maior aproximação espectador-cinema brasileiro. Aparentemente, suas intenções são essas: levar cinema às populações suburbanas (...)

         Levando-se em consideração a falta de cultura cinematográfica de Mojica e a falta de capacidade de Candeias em contar uma história linear, já que o filme é feito para um público suburbano, Person teria de ser, entre eles, o mais capaz.

        

         Ora, como pode um filme ser “feito de encomenda para o grande público” e ao mesmo tempo não se inserir no “grupo de filmes que procura maior aproximação espectador-cinema brasileiro?”. Não existira aí uma carga de preconceito?

         Em 10 de junho, quando Trilogia de Terror estreou em São Paulo, num circuito de dez cinemas que incluía salas nobres do centro como Art-Palácio, Astor e Paissandu, a crítica paulistana elogiou Candeias e Person e descarregou sua munição e cima de Mojica. O Última Hora disse que ele “aproveitava o filme para exercitar seus instintos sadomasoquistas, em conformidade cm o que a plateia pagou para ver”. Já o Estadão estampou no título: “Tudo bem, antes de Mojica”.

 

         Mojica adorou a polêmica e sugeriu a George Michel lançar imediatamente O Estranho Mundo de Zé do Caixão, para aproveitar o bafafá. Acontece que, perto do barbarismo de O Estranho MundoTrilogia de Terror parecia filme infantil. Se Grecchi e Galante haviam suado a camisa para evitar a proibição de Trilogia, George Michel penaria muito mais para liberar o novo filme.

         George mandou o filme para Brasília. Quinze dias depois, recebeu o veredito da Censura: interditado. Mojica pediu ajuda ao produtor Augusto Pereira, que conhecia todos os trambiques da Censura e já havia molhado a mão de censores para facilitar a liberação de seus filmes. Ele aceitou ajudar, em troca dos direitos de distribuição da fita. George não confiava em Augusto, mas não tinha opção e acabou aceitando.

         A situação de O Estranho Mundo era mais complicada que de costume: por muito pouco o filme não tivera negado seu Certificado de Exibição Obrigatória, expedido pelo Instituto Nacional do Cinema. Naquela época, existia a Leia de Exibição Obrigatória que forçava os cinemas a exibir filmes nacionais 56 dias por ano. Antes de ser enviado à Censura, o filme era examinado por uma comissão do INC, apenas para confirmar a origem da fita, o produtor recebia o certificado e podia gozar dos benefícios da lei.

         Raríssimos eram os casos em que o INC negava o certificado a algum filme. Havia um empoeirado decreto-lei, datado de 1939, que dizia que o filme, mesmo sendo brasileiro, poderia ter seu Certificado de Exibição Obrigatória negado caso contivesse “cenas de ferocidade ou que sugerem práticas de crimes”, “ofensas ao decoro público” ou “cenas que induzam aos maus costumes”. O diretor da Divisão de Fiscalização e Estatística do INC, Ruy Bresser Bello, apelou a seus colegas para que não concedessem o certificado a O Estranho Mundo, citando esse velho decreto-lei. Na prática, a não-concessão do certificado do INC praticamente garantiria a proibição do filme na Censura.

         Para sorte de Mojica, Salvyano Cavalcanti de Paiva, seu grande fã, fazia parte da comissão escolhida para analisar O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Salvyano, jornalista respeitadíssimo, convenceu seus companheiros de que o filme era uma obra-prima. A comissão acabou aprovando – por três votos a um – a fita de Mojica. Ruy Bresser Bello foi o único a votar contra. Ficou tão indignado com o filme, que escreveu uma carta à presidência do INC, na qual afirmava que, se a comissão da qual ele fazia parte não começasse a aditar critérios mais rigorosos, o INC “deixaria de cumprir uma de suas tarefas de maior importância: a elevação artística e cultural a cinematografia do Brasil”.

         Quando O Estranho Mundo de Zé do Caixão chegou à Censura, foi avaliado por uma turma que incluía pelo menos dois censores – José Vieira Madeira e Constâncio Montebello – que já haviam pedido, em ocasiões anteriores, a proibição de filmes de Mojica, como Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver e Trilogia de Terror. Desta vez a patota ficou ainda mais irritada:

 

O realizador se vale de todos os recursos para tornar sua obra repulsiva a qualquer ser humano de mente sã. O filme contém influências criminógenas e perniciosas à moralidade, aos costumes e à religião, e, se liberado, poderá exercer influência extensamente perniciosa a qualquer público, pelo seu caráter obsceno, terrífico, imoral, antireligioso e sem qualquer mensagem.

José Vieira Madeira

 

É inacreditável que alguém de mente sã possa sequer pensar em realizar um filme como esse. Nunca vi, na tela, algo tão repulsivo.

         Sílvio Domingos Roncador

 

A maior parte das cenas deve ser proibida por lei. Visto se impossível sugerir tantos cortes, sob pena de reduzir o filme a um curta-metragem, sugiro sua INTERDIÇÃO TOTAL.

Constâncio Montebello

 

É incrível que alguém em sã consciência possa fazer um filme dessa natureza, pois o mesmo gira em torno das maiores taras existentes, tendo tudo que se possa imaginar de pior em se tratando de sexo, até mesmo um necrófilo é exibido em cena longa e horripilante. Atenta contra os costumes, a moral e a religião”.

Maria Ribeiro de Almeida

 

A direção da Censura apresentou O Estranho Mundo de Zé do Caixão como exercício de classe para 21 alunos, inscritos no curso de Censor Federal da Academia de Polícia. Vinte condenaram o filme. Em 1º de agosto de 1968, o então chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, Aloysio Muhlethaler de Souza, proibiu a exibição do filme de Mojica em todo território nacional.

George Michel foi a Brasília tentar a liberação do filme. Um dos censores lhe disse que a cena mais chocante era a sequência final, em que o professor Oaxiac Odez e seus discípulos banqueteavam-se com carne humana.

- O filme inteiro tem cenas grotescas, mas aquela é de lascar! Se vocês não modificassem esse final, acho que o filme nunca será liberado.

- Mas modificar como? – perguntou George.

- Não sei – respondeu o censor. – Só sei que, do jeito que está, não passa!

- Qual é o problema da cena?

- Bem, o problema é que Zé do Caixão sai vencedor, e isso não pode ser. Ele tem que sofrer algum tipo de castigo, no final. O ideal é que o personagem morra.

- Morrer? Mas morrer, como?

- Não sei, põe uma explosão, um terremoto...O importante é que ele tem que morrer!

De volta a São Paulo, George contou o problema a Mojica. Teriam de rodar outro final para o filme, o que implicaria novos gastos com a re

montagem do cenário e com pagamento de atores e equipe técnica. Mojica passou alguns dias pensando numa maneira de matar Zé do Caixão sem precisar refilmar o final. Não poderia simplesmente redublar o filme, como fora forçado a fazer em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. O censor queria ver Zé do Caixão morrendo. Mojica lembrou-se então de um filme egípcio que havia assistido na casa de George, chamado Um Homem em Nossa Casa. Era um filme de aventuras estrelado por Omar Sharif, e que terminava com a explosão de um depósito de armas do exército. George havia trabalhado como figurante e adquirira uma cópia do filme da cinemateca do Cairo.

Mojica pegou a cópia de Goerge, cortou a sequencia final da explosão no depósito de armas e montou-a no fim de O Estranho Mundo de Zé do Caixão, logo após o banquete canibal. Queria dar a entender que Deus, revoltado com as barbaridades cometidas por Odez, decidira detonar sua casa com uma série de explosões. Para não deixar margem a dúvidas, Mojica incluiu ainda um texto sobreposto às explosões:

            ...Disse o Senhor:

            ....E me provocaste a ira, eis que também farei recair um raio no teu caminho sobre a tua cabeça e não fará mais perversidade sobre todas as suas abominações.

            Ezequiel, capítulo 16; versículo 43

O resultado não foi muito convincente. Como a palavra “Fim” já aparecia sobreposta à imagem de Odez e seus asseclas se esbaldando no banquete canibal, outro “Fim” foi colocado após as explosões (deve ser o único filme no mundo que termina duas vezes). E Omar Sharif, sem saber, tornou-se estrela de Zé do Caixão.

Em 13 de agosto, Augusto Pereira escreveu à chefia da Censura, avisando da modificação feita no filme e pedindo uma nova avaliação. O censor-chefe, Muhlethaler, escalou uma turma para uma sessão de reavaliação, marcada para segunda-feira, 26 de agosto de 1968. Os censores não se sensibilizaram com as mudanças. Sílvio Domingos Roncador, que interditara o filme havia um mês, escreveu um parecer de apenas uma linha: “Não tenho motivos para alterar o parecer proferido quando vi o filme pela primeira vez”. Augusto da Costa, o ex-zagueiro do Vasco, usou o filme como exemplo da “vida dura” de um censor: “Só uma mente anormal poderia conceber um filme tão desprovido der condições éticas como o do sr. José Marins (...) Surgiro que o filme seja exibido para críticos de cinema, autoridades e médicos-psiquiatras, para um exame de suas condições, e para que essas pessoas vejam por que passa a Censura e os censores ao examinar filmes de tal espécie”.

Um único censor – Carlos Lúcio – não optou pela interdição. Suas razões, no entanto, não foram de simpatia por Mojica: ele temia que o filme acabasse liberado após outras reavaliações, e que os produtores conseguissem atrair um grande público usando a velha fórmula de incluir nos cartazes a frase “Filme proibido pela Censura”. A melhor coisa a fazer, segundo ele, seria liberar o filme e esperar que o próprio público o condenasse. Lúcio, no entanto, foi voto vencido: a maioria dos censores optou mesmo pela proibição. Em 27 de agosto, Muhlethaler indeferiu o pedido da liberação feito por Augusto Pereira.

Augusto não se rendeu: dois dias depois, enviou uma carta ao general Bretas Cupertino, diretor-geral do Departamento de Polícia Federal, na qual relatava o esforço dos produtores do filme para satisfazer os censores e a tragédia financeira que a proibição da fita causaria à sua produtora: “Tal medida nos levaria à falência vergonhosa, acarretando o desemprego a dezenas de pessoas, o que é fato gerador de problemas sociais e reflexos negativos na economia do próprio país. Desestimular, dessa maneira, a iniciativa privada, seria atentatória ao regime capitalista em que vivemos e, consequentemente, à própria democracia”.

O militar entrou em contato com a Censura pedindo maiores explicações. Muhlethaler, cansado da insistência de Augusto, lavou as mãos e passou o pepino para a própria Polícia Federal. Na primeira semana de setembro, o coronel Raul Lopes Munhoz, chefe do gabinete do Departamento de Polícia Federal, assistiu ao filme recomendou nada menos de dez cortes, incluindo toda a sequência necrófila do episódio Tara – o que deixou a história sem final – e seis trechos das torturas infligidas por Oaxiac Odez ao professor Alfredo, no episódio Ideologia. No total, foram cortadas mais de dezessete minutos de um filme que, originalmente, durava apenas oitenta. Muito a contragosto, Muhlethaler foi finalmente obrigado a assinar, no dia 9 de setembro de 1968, a liberação de O Estranho Mundo de Zé do Caixão.      

A notícia dos cortes no filme logo começou a circular pela imprensa. No Correio da Manhã, José Lino Grünewald, que assistira à fita numa sessão especial, escreveu um artigo pedindo sua liberação em versão integral:

Assistimos, antes dos cortes, a este último filme de José Mojica Marins que, posteriormente, foi quase arrasado pela Censura. Parece que não ficou sequência sobre sequência, shot sobre shot. Lamentável, porque José Mojica – sem dúvida um dos melhores cineastas brasileiros e um dos poucos que, ao nível internacional, inova no gênero horror – só pode ser assimilado em seu modo extravagante através de tudo que compõe em matéria erótica, primitiva, fescenina, escatológica, sádica. Sem isso, ou seja, forjar a sua aproximação do bom comportamento, mediante a tesoura, perde ele grande parte da força expressiva. Deveria ser facultado que pelo menos os cinemas de arte exibissem os filmes sem estar mutilados (...) O Estranho Mundo de Zé do Caixão é seu melhor filme (...) uma esfuziante féerie das cenas mais insólitas já vistas na tela.

 

O apelo não teve efeito e o filme acabou sendo lançado em sua versão retalhada, com apenas 63 minutos de duração. Os cortes tornaram os episódios incompreensíveis para o público e prejudicaram demais a bilheteria do filme.

A implicância da Censura com O Estranho Mundo não foi único problema que Mojica enfrentou na época. Ele também estava tendo sérios atritos com a direção da TV Bandeirantes. A emissora recusava-se a aumentar seu salário, apesar dos bons índices de audiência de Além, Muito Além do Além. Em maio de 1968, ou seja, nove meses depois de sua estreia, o programa frequentemente liderava o Ibope nas noites de sexta-feira.

No fim de maio, Mojica foi procurado pela TV Tupi. A emissora lhe oferecia o dobro do salário da Bandeirantes, para que ele fizesse um programa aos sábados à noite, com direção de Antônio Abujamra, conceituado diretor teatral. Mojica, sem consultar ninguém, aceitou a oferta e fechou com a Tupi. Lucchetti ficou preocupadíssimo: a Tupi era conhecida por seus programas de alta qualidade, e ele temia que o público da emissora, mais sofisticado, não soubesse apreciar Zé do Caixão.

O novo programa foi batizado de O Estranho Mundo de Zé do Caixão, mesmo nome do filme. Antônio Abujamra bolou uma espécie de teleteatro, em que Zé do Caixão entrava no cenário durante a história e fazia intervenções. O Estranho Mundo era mais refinado e tecnicamente mais complexo que Além, Muito Além do Além. Se na Bandeirantes o tom do programa era realista, na Tupi, Abujamra usava recursos cênicos para imprimir um tom onírico e surreal. A iluminação destacava os personagens e criava o clima desejado; os cenários eram muitas vezes estilizados, como no teatro. Os atores também eram melhores: no lugar dos amadores da escolinha de Mojica, a Tupi convidou profissionais já conhecidos, como Lima Duarte, Débora Duarte, Juca de Oliveira e Irene Ravache.

A direção da emissora sabia que seria difícil convencer seu público a engolir Zé do Caixão. Tanto que pediu a Lucchetti que escrevesse uma introdução para o programa de estreia, destacando os elogios que Mojica recebera dos críticos e dos intelectuais. O texto mais parecia um pedido de desculpas:

- Os mistérios deste mundo são insondáveis. Estamos perambulando num mundo de mistérios e sombras, sem sabermos de onde viemos e para onde vamos. Constantemente nos deparamos com notícias de estranhos fatos, para os quais não se encontra uma explicação lógica. São milagres, aparições, profecias (...) Tudo isso constitui o belo, o incomparável, o pitoresco folclore de todas as terras e todos os povos. Não há país em que não existam fantasmas e duendes, personagens incríveis, autores de mil e uma diabruras. (...) O Canal 4 há muito pretendia fazer um programa em que o tema abordado seria o fantástico, o sobrenatural. Mas não era nossa intenção dar-lhes somente um programa de emoção barata, para impressionar o telespectador pouco exigente... Queríamos ir além... A par do entretenimento, que logicamente tinha que haver, apresentar um programa inteligentemente urdido com narrativas impressionantes de suspense, de surpresa e espera. Enfim, apresentar alguma coisa de autêntica no mundo de fantasia, do sobrenatural e do terror. Somente agora pudemos ver nosso intento coroado de pleno êxito. Para tanto, não medimos esforços e fomos buscar o homem mais discutido no meio artístico e que tem dedicado toda sua vida a sondar os mistérios entre o céu e a terra. Paradoxalmente, é chamado de louco e gênio, de ignorante e intelectual, mas que, indiscutivelmente, nos legou uma verdade: a polêmica em torno de sua obra, um autêntico fenômeno de público e crítica. Esse homem é José Mojica Marins, que, encarnando seu mitológico personagem Zé do Caixão, movimentou a imprensa e agitou os críticos num desafio à inércia dos teóricos, e que hoje já começa a transpor fronteiras. Senhores telespectadores, cuidado! Está no ar o programa que mexerá com seus nervos, mantendo-se inquietos nas suas poltronas e enchendo suas noites de fantasmas...Vamos iniciar a viagem ao estranho mundo de Zé do Caixão...

Em seu monólogo de abertura, Mojica/Zé do Caixão ironizou a aparente incompatibilidade entre seu programa e o público “refinado” da Tupi:

- Eu sei que você não gosta de mim. Eu também não gosto de você! E talvez, na sua ignorância, julgou que estivesse livre de mim, mas não está. Ou melhor, nunca estará! Por que você não tem coragem suficiente para desligar o televisor? Se você me detesta, se me ridiculariza perante seus amigos, por que não se liberta de mim desligando o televisor e indo dormir?

Os azarados que atenderam à sugestão perderam um dos melhores episódios já escritos por Lucchetti: “O açougueiro”, com Lima Duarte no papel-título, interpretando um sujeito que, depois de ter seu casamento arruinado pela sogra, faz picadinho da velha e vende sua carne no açougue. No final da história, Zé do Caixão aparecia sorrindo diabolicamente para a câmera:

- Você não tem sentido um gostinho meio estranho na carne que sua mulher tem preparado ultimamente? Você tem confiança naquele açougue? Já verificou se açougueiro tem uma sogra?

O índice de audiência foi animador: às 23h, no início do programa, a Tupi estava com 10%, atrás da Globo (17%), Record (17%) e Excelsior (16%). Meia hora depois, Mojica ainda mantinha o índice de 10%, enquanto a Excelsior despencava para 5% e a Record, para 2%. A Bandeirantes tinha traço. Naquela noite, O Estranho Mundo de Zé do Caixão só perdeu para a Globo, com 20%. “O açougueiro” fez tanto sucesso que, na semana seguinte, as rádios noticiaram uma queda de 30% na venda de carne em São Paulo.

A audiência continuou alta por mais duas ou três semanas, mas logo começou a cair. Não demorou para o público da Tupi se encher de Mojica; o povão, que curtia as histórias mais realistas do programa da Bandeirantes, não gostou da sofisticação imposta por Abujamra e também parou de assistir. Até o pai de Mojica, Antônio, reclamou:

- Que é isso, meu filho? Você tá muito bonzinho, tá fraco demais!

A emissora fez tudo para tornar Mojica mais atraente a seus telespectadores, inclusive organizando um debate sobre sua obra com participação de Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Fernando Faro. Não funconiou. Abujamra apelou e sugeriu botar Zé do Caixão recitando poemas de Pablo Neruda. Mojica revoltou-se:

- Poesia? Isso é coisa de fresco!

Três meses depois, o programa acabou e Mojica foi para o olho da rua.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

Um comentário:

José Bezerra de Oliveira disse...

Estou ainda mais fascinado co. Mojica! Obrigado, Matheus!