segunda-feira, 20 de março de 2023

Os primeiros tempos do NP I: Um estrategista à solta em São Paulo

 Capítulo 1: Um estrategista à solta em São Paulo

Herbert Levy e Jean Mellé: um casamento inusitado

 

Por Celso de Campos Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima

 

No bairro do Brás, ninguém jamais ouvira um sotaque como aquele. Imigrantes não faltavam naquela região, babel de italianos, portugueses, espanhóis, turcos e libaneses. Mas como aquele sotaque, nunca. Pelas vielas do bairro, os moradores acompanhavam os passos da intimidadora figura de 1,90 metro que parecia crescer em progressão geométrica à medida que se aproximava do interlocutor. Nenhum deles achou por bem perguntar ao sisudo indivíduo a origem de tão estranha mistura de sons: era melhor apenas ajuda-lo a encontrar o endereço que procurava. Afinal, o ano de 1963 estava só começando, e não valia a pena correr o risco de não viver para ver as pernas de Claudia Cardinale, prestes a entrar em cartaz nos cinemas paulistanos com o filme O Leopardo. Assim, de indicação em indicação, o grandalhão finalmente chegou ao sobrado de número 425 da rua do Gasômetro, sede da Gazeta Mercantil. Na recepção, anunciou sua intenção de falar com o proprietário, Herbert Levy, que também acumulava a presidência da União Democrática Nacional (UDN) e uma cadeira na Câmara de Deputados.

A visita, porém, seria breve. Nem bem entrou, o misterioso homem foi obrigado a dar meia-volta e volver. Naquele momento, a secretária de plantão tinha mais chances de marcar uma audiência com o papa do que com o parlamentar paulista. A agenda do empresário e político mal tinha espaço para apontamentos com companheiros udenistas de palanque como Carlos Lacerda e Tenório Cavalcanti; o que dizer então de horários para um sujeito que parecia ter cabulado as aulas de português? Mesmo assim, o visitante fez questão de se apresentar e deixar um recado. Chamava-se Jean Mellé, era jornalista e precisava fazer com urgência com Levy. Não quis adiantar o assunto: preferiu apenas ressaltar a importância de um encontro entre os dois. Era questão de segurança nacional, acrescentou, com o olhar fixo na secretária.

 

Despediu-se da atônita senhora, pegou sua pasta e desceu com firmeza as escadas. Em pouco tempo, Mellé já alcançava a calçada do Cine Glória, a alguns metros dali. Estava consciente que teria de ter um pouco da paciência e uma boa dose de cara-de-pau para conseguir uma reunião com Levy. Queria oferecer o projeto de criação de um jornal popular ao político, mas só poderia revelar o assunto pessoalmente. Não que o plano fosse ultra-secreto ou coisa parecida. Nada disso. Sabia apenas que jamais conseguiria agendar uma reunião se o dono da Gazeta Mercantil tivesse o conhecimento de que o tema da discussão seria o financiamento de um novo produto editorial. Por maior que fosse a alma de empresário embutida no corpo esguio do paulistano, Mellé não poderia contar com o instinto capitalista de Levy na ocasião. Afinal, toda a UDN estava arrepiada com o suposto noivado entre o presidente João “Jango” Goulart e as lideranças comunistas. Caso o casamento se consumasse, de nada adiantaria ter dinheiro no Brasil.

 

O jornalista, porém, estava confiante. Precisava somente de uma oportunidade para convencer o experiente político de que sua publicação vinha a calhar naquele momento. Apostava tanto no projeto que, alguns meses depois, havia pedido demissão do Última Hora para dedicar-se exclusivamente à nova cria. Seu trunfo seria provar a Herbert Levy que o jornal poderia tornar-se um grande aliado na guerra política, uma arma importante contra a ameaça vermelha que tanto procuravam combater. E tinha certeza que o veterano político, com a experiência de ter comandado mais de 5.800 homens na Revolução Constitucionalista de 1932, jamais recusaria essa estratégia de combate. Afinal, o tempo estava correndo contra ao conservadores.

 

No início da década de 60, o Brasil era um barril de pólvora prestes a explodir. O pacto de classes do populismo, que legitimava o controle político do Estado por meio de uma relação paternalista com as camadas populares urbanas, estava seriamente ameaçado pela desaceleração da economia. A industrialização iniciada no Plano e Metas de Juscelino Kubitscheck, a partir de 1956, havia se encerrado, e um de seus resultados mais evidentes fora a diferenciação social nas cidades – que, inevitavelmente, trazia consigo um conflito de interesses e a iminência de um enfrentamento de classes.

 

Com a crise econômica, os setores populares da sociedade, semi-integrados no processo político a partir da Consolidação das Leis do Trabalho, realizada em 1943 por Getúlio Vargas, tornavam-se uma ameaça às camadas dominantes. As reivindicações operárias colocavam em xeque o já agonizante esquema populista, exigindo reformas que certamente romperiam o tênue equilíbrio da época. Para a burguesia industrial tradicional, nada poderia ser mais atemorizante do que um redirecionamento político dos operários, uma classe fundamental como mercado consumidor e mão-de-obra porém perigosa em termos de alianças no jogo de poder.

 

A partir de 1961, a situação agravou-se: os salários reais passaram a cair, a inflação disparara, as greves dos trabalhadores eram cada vez mais frequentes. Para piorar, o ressurgimento da questão agrária, introduzida a partir de 1962 com as ligas camponesas, destruía outro alicerce do pacto populista, recolocando os trabalhadores do campo na vida política brasileira. Além disso, a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, e a conturbada posse de João Goulart, realizada com grande apoio da população, deixaram os conservadores de cabelo em pé: o fantasma das massas voltava a assombrar os palacetes da elite nacional.

 

Era difícil saber o destino do enorme contingente popular no complexo momento político brasileiro da época. O certo era que os trabalhadores era o curinga da ocasião: quem conseguisse seu apoio comandaria a partida. Aqueles que conspiravam contra Jango sabiam que dificilmente poderia executar e manter o tão sonhado golpe de Estado sem uma cobertura popular. Um olho na sardinha, outro no gato: a direita não podia voltar-se contra os populares, mas também tinha de ficar atenta para não perde-los de vista.

 

A essa cautela somava-se a pressão de uma traumática luta contra o relógio. O namoro entre Jango e os comunistas, pior pesadelo para a elite, estava rapidamente tomando formas de realidade. Para os mais conservadores – leia-se União Democrática Nacional -, era a hora de agir. A campanha contra o governo deveria intensificar-se, procurando, ao mesmo tempo, estancar o processo de participação política das massas.

 

Mas ao contrário do que acontecera nos anos 50 contra Getúlio Vargas, a ofensiva não se limitaria ao ataque por meio das camadas médias para acabar com os agentes de politização populares. Desta feita, os cobras udenistas dariam o bote no próprio terreno do adversário, reciclando a velha técnica populista que tanto repudiavam. A burguesia industrial conservadora tinha consciência de que sua comunicação com a população das camadas inferiores da sociedade era inexistente, mesmo porque não havia a menor harmonia entre os pensamentos dos dois grupos sociais. Jamais os empresários haviam bebido na fonte popular, e vice-versa. Mais do que nunca, os conservadores sentiram a necessidade de comunicação.

 

As chamadas Caravanas da Liberdade foram o pontapé inicial dessa pragmática aproximação com as massas. Inauguradas por Juracy Magalhães em 1958, consistiam em uma série de comícios pelo interior do País, buscando popularizar a imagem do partido nos mais distantes rincões nacionais. Era a UDN com ar de povo, cheirando a buchada de bode. Dentre os escalados para comandar o show, estavam medalhões da retórica como Carlos “O Corvo” Lacerda – que admitiu posteriormente o caráter demagógico da empreitada -, Amaral Neto, Tenório Cavalcanti e o próprio Herbert Levy.

 

Contudo, por mais que se esforçassem no corpo-a-corpo com a população, as velhas raposas ainda sentiam falta de um canal mais incisivo para dialogar com as massas. Na verdade, sabiam que precisavam de um instrumento de penetração nas camadas populares que fizesse frente à arma similar do governo. Arma essa, aliás, que era um instrumento mais poderoso que todo um exército de mercenários: o jornal Última Hora.

 

Lançado no Rio de Janeiro em 1951 por Samuel Wainer, com apoio do então presidente Getúlio Vargas, o Última Hora tinha uma intenção clara: propagar a mensagem getulista, solidificando o ideário do populismo no cotidiano dos trabalhadores. Campanhas nacionalistas, de reinvindicação social, de defesa do salário, de luta pela democracia e liberdade eram misturadas aos temas que sempre interessaram ao povo: o esporte – especialmente futebol -, as notícias policiais e outros assuntos de fácil assimilação pelas massas. Essa fórmula produziu um sucesso imediato: rapidamente, o jornal alastra-se por uma cadeia de cidades no Brasil, permanecendo como mais importantes edições do Rio de Janeiro e de São Paulo. De quebra, conseguira chegar ao topo do mercado editorial brasileiro da época, seguido de longe pelo O Estado de S. Paulo e pelas Folhas.

 

Para os conservadores, o Última Hora se identificava com a esquerda. Não que a razão de viver de Wainer fosse comunista ou socialista, mas acompanhava a guinada do populismo getulista, em contrapartida à posição direitista da UDN. Essa caricatura vermelha acentuou-se no início dos anos 60, com a polarização de forças na sociedade – para os conservadores, todas as esquerdas estavam reunidas para conspirar contra a nova democracia liberal prestes a surgir no País. O jornal passou a ser um inimigo em potencial dos udenistas e companhia limitada, pois conduzia um grande contingente de trabalhadores e uma participação política ativa – contrária, obviamente, às posições da elite. Com uma tiragem diária de aproximadamente 200 mil exemplares, era uma grande e, não seria exagero dizer, a única fonte formadora de opinião passa as massas: os liberais sabiam disso.

 

Foi então que Herbert Levy, entre suas idas e vindas para a recém-inaugurada Brasília, recebeu a estranha mensagem da secretária de Gazeta Mercantil. Não se animou a descobrir mais sobre o autor, mesmo porque tinha mais o que fazer do brincar de adivinhas a distância. Alguns dias antes do Carnaval de 1963, entretanto, o político aterrissava para um período de descanso na capital paulista. Frente à insistência da secretária – o homem não parava de cobrar a reunião -, Levy autorizou a funcionária a marcar em sua agenda um horário com o misterioso jornalista.

 

Ao finalmente encontrar-se com Mellé, o político percebeu que tirara a sorte grande. Afinal, antes mesmo de imaginar os benefícios que uma publicação como essa poderia trazer aos conservadores, Levy recebera o projeto pronto e acabado das mãos de um especialista. Mais precisamente, de um experiente jornalista romeno que havia passado temporadas na Sibéria, França e Itália – o que ajudava a explicar o sotaque às vezes incompreensível aos brasileiros. De um mestre do jornalismo popular, com a visão mais popular do jornalismo que se poderia ter notícia. Levy não teve dúvida: Jean Mellé, anticomunista ferrenho, era o timoneiro ideal para conduzir essa publicação. Assim, em um encontro às escuras, nascia o jornal Notícias Populares.

 

Publicado originalmente em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.

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