segunda-feira, 27 de março de 2023

Os primeiros tempos do NP II: Do Inferno branco à rua do Gasômetro

 

Capítulo 2: Do inferno branco à rua do Gasômetro

 

Por Celso de Campos Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima

 

O jornalista Jean Mellé com pose de estadista

A visão de cadáveres jogados ao mar e mulheres dando à luz no emporcalhado convés do Conte Biancamano era uma das lembranças menos traumáticas na vida do romeno Itic Mellé. Quando desembarcou na Baixada Santista, em 1959, pensava já ter comido sua cota do pão que o diabo amassou. Mas bastaram três anos no Brasil para começar a acreditar que o tinhoso estava lhe preparando uma nova fornada. Afinal, a empatia entre Jango e os comunistas ameaçava reabrir as mesmas feridas que, a todo custo, buscava cicatrizar em terras tropicais. Por isso, resolveu procurar o deputado Herbert Levy, outro que temia, embora por motivos diferentes, uma aproximação entre Brasil, União Soviética e China. Deu certo: Mellé serviu como a luva perfeita para as trêmulas mãos da elite conservadora, atormentada pela ameaça vermelha. Mais por sua própria história de vida do que por sua inegável capacidade profissional.

 

Itic Mellé nascera em 3 de junho de 1910, no seio de uma pobre família judia da cidade de Iasi, a 100 quilômetros dos Cárpatos. Mudou-se para a capital, Bucareste, logo após concluir seus estudos básicos. Pouco tempo depois, mudou seu prenome para Jean. Como desde cedo mostrava gosto pelo jornalismo, procurou o redator-chefe de um grande jornal da cidade e foi logo pedindo um emprego de repórter. Para sua sorte, o editor gostou da demonstração de ousadia juvenil e o admitiu em sua empresa. Paralelamente a isso, ingressara na faculdade de Direito, ampliando, assim, seu rol de amizades.

 

Bem relacionado no mundo político – especialmente no Palácio Real, onde imperava o rei Carol II - , Mellé viu sua popularidade crescer com o passar dos anos na sociedade romena. Maduro, resolveu montar seu próprio jornal, batizado de Momentul (O Momento) e subtitulado “Diário Popular de Informação”. Em menos de uma década, fez dele o periódico mais vendido do país, sempre usando e abusando de seu apurado e destemido senso crítico. Mal sabia ele, porém, que essa franqueza, tempos mais tarde, acabaria lhe custando caro. Muito caro.

 

No final de 1947, o exército soviético que já estava na Romênia desde março de 1944, cercou o Palácio Real de Bucareste, forçou a abdicação do rei Michael I e finalmente consolidou o controle sobre o país, declarando-o como mais uma república popular. O ataque era parte do plano do líder georgiano Iosif Vissarionovich Dzhugashvili – ou simplesmente Joseph Stálin – que pretendia vestir todo o globo com o manto comunista. Mellé considerava que os soviéticos já havia explorado demais os romenos – as regiões da Bessarábia, Hertza e a parte setentrional de Bukovina, por exemplo, tinham sido tomadas pelos stalinistas em 1940 -, e não se conformava com as falsas ajudas que os camaradas alardeavam em prol da Romênia. Algum tempo depois, o jornalista não resistiu e soltou o Momentul com a seguinte manchete: RUSSOS ROUBARAM O PÃO DO POVO. A fera vermelha fora cutucada com uma vara tão curta quanto o pavio de Mellé.

 

No dia seguinte, quando se preparava para entrar em sua Mercedes-Benz e rumar ao Momentul, o jornalista foi abordado por dois oficiais comunistas. Os homens o imobilizaram e aplicaram uma injeção de sedativo em suas costas. Quando acordou, Mellé já estava bem longe de sua terra. Havia sido posto em um trem e literalmente descarregado na congelante Sibéria, onde se juntou a outros milhares de presos políticos confinados em campos de trabalhos forçados nas minas de carvão. O inferno branco seria a casa de Mellé por dez longos anos.

 

Durante esse período, o romeno não foi um hóspede propriamente afável para os anfitriões russos. Sua rebeldia causou muita dor de cabeça aos carcereiros: várias insurreições foram por ele encabeçadas, o que o forçava a errar de um campo para outro, em constantes remoções. Claro que essas atitudes voltavam-se contra o próprio jornalista, que era obrigado a sofrer os pesados castigos dos stalinistas. Um deles era manter o prisioneiro nu em buracos cavados no gelo durante 24 ou até mesmo 48 horas. Mellé tornou-se habitué dessas masmorras, mas nem por isso aprendeu a lição. Os soviéticos também esmeravam-se na arte da tortura: inventaram uma espécie de cama onde o prisioneiro deitava-se de bruços com os pés e mãos amarrados, e o instrumento automaticamente se encarregava de fazer um U com o corpo do torturado – em alguns casos, a máquina era capaz de desenhar até mesmo em um O.

 

Alheios a tudo isso, a esposa romena de Mellé, Renne Marcovici, e seu filho pequeno, Radu Henry, receberam da Cruz Vermelha a informação de que Jean Mellé fora dado como morto. A família mudou-se então para a França, onde Renee começou uma nova vida, casando-se pela segunda vez. Apenas a mãe do jornalista, Fanny Huna, ainda acreditava no retorno do filho. Os anos foram passando, e os castigos, aumentando. Mellé, indomável, começou a usar um novo expediente para protestar contra sua situação: greves de fome. Contra isso, a única arma dos soviéticos era uma mangueira colocada goela abaixo dos rebeldes, que despejava caldo de repolho na tentativa de alimentá-los. Na maioria das vezes, todavia, o romeno vomitava o líquido.

 

Em 1958, debilitado ao extremo, ele completava dez anos na Sibéria e incríveis seis meses de greve de fome. Caso seguisse nessa toada, não duraria muito, e se juntaria às 20 milhões de vítimas do longo massacre conduzido pelo antigo líder russo. Para a sorte de Jean Mellé, Nikita Kruschev, o novo chefe soviético, cedeu aos apelos do então presidente americano, Dwight, Eisenhower, e libertou mais de 10 milhões de presos políticos que estavam confinados desde o governo de Stalin, terminado em 1953. O jornalista saiu em uma das primeiras levas e voou até a Áustria.

 

A tão esperada liberdade, contudo, ainda não iria chegar. Oficiais da Romênia – então comandada pelo líder comunista Gheorghe Gheorgiu – Dej – abordaram Mellé no desembarque e levaram-no para uma prisão em Bucareste. Quando finalmente pôs os pés na capital, provocou ataques de incredulidade: todos julgavam estar vendo o espectro do jornalista. Lá, ficou confinado mais um ano. Ao ser libertado, considerou que aquele já não era mais um lugar seguro para viver. Sabendo que sua mulher havia constituído nova família, partiu para Nápoles, na Itália, para dar início à segunda parte de sua vida.

 

A experiência siberiana, como não poderia deixar de ser, marcaria para sempre a vida de Mellé. O fantasma do sequestro jamais o abandonou. De Nápoles, o jornalista, temendo ser preso novamente, viajou para a cosmopolita e democrática Paris, onde tinha amigos e colegas que poderiam ajuda-lo a esquecer o passado. Não adiantou. O continente europeu já não oferecia a segurança da qual precisava para seguir em frente. Assim, voltou a Nápoles, mas apenas para descansar. Já havia decidido o próximo passo: embarcar para o Brasil, país onde seu irmão Victor estava estabelecido. A viagem foi marcada para 13 de julho de 1959.

 

Não se sabe ao certo se Mellé veio para a América Sul apenas para escapar temporariamente das insistentes lembranças da Sibéria ou se já tinha a ideia de mudar-se em definitivo para os trópicos. O fato é que daqui nunca mais saiu. Assim, dezesseis dias depois, em Santos, no litoral de São Paulo, o antes rico e famoso jornalista desembarcava no navio Conte Biancamano com uma pequena maleta na mão e 15 dólares no bolso. O irmão o esperava no porto; juntos, iriam dividir um apartamento na rua dos Gusmões, no coração da capital paulista.

 

Pouco tempo após sua chegada, durante um passeio na avenida São Luiz, o jornalista foi abordado por uma soturna voz. “Mellé”, bradou o homem misterioso. Um tremelique percorreu os quase dois metros do romeno, arrepiando cada fio de seus cabelos crespos. Tinha medo dos comunistas, era sabido, e naquele instante a ameaça voltava com força total. Atemorizado, virou-se e deparou com um rapaz que havia trabalhado na seção esportiva do Momentul, chamado Joseph Halfin. Mais tranquilo, lembrou-se de que Halfin, cerca de dez anos antes, havia pedido a ele que o demitisse do jornal, porque precisava do dinheiro da rescisão para tentar a sorte no Brasil. O chefe, mesmo sem entender muito a ideia, concordara. E assim estavam os dois, frente a frente, a mais de 10 mil quilômetros de Bucareste, debaixo da garoa que caía no centro de São Paulo.

 

Mellé ouviu a história do jovem, que estava trabalhando no Última Hora – posteriormente, Halfin se tornaria diretor da Air France. Levado pelo antigo repórter esportivo, o romeno foi apresentado a Samuel Wainer. Para muitos, era o encontro de três conterrâneos: segundo acusações levantadas por Carlos Lacerda em sua Tribuna da Imprensa, Wainer também nascera na Romênia (as insinuações jamais foram comprovadas). Independentemente disso, começava aí a segunda parte da carreira jornalística de Mellé. Encantado com o estilo moderno do Última Hora, aceitou o convite de Wainer e entregou-se de corpo e alma ao novo emprego.

 

Ali, o ex-editor do Momentul encontrava uma nova casa. Com a fama de ter sido amante de uma ex-miss Romênia e da atriz francesa Jeanne Moreau, um dos maiores símbolos sexuais da época – relações jamais confirmadas ou negadas pelo romeno -, tornou-se o principal colunista internacional do jornal. Publicava diariamente a colune “Jean Mellé Informa” com notas de bastidores do mundo da política. Além disso, ficava nas oficinas até alta madrugada, conversando com os operários e matando a saudade de ver os jornais saindo para as bancas, um hábito perdido havia mais de uma década.

 

Assim, ia ganhando a confiança de todos na redação, localizada, naquela época, próxima ao viaduto Santa Ifigênia. Passou a ser carinhosamente chamado de João de Melo, ou “o francês”, ao que Mellé, em seu português draculesco – mistura de romeno, alemão, inglês e francês – repetia, feliz:” “Eu sou françuso, hahaha”. Embora estivesse bem no jornal de Wainer, não esquecia dos tempos em que era o dono de sua própria publicação, e confidenciava a amigos seu grande sonho de voltar a ser o comandante de uma redação.

 

No final de 1962, a ideia já estava madura. A instabilidade política do País, na ótica de Mellé, obrigava-o a entrar em ação. O jornalista deixou o Última Hora – que, em sua opinião, pendia perigosamente para o lado comunista – para dedicar-se integralmente à elaboração de seu projeto de jornal popular, aos moldes do antigo Momentul. Foram alguns meses de preparação e outras tantas horas de lábia para convencer Levy da importância da publicação. Como um alarme, avisou: se nada mudasse em seis meses, os russos viriam buscar os liberais para coloca-los em calabouços na Sibéria.

 

Diante dessa sombria perspectiva, indicada com tamanho conhecimento de causa pelo romeno, não foi difícil para as partes chegarem a um acordo. Um brinde entre Jean Mellé e Herbert Levy, em 1963, selou o final do período de gestação do jornal. Sem olhar para trás, Mellé partia de mala e cuia para capitanear o Notícias Populares.

 

Não era à toa que Herbert Levy precisava de um comandante para seu periódico popular: para ele, esporte era polo aquático, tênis e natação. Paulistano da Vila Buarque, nascido em 2 de novembro de 1911, era o nono filho de dezena de herdeiros do britânico naturalizado brasileiro Alberto Eduardo Levy, professor e consul honorário da Grã-Bretanha em São Paulo durante quase duas décadas. Formado em Ciências Políticas e Sociais em 1937, pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, tinha longa experiência em jornalismo: trabalhara no São Paulo Jornal, Diário da Noite e Diário Nacional. Como se não bastasse, também era crítico de ópera, fluente em cinco idiomas e havia feito dezenas de viagens internacionais.

 

Com a justificável fama de bom moço, foi, em sua juventude, campeão paulista e brasileiro de natação. Jogando como goleiro, venceu o campeonato paulista de polo aquático – só não defendeu a Seleção Brasileira nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1932, por falta de horário na concorrida agenda. Em 1928, foi o primeiro nadador bandeirante a vencer a disputa de braçada clássica brasileira. Conquistou mais de cem medalhas, cuja maioria – incluindo oito de outo – doou à campanha “Ouro para o bem de São Paulo”, por ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932. A participação de Herbert no levante, entretanto, ultrapassou e muito esse gesto benemérito.

 

Como voluntário, entrou para o Primeiro Batalhão da Milícia Civil Paulista em 9 de julho de 1932. Graças ao recuo das outras forças comprometidas com o movimento, no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais, em pouco tempo já liderava o 2º Pelotão da Segunda Companhia do 6º Batalhão da Força Pública, como segundo-tenente. Ao final da revolução, estava no comando da Coluna Romão Gomes, na frente de Campinas, a essa altura com 5.800 homens – a última a render-se na batalha. Aos 20 anos, havia sido promovido a capitão com funções de general-de-brigada. Sem dúvida, fora um dos civis com maiores responsabilidades militares no combate.

 

Suas habilidades destacam-se no campo dos negócios. Havia criado com os irmãos o Boletim Comercial Levy (1929) e a Revista Financeira Levy (1933), que em 1934 se juntariam com a recém-adquirida Gazeta Mercantil Comercial e Industrial. Sob o título Gazeta Mercantil, anos mais tarde, a publicação se tornaria o principal veículo de informação econômica do País. Isso porque Herbert Levy, mais que qualquer outro jornalista, tinha grande experiência na prática: no ano de 1943, fundara, como auxílio do irmão Haroldo e do filho mais velho, Luiz Carlos, o Banco da América – em 1969, uma fusão com o Itaú daria lugar a uma nova instituição, o Banco Itaú-América S.A., da qual Herbert foi eleito presidente do conselho de administração. Também tinha fortes ligações com o capital agrícola.

 

Na vida pública desde 1927, o empresário participara do Partido Constitucionalista e da União Democrática Brasileira, ao lado de Antônio Carlos de Abreu Sodré, Armando Salles de Oliveira e Waldemar Martins Ferreira. (Além de mentor político de Levy, o professor Waldemar Ferreira se tornaria mais tarde também seu sogro, já que em 1934 Herbert se casou com Wally Martins Ferreira, filha do mestre.) Em 1945, presenciou o nascimento da União Democrática Nacional (UDN). No período de 1937 a 1945, aliás, Levy exerceu oposição ferrenha ao governo Getúlio Vargas – tendo sido preso seis vezes a primeira logo após a formatura na Escola de Sociologia e Política, no qual, como orador da turma, fez severas críticas ao Estado Novo.

 

Em 1947, ingressou na Câmara dos Deputados, de onde sairia apenas quarenta anos depois, após dez mandatos consecutivos. Um dos principais articuladores da candidatura do então governador de São Paulo, Jânio Quadros, à Presidência da República, em 1959, o parlamentar foi eleito presidente nacional da UDN em 1961, na convenção do Recife. Teve como principal tarefa justamente evitar o racha que ameaçou o partido com a ruptura entre Carlos Lacerda e Jânio Quadros, no mesmo ano. Após a renúncia de Jânio, Levy, apenas de ser conduzido inicialmente a UDN ao apoio do sistema parlamentarista, com Jango no poder, logo tornou-se líder da oposição ao governo do gaúcho. Como se vê, as credenciais do empresário são autoexplicativas. Queria distância da esquerda, assim como o diabo corre da cruz.

 

Publicado originalmente em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.

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