segunda-feira, 3 de abril de 2023

Os primeiros tempos do NP III: A sorte está lançada

Capítulo 3: A sorte está lançada

 

Primeira edição do Notícias Populares em 15 de outubro de 1963

Por Celso de Campos Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima

 

No início de 1963, o plano de Levy começava a se concretizar. Em meio ao tiroteio generalizado, com radicalizações da direita e da esquerda, chegava Jean Mellé, trazendo debaixo do braço a proposta de um novo jornal popular nacional. Após consultar alguns conhecidos da colônia romena, especialmente o industrial Ludwig Poenaru, também expulso da Romênia pelos comunistas, Levy comprovou o êxito de Mellé no jornalismo popular em seu país. E, com o ameaçador alerta do jornalista romeno ainda tilintando nos ouvidos, Herbert ordenou a seu filho Luiz Fernando, então com 24 anos, dar prioridade total à nova publicação.

 

A ideia era contra-atacar o Última Hora na mesma moeda – ou seja, criar um veículo com os mesmos alicerces jornalísticos (sexo, crimes, esporte, sindicatos), mas orientado pela visão conservadora. A dupla não queria lucro algum com o periódico. O objetivo era um só: roubar o público do UH e evitar a penetração da mensagem populista nas classes trabalhadoras. Com o lançamento do novo jornal, os udenistas não visavam, pelo menos a princípio, a adesão das massas. A ideia era apenas impedir que o apoio pendesse para o terreno do adversário, buscando a desmobilização da população em torno dos temas políticos.

 

Mais que um produto informativo ou de entretenimento, a nova publicação deveria ser acima de tudo política – procurando, paradoxalmente, evitar trazer temas políticos em suas páginas. Sua meta era neutralizar a ação do Última Hora nas classes populares, utilizando uma aparente e falsa neutralidade. Não procuraria tentar formar opiniões – trabalho esse realizado à exaustão pelo concorrente -, e sim veicular notícias que restabelecessem a versão distorcida, segundo a ótica da direita, pelo periódico de Wainer. Na visão dos Levy, o povo deveria ter acesso a um jornal construtivo, que se contrapunha à visão negativa que o UH dava à situação política do país, criando confrontos entre empresários e os sindicalistas.

 

Assim, foi constituída, em 19 de abril de 1963, a Editora Notícias Populares S.A., com sede própria na rua do Gasômetro, no Brás, e escritório administrativo na rua São Bento, no Centro. No dia seguinte, o Diário Oficial do Estado anunciava a formação da empresa, com um capital de 130 mil cruzeiros. De acordo com o plano inicial, a maior parte do dinheiro levantado para lançar a empreitada seria fornecida por Herbert Levy e seus filhos. Empresários como José Ermírio de Moraes Filho, Luiz Pinto Thomaz e João Arruda também haviam se comprometido a contribuir por meio da compra de ações. A ajuda, porém, ficou apenas na promessa.

 

A Jean Mellé coube a tarefa de montar a equipe de jornalistas para dar sustentação à ideia. Nesse ponto, o romeno tratou de compensar a tosca organização administrativa cercando-se de nomes de peso – a maioria, como ele, migrada da redação do Última Hora, de onde haviam sido tirados com propostas de salário até três vezes maiores. O time contava com Narciso Kalili (secretário de redação); Ramão Gomes Portão (editor de polícia), Cícero Leonel (chefe de reportagem), Sílvio Sena (editor-chefe), Carlos Tavares, Sérgio Pompeu e Mauro Santayna (redatores); Dalmo Pessoa, Vital Battaglia, Rui Falcão, Adriano Neiva – o De Vaney -, Tão Gomes Pinto e Celso Brandão (esporte); Percival de Souza e José Carlos Bittencourt (geral).

 

Completavam o elenco correspondentes em Brasília, Rio de Janeiro, Santos e Paris – onde trabalharia o filho de Mellé, Radu Henry – e diamantes lapidados pelo romeno, como Álvaro Luiz Assumpção, o Meninão. Figura badalada da alta sociedade, Meninão foi encarregado de fazer coluna social para o Notícias Populares. Precursor de uma tendência que dominou os jornais brasileiros nos anos seguintes, o ex-playboy revolucionou o gênero, misturando notas quentes sobre política e economia no espaço reservado à cobertura da vida noturna, a seção “Em Dia com a Noite”.

 

Outros medalhões assinariam colunas no jornal, como Moracy do Val (que escreveria a seção “Show”, sobre variedades) e Cláudio Marques (“Caixa Alta”, com notas sobre política e sociedade). Por sorte, o principal cronista brasileiro, Nelson Rodrigues, já não escrevia mais para os concorrentes Última Hora, onde teve espaço cativo até 1961, ou Diário da Noite, em que gastou dez meses, até julho de 1962. O passe de Nelson era do Globo carioca, mas suas colunas não estavam sendo reproduzidas em São Paulo. Era mais uma excelente oportunidade de enobrecer o projeto de Jean Mellé. A partir de 1963, as páginas do Notícias Populares estariam mostrando “A Vida como Ela É...”.

 

Inicialmente, o romeno queria batizar a publicação de O Momento, homenagem à sua antiga cria. Como o nome já estava registrado por outra empresa jornalística, Mellé buscou um título forte, que ia direto ao assunto e chegou em Notícias Populares. Sugestão prontamente aceita, era hora de fazer a propaganda entre os empresários e a população. Pouco menos de um mês antes do lançamento, uma pequena nota encontrada numa coluna na Folha de S. Paulo entregava completamente o ouro que Levy e os colaboradores udenistas queriam esconder dos leitores. O texto, de 22 de agosto de 1963, diz o seguinte:

 

Jean Mellé, que vai ser o ‘cap’ editorial de Notícias Populares, esteve explicando a homens de livre empresa, num almoço em casa do deputado Herbert Levy, o que virá a ser o seu dinâmico vespertino anticomunista. Estou sabendo que os ‘bigs’ em torno da mesa já acertaram propaganda para o jornal durante um ano. Depois desse ano, só se o Notícias Populares tiveram realmente leitores e cada nada de dez ou quinze mil exemplares...

 

Compara-se esse trecho ao editorial trazido na capa da primeira edição de Notícias Populares, colocada nas bancas em 15 de outubro de 1963, uma terça-feira, com tiragem de cerca de 15 mil exemplares (a grafia original foi mantida):

 

UM JORNAL EM SUAS MÃOS

São Paulo, tem a partir de hoje, mais um jornal. Precisamente este, que V. agora manuseia com o mesmo sentido crítico com quer o povo forma e derruba governos. E é um jornal, acreditamos, feito ao seu gosto, destinado a resistir a este mesmo exame a que seus olhos e sua inteligência o submetem: pela sua feição gráfica, pelo seu conteúdo informativo. Tivemos, como ocorre em todo empreendimento, nossos momentos difíceis, noites de vigília, enquanto a rotativa desenrolava das bobinas sucessivas pre-estreias. Somos, os que se propõem a lhe oferecer um jornal de primeira qualidade, povo como V. Por isto, os números que rodamos antes e que não chegaram às suas mãos sofreram o mesmo crivo, sucessivamente, até que nos decidimos a pô-lo na rua, fazendo-o chegar a V. Examine-o, por dentro e por fora, como o fizemos antes. Ele é seu, agora, como antes já foi nosso: elaboramo-lo, pacientemente, a V.

Não procure, nestas páginas, intenções políticas. Isto o cansaria sem resultado. Outro intuito não há, senão o de dar a V. a visão cotidiana de São Paulo, do Brasil, do mundo em que vivemos. Um mundo nem sempre bom, mas cheio de mensagens otimistas: de pujança científica, de solidariedade entre os povos, de trabalho – por entre todas as dificuldades inerentes à própria essência de coisa viva. Um mundo belo, enfim, pois, quando mais se agrupam estas dificuldades, delas tira a humanidade suas páginas mais gloriosas. E esta é a luta, com esteios de fé e halos de esperança que traremos diariamente a V.

TODOS NÓS.

 

Ora, se o “povo forma e derruba governos”, por que o Notícias Populares não trataria dos assuntos políticos? Estava ali, já na primeira manchete: GREVE NAS ESCOLAS HOJE: PROFESSORES RECUSAM PROPOSTA. Seria essa uma das mensagens otimistas a que o editorial se referia? A contradição com a proposta veiculada pela apresentação do jornal era evidente no início da trajetória do Notícias Populares, que também passaria a ser conhecida pela sigla NP. A pomposa conversa do editorial, se passada pelo referido “sentido crítico do povo” não colava. Mas, como as elites sempre tiveram a certeza de que o povo não pensa, os comandantes do Notícias Populares apostaram nesse jogo de aparências.

 

A primeira página da primeira edição trazia ainda chamadas policiais e uma foto de Brigitte Bardot, a líder absoluta no ranking oficial dos colírios de Mellé, seguida pelas não menos famosas e desejadas Catherine Deneuve e Elizabeth Taylor. O preço de cada exemplar, 20 cruzeiros, também era uma exigência do romeno. Para ele, uma publicação como o NP deveria custar no mínio 50% menos que os concorrentes da grande imprensa – o Última Hora, o Diário Popular e a Folha de S. Paulo, por exemplo, custavam Cr$ 30 cada um. Suas convicções quase dogmáticas sobre fórmulas como essa convenciam qualquer um. A marca do romeno também se fazia textualmente presente no Notícias Populares: na página 3, ressurgia a coluna “Jean Mellé Informa”, com notas sobre política nacional e internacional – outra atração importada do Última Hora.

 

O noticiário era bem balanceado, com espaços parecidos para política, internacional, esporte e polícia. Havia ainda quadrinhos, horóscopo e turfe, além das numerosas colunas, que passariam a ser uma das marcas indeléveis do jornal. Além de sua tradicional “Jean Mellé Informa”, o chefão romeno alimentava a coluna “Mundo na Imprensa” com notas da Time americana e de outras publicações que costumava ler ainda na Europa, como Le Monde e L´Observateur, da França, e jornais russos. A partir de fevereiro de 1965, Mellé ainda iria assumir um espaço de fofocas na página de variedades. Com a saída de Cláudio Marques, o romeno se tornou também o titular da coluna “Caixa Alta”. Pouca gente, porém, ficou sabendo disso: a seção seria assinada sob o gracioso pseudônimo de Jackie Cassino.

 

A primeira sede do Notícias Populares, localizada em um sobrado na rua do Gasômetro, 425, retratava bem a primária organização empresarial de um periódico que estava, acima de tudo, a serviço da política. A redação ficava no primeiro andar: subindo as escadas, a sala de Mellé situava-se em um canto à direita, contraposta a um grande salão onde as máquinas de escrever estavam em prateleiras afixadas na parede – mesas, inicialmente, só para os editores. Para escrever uma matéria, o repórter apenas puxava uma cadeira e começava a dedilhar as Remington e Olivetti, concretizando o projeto de Levy e, principalmente de Mellé. A exemplo de seu antigo chefe Samuel Wainer, o romeno parecia ter encontrado sua razão de viver.

 

No térreo, ficavam as mambembes rotativas do jornal. Já bem capengas para a época, mal davam conta do serviço que necessitavam realizar – puro exemplo do tosco arranjo da Sociedade Anônima. A bem da verdade, elas eram as mesmas que antes imprimiam os 3 mil exemplares da então tímida Gazeta Mercantil. O folclore continuava: para o cargo de retocador de fotografia, foi recrutado um cantor de ópera, conhecido apenas como Paulo. Com os minguados recursos para sua gráfica, uma das grandes preocupações de Mellé nos primeiros anos do NP era a economia e a redução de custos: a ordem era reaproveitar ao máximo tudo que pudesse ser reaproveitado.

 

Exemplo claro dessa política verifica-se com os clichês, as placas de zinco usadas para a impressão tipográfica. Uma vez usados, podiam ser fundidos e reutilizados. O romeno, tão logo uma edição acabava de ser rodada, já saía como um louco atrás do clichê. A postura de Mellé era tão incisiva que a redação da época já sabia o que fazer antes mesmo de qualquer pedido do romeno. “Se você buscou clichêu, não aha/ Desce embaixa, desce ambaixa...” Os versos cantarolados pelos jornalistas foram compostos pela “Rita Pavone” da redação- este era o apelido do repórter Renato Lombardi, que se tornaria um dos principais especialistas em jornalismo policial no Brasil. A marchinha parodiava o sotaque do chefe e referia-se à sagrada tarefa de descer à gráfica para recuperas as placas metálicas.

 

O dialeto do veterano jornalista, aliás, merecia um capítulo à parte. Como já foi citado, o português de Mellé era uma salada romena – razão pela qual tudo o que escrevia era revisado e muitas vezes reescrito pelos jornalistas de maior confiança do chefão, como Sílvio Sena. O romeno aprendeu que o indicativo do gênero masculino era a letra “o”. Assim, qualquer jornalista homem virava jornalisto, artista era artisto e assim por diante. Por associação lógica com o termo tabagista, Mellé tratava os bêbados de pingagistos, e qualquer bandido, mesmo aquele que roubava galinhas na periferia de Diadema, era um gângstero. Uma vez, querendo escrever piscina, grafou bacilo d´água.

 

Essa difícil relação com o português pode ser bem dimensionada tomando-se por base um episódio ocorrido ainda no início do jornal. A grande notícia do dia era a de que a chuva inundara a cidade. Na manchete, espaço de três linhas com onze toques em caixa alta. A versão do romeno: ENCHENTE CATASTROFAL EM SP. Mesmo alertado pelos jornalistas do equívoco, Mellé não dava braço a torcer. “Não pode, seu Mellé, esse termo não existe. O certo é ‘enchente catastrófica’”, explicavam os colegas de redação. “Mas aí não dá o tamanha”, respondia o chefe. Resignado, o romeno cedeu aos apelos ortográficos e desistiu de seu simpático neologismo – não sem antes murmurar: “Esse língua portuguesa...”

 

Mesmo com todos os problemas nas semanas seguintes ao lançamento, o jornal alcançava uma tiragem razoável, estimada entre 20 e 30 mil exemplares. Nada, portanto, que entusiasmasse o romeno, que pretendia reeditar o NP o êxito de seu Momentul. Mas Mellé punha muita fé em seu próprio taco; com o faro aguçado, confidenciava que precisava de apenas um episódio de grande destaque para fazer as rotativas trabalharem até dizer chega. O que ele não sabia, entretanto, é que já na edição de 12 de novembro esse fato estava anunciado. Sob o título NP REVELA AS PREVISÕES PARA 1964, a adivinha Jeanne Laplace bradava que John Fitzgerald Kennedy, então presidente dos Estados Unidos, deixaria o poder. Outra vidente, Jacqueline Malley, previra “a eliminação de Kennedy das eleições de 1964, por motivos de saúde”.

 

Bem, quase certo. Dez dias depois, em 22 de novembro de 1963, em Dallas, Lee Harvey Oswald eliminou para sempre o admirado político ianque. Grande fã de JFK, Jean Mellé não desperdiçou a oportunidade. No dia seguinte, soltou uma manchete fiel a seu estilo, em letras garrafais: KENNEDY ASSASSINADO. Com uma biografia caprichada, o último discurso do presidente e a cobertura da prisão de Osvald, a edição estava esgotada. Em sua coluna, Mellé escreveu: “Assassinato de Kennedy modificará os destinos dos EUA e de todo o mundo”. Poderia ter escrito também que o fato modificaria a história do jornal: aquele era o marco que consolidava o Notícias Populares como um dos periódicos mais vendidos do país.

 

No dia seguinte à tragédia, o NP noticiava a repercussão do crime e a morte do assassino. Em 28 de novembro, o jornal entrou na discussão das teorias conspiratórias sobre o crime e publicou uma reconstituição do assassinato. De posse com um carro conversível emprestado por Meninão e de um rifle tcheco calibre 22, os repórteres Cícero Leonel, Wilson Santo e Walter Marcondes foram até um prédio da avenida Dom Pedro I, no Cambuci, zona sul paulistana. Simulando o cenário do crime em Dallas, fotografaram os momentos de agonia do presidente morto com a ajuda de um técnico de armas da Casa Ao Gaúcho.

 

No dia seguinte, 29 de novembro, o assunto já tinha pouco destaque nos outros jornais, mas o NP noticiava na manchete: JACQUELINE NO BRASIL. A viúva mais famosa do planeta não estava a caminho do país – a notícia era que João Goulart havia apenas convidado Jackie para substituir o marido na visita oficial que o presidente faria no início de 1964. Não importa: a edição foi um sucesso de vendas. O Notícias Populares já havia caído nas graças do trabalhador, e ganhava, assim, condições de cumprir seu papel para a UDN.

 

Publicado originalmente em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.

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