Por Jece Valadão
OS CAFAJESTES, O FILME
Em 1960, resolvi
investir tudo o que tinha num filme baseado em um argumento criado por mim
sobre dois malandros. Chamei o Miguel Torres, que era um roteirista maravilhoso,
e o Ruy Guerra e disse: “Quero que vocês façam um roteiro com a história de um
malandro pobre e outro rico que armam um esquema para fazer chantagem com a
mulher de um banqueiro, que, por sua vez, é tio do malandro rico”.
O acordo entre os dois
malandros era de que o rico ficaria com o dinheiro e o pobre, com o carro.
Porque o carro, para o meu personagem, o cafajeste pobre, era a arma de
trabalho.
Um cafajeste sem carro não é nada; tem de ter carro.
O filme foi um sucesso
e criou definitivamente a imagem do cafajeste. A partir daí minha imagem foi
sempre relacionada ao cafajeste.
(...)
A OUSADIA DO CAFAJESTE
Quando lancei Nelson
Rodrigues no cinema, produzindo e atuando no filme Boca de Ouro, as pessoas me
chamaram de louco, porque o Nelson era considera um autor de teatro maldito.
Levar o Nelson
Rodrigues para o cinema era muito diferente de fazer uma peça dele no teatro. O
público do teatro é muito menor e mais selecionado. O povão não vai ou, pelo
menos, não ia ao teatro.
Já o cinema é outra
coisa. Tem um público muito maior e mais misturado. E mesmo assim, no teatro já
era uma loucura.
Cada vez que o Nelson
Rodrigues lançava uma peça no Rio de Janeira era uma polêmica; o público se
dividia: metade aplaudia, metade vaiava. Saiu até tiro na plateia na estreia de
Perdoa-me por Te Traíres no
Municipal.
Agora, eu era muito
ousado, muito folgado. Apesar da censura que havia na época, capaz de proibir
até a vinda do Balé de Bolshoi e da Ópera de Pequim, resolvi lançar Nelson
Rodrigues no cinema.
Comprei os direitos de Boca de Ouro e produzi o filme. Foi um
tremendo investimento e também um tremendo envolvimento. Por isso, a censura
foi obrigada a engolir o filme.
Se bem que isso não era nenhuma novidade. Todos os meus filmes eram proibidos, e eu não queria nem saber. Ia para Brasília, discutia, fazia amizade com não sei quem, rolava para lá, rolava para cá. Aí a censura fazia um cortezinho aqui, outro ali. Eu tapeava, não cortava merda nenhuma e o filme passava; do jeito que eu queria. Era muita ousadia.
OUSADIA 2
Logo depois de lançar
Nelson Rodrigues no cinema, resolvi lançar Plínio Marcos, que era outro autor
proibido. Apesar de a peça Navalha na
Carne estar proibida, comprei os direitos e resolvi filmar.
Aí o que eu fiz? Mandei o filme para o festival em Nova York. O filme ganhou o prêmio da crítica e a censura daqui não pode dizer nada. Quer dizer, o patrão lá aprovou, então tiveram de aprovar o filme aqui também.
Foi uma situação
bastante absurda. A peça estava proibida no teatro, mas foi liberada no cinema.
Minha vida sempre foi
assim. Eu não sei bem de onde vem essa ousadia; mas sempre apostei no que
acredito.
(...)
OS CAFAJESTES: O FILME
A partir de vários
personagens que eu fui fazendo no teatro, baseados no malandro, e, ainda, da
convivência com os cafajestes reais, que foram minhas “musas” inspiradoras,
encomendei um roteiro para o Ruy Guerra e o Miguel Torres sobre dois
cafajestes.
Em 1960, começamos a
filmar Os Cafajestes.
O filme mostra bem “quem
é” o cafajeste; como ele age em função dos seus próprios interesses.
RUY GUERRA E OS
CAFAJESTES
O Ruy Guerra era muito
conhecido por não gostar de terminar os filmes que fazia. Gostava de começar,
mas não gostava de acabar.
Um tempo antes de
filmar Os Cafajestes, ele começou um filme do Carlos Niemayer, chamado Oxum não
sei de que, que a atriz Irma Álvares teve que raspar a cabeça para fazer o
personagem. Mesmo assim, o Ruy não acabou o filme. Quase levou o produtor à
falência. Depois começou outro filme, da Vanja Orico, e também não acabou.
Mas, apesar disso, eu
achava que o Ruy Guerra tinha muito talento e resolvi trabalhar com ele. Falei
para ele: “Olha, você vai fazer o meu filme; mas o meu, você vai acabar”. E
acabou na porrada.
ACABOU NA PORRADA
Ele não queria acabar,
não. Por isso eu tive de sair na porrada com ele. Brigamos de tapa mesmo.
Ele é mais baixo do que eu e tinha mania de brigar pulando, briga de português; o Ruy é português, de Angola.
Ele pulava na minha
frente, eu dava tapa no ouvido, ele pulava outra vez, mais um tapa. E assim
para cada pulo, um tapa.
Deu trabalho, mas ele acabou o filme.
Só que, depois de toda essa briga, ele ficou sem falar comigo uns dez anos.
Mas isso são águas
passadas, não importa mais.
Outro dia recebi um
telefonema da filha dele com a Leila Diniz. Adorei conhecê-la.
OS CAFAJESTES NO
BRASIL: REPERCUSSÃO
O filme foi muito mal
recebido no Brasil. A crítica desceu a ripa e o público detestava. Só que,
apesar de todo mundo detestar, todos iam ver. Por vários motivos.
Pela primeira vez o
cinema mostrou como se enrola um baseado. Na época em que o filme foi lançado a
maconha era considerada o máximo, mas ainda era tabu. Maconheiro era associado
ao morro, ao pobre.
Tinha também, a própria
atitude dos personagens. Os cafajestes pegavam duas meninas com a Bíblia na mão
e gozavam delas, lendo com ironia trechos do livro. Era uma agressão à igreja, que
na época tinha muita força.
E, pela primeira vez no
cinema mundial, aparecia uma mulher em nu frontal, por um longo tempo.
Isso tudo aliado á
linguagem cinematográfica do filme, avançadíssima até hoje (um mérito exclusivo
do Ruy Guerra).
O resultado disso é
que, mesmo sem gostar, o público ia em massa assistir o filme.
O SUCESSO DOS
CAFAJESTES
O filme deu uma grana
violenta e criou um problema, um caos no Brasil.
Era uma loucura. Quando Os Cafajestes ia estrear numa cidade, vinha o governo do Estado, pressionado pela sociedade, pelas agremiações, pela Igreja e proibia a fita.
Aí eu tinha que entrar com uma liminar, porque a liberação era federal, e o governo do Estado não podia proibir.
Só que, acabando a luta
contra a censura em uma cidade, o filme ia estrear em outra cidade e acontecia
a mesma coisa.
Como consequência, onde
o filme ia eu tinha que ir junto para liberar a fita com medida liminar.
Deu um trabalho
desgraçado. Mas onde estreava, estourava a bilheteria.
Por causa dessa
repercussão, fomos convidados a participar do festival de Berlim, onde ganhamos
um prêmio e, ainda, tivemos matérias nas principais revistas e jornais europeus
e americanos elogiando o filme; colocando-o nos cornos da lua.
Obviamente, depois dessa repercussão no exterior, muita coisa mudou na carreira do filme aqui no Brasil.
A crítica, que tinha arrasado com o filme, dizendo que era uma droga, que as inovações do Ruy Guerra eram erros de continuidade e assim por diante, mudou totalmente de opinião.
Originalmente publicado em: VALADÃO, Jece. Memórias de Um Cafajeste. São Paulo: Geração Editorial, 1996.
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