Por Jece Valadão
Dulce
Rodrigues
A Dulce foi a pessoa
mais pura que eu conheci.
Já eu, fui muito mal
com ela. Fiz muita maldade que ela não merecia. Ela me amava demais.
O curioso é que até me
conhecer pessoalmente, a Dulce tinha um ódio mortal de mim.
Herança
Nossa história começou
quando a Dulce resolveu montar uma companhia de teatro com o dinheiro que ela
havia recebido da indenização por causa do empastelamento do jornal do pai
dela, o Mário Rodrigues.
O jornal tinha sido
fechado pelo Governo em 1930. Logo depois a família entrou com um processo, mas
só em 1957 recebeu a indenização.
Essa história do
processo era uma coisa pública; todo mundo no Rio de Janeiro sabia disso,
inclusive eu. Tanto é que, quando casei, acreditei estar dando o maior golpe do
baú.
Só que, para minha
decepção, era um baú furado!
A
Mulher Sem Pecado
A primeira peça que a
companhia da Dulce ia montar era A Mulher
Sem Pecado, do Nelson Rodrigues, seu irmão.
Antes disso, a Dulce já
tinha feito várias peças, inclusive Valsa Número 6, que o Nelson escreveu
especialmente para ela.
Bem, para fazer A Mulher Sem Pecado ela alugou o Teatro
Serrador, que na época era muito importante no Rio de Janeiro, contratou o
diretor, o Rodolfo Mayer, e oa atores.
Só que estava faltando o ator que iria interpretar o Humberto, o motorista, que era o cafajeste da história.
Como eu tinha acabado
de fazer o malandro do Rio 40 Graus,
com muita repercussão, o Rodolfo me indicou para fazer o Humberto.
A Dulce, louca da vida,
vetou totalmente meu nome, alegando que eu era cafajeste de verdade e ela não
me queria de jeito nenhum.
O Rodolfo insistiu...e
lá fui eu falar com ela.
Apesar de me olhar com
desdém, ela teve que me engolir.
A
Mulher Sem Pecado foi minha estreia no teatro.
O
beijo
Tinha uma cena na peça
em que eu dava um beijo na Dulce.
Só que a Dulce tinha
tanto horror de mim que me obrigava a fazer um verdadeiro malabarismo, me
entortar todo para fingir que a estava beijando, mas sem tocar a minha boca na
dela.
Eu ficava de costas
para a plateia; a minha boca a quilômetros de distância da dela.
Mas isso aconteceu só
nos ensaios, porque, no dia da estreia, pensei: “Hoje eu vou pegar essa
mulher”.
Meti-lhe um tremendo
beijo de língua.
Ela ficou louca, quase
morreu em cena. Perdeu o rebolado.
A Dulce era tão pura que, pelo fato de eu tê-la beijado, disse que queria casar comigo.
Para ela, aquele beijo
era quase o mesmo que perder a virgindade. Uma declaração de amor total.
Golpe
do baú
No dia seguinte, ela já
me convido8u para ir conhecer o apartamento da família dela no Parque Guinle. A
área mais nobre do Rio.
O apartamento era
enorme, tinha 1.200 metros quadrados. Uma maravilha, com tapetes, quadros,
mobílias caríssimas da Oca...Antes de a família Rodrigues mudar para lá, o
apartamento tinha sido a sede da embaixada da Itália no Brasil.
Quando eu vi, levei um
susto. Eu tinha vindo de Cachoeiro, filho de ferroviário, lutava como um louco
para sobreviver no Rio de Janeiro, dava um duro danado para não morrer de
fome...
Na hora decidi: era com
ela que eu ia me casar.
Eu já tinha casado duas
vezes, mais uma, não iria fazer mal.
Virgindade
Um dia antes do
casamento no civil, a Dulce me chamou no teatro e disse que tinha uma coisa importantíssima
para falar para mim.
Nós sentamos na plateia
escura e ela falou que tinha de confessar uma coisa e que, se eu quisesse,
depois de ouvir a confissão dela poderia desistir de tudo.
Depois desse suspense
todo, ela me contou que não era mais virgem.
Eu, que nunca liguei
para essas coisas, respondi que não tinha problema. Não ia desistir daquele
“empreendimento” por tão pouco.
Mas pensei também que,
se ela não era mais virgem, poderíamos dormid juntos antes do casamento no
religioso. Pura ilusão.
Quinze
dias
A Dulce e a família
dela eram tão loucas, que durante os quinze dias entre o casamento no civil e
no religioso, ela não dormiu comigo. Não deu nem a pau.
Mesmo não sendo mais
virgem.
“Graças” aos conselhos
que recebeu da família.
O
casamento
O casamento na igreja
foi maravilhoso. Foi um dos casamentos mais badalados da época, com a presença
de pessoas importantíssimas: gente como o ministro Galotti, o Grande Otelo, que
era uma das estrelas dos anos 50, o Roberto Marinho, o Hélio Pellegrini, todas
as pessoas que faziam notícia; e eram amigas da família Rodrigues.
Depois da cerimônia
teve uma festa incrível, uma recepção enorme no Parque Guinle.
Baú furado
Os irmãos e a mãe da
Dulce me olhavam sempre de esguelha. Diziam que eu estava dando o golpe do baú.
Só que, como eles
sabiam melhor que eu, o baú era furado.
O dinheiro tinha
acabado. E eu tive que trabalhar como um louco para sustentar a Dulce e meus
filhos.
Casei pensando em
melhorar de vida, mas depois, acabei gostando da Dulce. Era uma mulher
maravilhosa e me deu dois filhos maravilhosos.
Em 58 nasceu o meu
filho Alberto e logo depois a Stelinha. Duas pessoas que eu amo muito.
(...)
Família
Nessa época, o
casamento já andava estremecido. Não por causa da Dulce, mas por causa da
família que era contra o casamento.
A família inteira já
sabia que eu tinha uma garçonière e
várias amantes. Era uma loucura. A Dulce
me defendia com unhas e dentes e eles eram obrigados a me tratar bem por causa
dela.
O Nelson também tinha
amantes, mas ninguém sabia. Ele era muito mais discreto que eu.
(...)
NELSON
RODRIGUES
O Nelson me considerava
um excelente ator. Adorava que eu interpretasse os papéis que ele escrevia,
achava que eu era um ator perfeito para o tipo de personagem que ele criava.
E eu realmente gosto
muito dos diálogos que ele escreveu.
Mas como cunhado ele
não me admitia não. Achava que eu era um cafajeste e que só queria o dinheiro.
Um dinheiro que nem existia.
Uma incoerência que eu
nunca consegui fazer a família entender.
O
FIM
Meu casamento com a
Dulce durou catorze anos. Terminou quando eu conheci a Vera Gimenez e fiquei
completamente apaixonado por ela.
Aí cheguei para a Dulce
e perguntei o que ela queria para eu ir embora. “Quero tudo”. Saí com a roupa
do corpo.
Ela ficou louca; me
amava demais.
Até
a morte
Quando a Dulce era
solteira, era muito bonita. Mas depois que teve filhos engordou e relaxou.
Mesmo depois de
separada de mim, ela me defendia. Defendeu até morrer.
(...)
Fiz várias coisas assim
para ela; coisas que ela não merecia.
Hoje eu reconheço que a
Dulce era uma pessoa muito boa e peço perdão a ela. Espero que, onde ela
estiver, me perdoe.
(...)
PAULINHO
Meu cunhado preferido
era o Paulo Rodrigues, o Paulinho. Ele era o mais humilde e talentossísimo.
Trabalhava como jornalista no Globo e escreveu vários livros.
A
tragédia
O Paulinho morava com a
mulher, Maria Natália, a sogra e os dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, em
um edifício de quatro andares, sem elevador, nas Laranjeiras.
Eu ia muito à casa
dele; ia jantar, jogar baralho, fazer leituras, conversar; e ele ia muito ao
meu apartamento.
Como era habitual, num
final de semana que a Dulce viajou com as crianças e fiquei no Rio, combinei de
ir jantar e jogar baralho na casa do Paulinho.
Peguei o carro- eu
morava no Flamengo- e fui para
Laranjeiras. Eram mais ou menos sete ou oito da noite.
Quando cheguei na porta
do edifício do Paulinho, olhei bem e desisti. Fiquei com preguiça de subir
aqueles três andares de escada.
Dei marcha-ré e fui pro
cinema. De lá fui para uma boate, onde fiquei até de madrugada.
Chegando em casa, o
telefone toca. Por causa da chuva, o edifício do Paulinho tinha caído,
exatamente na hora em que eu estava no cinema. Morreu a família inteirinha.
Era pra eu morrer
junto.
Até hoje não sei porque
desisti de jantar lá. Tinha combinado com ele era um hábito meu ir à casa dele.
Originalmente
publicado em: VALADÃO, Jece. Memórias de Um Cafajeste. São Paulo:
Geração Editorial, 1996.
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