Por Jece Valadão
Quando eu ainda era
criança, em Cachoeiro do Itapemirim, fiz minhas primeiras experiências com
“cinema”. Isso em 1940, 1941.
Eu pedia para um amigo
meu, que era projecionista do cinema da cidade, pedaços de filmes. Aí eu pegava
uma caixa de sapato, colocava uma lente na frente, uma lâmpada atrás e
projetava para meus amigos dizendo que era “cinema”. Na verdade, era um
protótipo de um projetor de slides.
Meus amigos pagavam com
bala, dinheiro, qualquer coisa, para assistir às minhas projeções.
Além de fazer essas
projeções, eu também ia assistir filmes, inclusive proibidos, na cabine de
projeção, a convite do meu amigo.
Quer dizer, desde os
dez anos de idade que eu tenho na cabeça o negócio de cinema.
ATLÂNTIDA
Estreei em cinema em
1952, quando ainda trabalhava como locutor na rádio Tupi.
Na época, a Atlântida
era o grande estúdio do Brasil. Lá trabalhavam as grandes estrelas: Oscarito,
Grande Otelo, Cyll Farney, Fada Santoro, Eliana; e os grandes diretores: José
Carlos Burle, Watson Macedo, Carlos Manga, Jorge Yleli, Paulo Wanderley, Cajado
Filho...Carlos Manga era o assistente de direção.
Obviamente entrar na
Atlântida era a coisa mais difícil do mundo, para qualquer um; e muito mais
para mim, que não tinha qualquer ligação com o cinema.
Primeiro
trabalho em cinema.
Um dia me deu um estalo
e pensei: “É hoje que vou entrar pro cinema”.
Cheguei na Atlântida
com a maior cara de pau do mundo e disse que queria trabalhar como figurante.
Me deram um formulário
para preencher com milhares de perguntas: nome, endereço, “sabe nadar?”, “sabe
luta livre?”, “pilota avião?”, “pilota helicóptero?”, “fala inglês?”, “fala
alemão?”, “tem smoking?”, “tem casaca?”, “sabe dançar?”...
Respondi tudo que sim e
assinei.
Quando o responsável
pelas contratações leu, deve ter pensado que eu era um gênio da raça ou um
louco. Era simplesmente impossível saber tudo aquilo.
De qualquer jeito, deu
resultado. Chamaram-me na Atlântida e fizeram várias perguntas para confirmar
minhas respostas no questionário. E eu, com a mesma cara de pau, insisti que
sabia tudo aquilo. Afinal, eu não sabia alemão; mas o cara também não. Como ele
poderia comprovar se eu sabia ou não?
Também
somos irmãos
Logo em seguida, me
escalaram para trabalhar em um filme chamado Também Somos Irmãos.
Eu ia ser figurante
numa cena em que se passava num bar, montado dentro do estúdio (na época era
tudo rodado em estúdio), contracenando com o Jorge Dória e a estrela do filme,
cujo nome não me lembro.
Meu papel era de um
garçom que ia servir a mesa onde estavam o Jorge Dória e a estrela. Ele me
chamava e pedia dois chopes. Eu vinha e botava os chopes na frente dele.
Eu não tinha que fazer nada além disso.
Quando estava tudo
pronto para começar, olhei em volta...
Para mim ali era
Hollywood. Um estúdio enorme, cheio de refletores gigantes, luzes, rebatedores,
gente para todo lado...
O diretor do filme,
José Carlos Burle berrou: “Atenção, silêncio!”. Comecei a tremer.
Silêncio total: não se
ouvia uma mosca.
Aí o Amleto, diretor de
fotografia, berrou, mais alto que o diretor: “Atencion! Meia Luce!”. E
pruummmm, estourou a luz. Parecia o sol, porra.
Eu vi aquilo e não
acreditei. Luz para tudo quanto era lado.
“Toda luce!”, berrou o
Amleto. E apareceu mais luz ainda; o sol cresceu: “Meu Deus do céu, estou em
Hollywood mesmo”.
“Som, câmera, ación”.
Essa ación era para mim. Respirei fundo e pensei: “Seja o que Deus quiser”.
Entrei, o Dória pediu
os chopes, saí, voltei com os chopes, coloquei um chope na frente da mulher e
outro na frente dele.
“Porra! Desmanchou meu
cabelo!”.
A manga do meu casaco
tinha pegado o cabelo do Dória, desmanchado todo o penteado dele.
“Corta! Corta!”. Tremio
nas bases.
Veio cabelereiro,
maquiador, assistente; retocaram o Dória inteiro e começou tudo de novo, “Meia
luce!”. O sol apareceu.
“Luce inteira”. O sol
explodiu. “Ación”. Lá fui eu de novo.
Não deu outra.
Desmanchei de novo o cabelo do Dória.
Sem saber o que fazer
fui pedir desculpas para o Dória. “Que desculpa, o cacete!”. Ele não queria
saber de conversa com figurante.
Fiquei em pânico de
pensar que minha carreira ia acabar ali.
Tomei coragem e fui
falar com o diretor: “O senhor me desculpe, mas toda vez que eu for servir o
Dória, vou desmanchar o cabelo dele, porque com a marcação que o senhor fez,
quando eu passar por trás dele a manga do meu casaco, que tá enorme, vai
esbarrar no cabelo dele”.
Resultado: na terceira
vez que eu desmanchei o cabelo do Dória ele se enfureceu: “Ou ele, ou eu,
Burle”.
É claro que entre um
galã e um figurante, era ele que ia ficar.
Arrasado, resolvi ir
embora. Fui saindo, pensando no fracasso da minha carreira no cinema, quando o
diretor disse: “Ei, onde você vai? Volta aqui”.
Não acreditei. (...)
Com isso, em vez de
figurante tive um papel no filme, numa cena com diálogo. E com isso, espacei de
começar como figurante.
A experiência me
mostrou mais tarde: quem nasce figurante, morre figurante.
(...)
Nem
Sansão Nem Dalila
Logo depois fiz Nem Sansão nem Dalila, dirigido também
pelo Burle, com o Grande Otelo, o Oscarito, Cyll Farney e a linda Fada Santoro.
O curioso é que o
diálogo do meu personagem nesse filme é o único de que me lembro até hoje.
Nunca esqueci. Hoje eu decoro um diálogo, gravo e já esqueço.
Diálogo
inesquecível
O filme se passava numa
corte da Arábia Saudita. A Fada Santoro era uma princesa e eu, vestido com
roupas árabes- com turbante, colares e um bastão -, tinha que entrar e falar: “Sua
Alteza Imperial, Davi Abrãao Levi Ebensalamão, Telaviv, Sabah, príncipe de
Judá, descendente de Salomão”. Em seguida entrava o Oscarito vestido de
Príncipe de Judá.
Isso no meio de
milhares de figurantes.
Mas o diretor, o mesmo
de Também Somos Irmãos, que queria me proteger, fazia eu repetir tudo de novo,
em close, para o personagem ficar bem marcado.
Ficou engraçadíssimo.
Duas vezes seguidas essa frase: “Sua Alteza Imperial, David Abrãao Levi
Ebensalão, Telaviv, Sabah, príncipe de Judá, descendente de Salomão”. Foi o
diálogo mais importante da minha vida. Nunca esqueci...
Depois disso fiz vários
outros filmes ainda na Atlântida.
Watson
Macedo
Em frente à Atlântida
tinha um barzinho, que era onde acontecia o ti-ti-ti da cultura cinematográfica
carioca. Era um botequim mesmo.
Ia todo mundo lá; era só
atravessar a rua.
Um dia chego lá e vejo
o Watson Macedo sentado em uma mesa com a Fada Santoro e o Cyll Farney, tomando
café com leite.
O Watson era o diretor
mais famoso da época; era ele quem dirigia os filmes mais sofisticados. (...)
Bom, chego eu lá e vejo
ele. Vou até a mesa onde ele está e falo humildemente: “Seu Watson, o senhor dá
licença; eu queria que o senhor me desse uma oportunidade em um filme seu, que
estou louco para desenvolver minha carreira”.
Ele olhou para mim e
disse: “Ô meu filho, você tem que ter as características de um Cyll Farney, que
sai na rua e as mulheres saem correndo atrás”.
Sem perder o rebolado,
falei que se ele me desse a oportunidade que ele havia dado para o Cyll, as
mulheres iriam sair correndo atrás de mim também.
E ele,
inacreditavelmente, respondeu que assim não adiantava, as mulheres tinham que
correr atrás de mim antes de eu fazer um filme com ele. “Só se eu xingar a mãe
delas”. Ele falava e eu respoondia na lata.
Nunca mais o cara falou
comigo, porque eu ousei responder para ele.
Anos depois, tive uma ótima oportunidade para me vingar, do jeito que ele merecia.
PRIMEIRO
CONGRESSO DE CINEMA
Paralelo aos filmes da
Atlântida, participei ativamente do Primeiro Congresso de Cinema Brasileiro. E
foi aí que eu conheci o Nelson Pereira dos Santos e o Hélio Silva, que estavam
chegando da França, onde os dois tinham estudado: o Nelson, direção, e o Helio,
fotografia.
Nós defendíamos
basicamente as mesmas teses, como a reserva de mercado, apoio logístico,
financeiro. Ideias que resultaram na Embrafilme e no Concine.
Rio
40 Graus
Logo depois do Congresso, “filmei” Nobreza Gaúcha e depois me juntei ao Nelson e ao Hélio para fazer Rio 40 Graus.
MUDANÇAS
NO CENÁRIO
Nessa mesma época
estava ocorrendo uma mudança no cenário cinematográfico nacional. O Anselmo
Duarte tinha acabado de largar a Atlântida para ir trabalhar na Vera Cruz, em
São Paulo.
Na Vera Cruz estavam
tentando fazer uma indústria de cinema, enquanto na Atlântida continuava a
mesma sacanagem de sempre.
Fizeram excelentes filmes na Vera Cruz: O Cangaceiro, Tico-Tico no Fubá, filmes que não davam dinheiro; ao contrário do cinema feito na Atlântida, que rendia os tubos.
Originalmente
publicado em: VALADÃO, Jece. Memórias de Um Cafajeste. São Paulo:
Geração Editorial, 1996.
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