sábado, 21 de fevereiro de 2015

VSP e a literatura marginal II: Solidão em estado bruto


Solidão em estado bruto




Por Ariosto Augusto de Oliveira



Acendo a luz. Três da manhã. Sento na poltrona do canto. Os meus sapatos estão sujos, minhas mãos estão suadas. Tiro os sapatos, arregaço as calças. Na cabeça um resto de música: Pra frente é que se anda.



Sábado à noite é pior.



Nos outros dias ainda consigo enganar. Chego na fábrica as sete horas, ando pela produção, marco reuniões, mudo esquemas, altero cronogramas, deixo os gerentes loucos. Almoço na minha sala. Sanduíche, vitamina de mamão e o jornal. Leio tudo. Até anúncios fúnebres. À tarde recebo clientes, visito fornecedores. O dia passa, não penso muito.



À noite vou pro clube. Jogo tênis, faço sauna, janto. Quando chego em casa estou arriado. Tomo dois comprimidos de tensil pra não acordar de madrugada e apago.



Mas sábado é difícil. A tarde enorme, espichada, não termina nunca. Ando pela casa, saio para os jardins, olho a piscina. Ligo a TV, assisto filmes de Tarzan, do Zorro.


Olho as garrafas de uísque e tenho medo. Sei que se começar não vou parar nunca mais. No começo disto tudo andei bebendo. Toda noite um porre. Até puta trouxe pra dormir aqui. Na manhã seguinte estava aos pedaços. Sonado, trêmulo, uma dor infernal no estômago. Substitui os uísques pelo tensil. Pelo menos não tenho ressaca, nem dores físicas, nem durmo com puta.



À noite, saio. Pego um cinema. Filme de bangue-bangue ou comédia italiana. Ás vezes assisto dois filmes. Depois uma pizzaria. Olho os casais, as crianças rindo. Peço uma garrafa de vinho, mastigo uma pizza que me lembra outras pizzas.



Venho pra casa.



Olho o telefone.



Lembro do aviso da minha mãe: Filho, pense bem. O Rodrigo me disse: Sabe, vó, o meu pai assobia pra mim toda noite. Eu fico esperando ele assobiar pra depois dormir.



Sentado na poltrona assobio alto: Ro-dri-go.



Olho o telefone.



Amanhã ainda é domingo. Puta que pariu!



Publicado originalmente no livro Mão Grande de Ariosto Augusto de Oliveira e publicado pela editora Hermes em 1984.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Tomar dois comprimidos pra dormir? Que perigo!