sábado, 12 de março de 2016

A história da Boca paulista parte I: introdução


Por Alfredo Sternheim

Introdução

Tempo de glória

Em várias cidades do Brasil é possível encontrar uma região conhecida como Boca do Lixo. A origem da denominação, dizem, é policial. Atinge ruas onde, geralmente, predomina a prostituição barata. Não aquela de mulheres sofisticadas que trabalham com a luxúria dos outros em locais aparentemente refinados. Mas a de fêmeas desencantadas e pobres, prontas para um atendimento frio e rápido, sem o menor glamour, em míseros quartinhos de hotéis das redondezas.

Raramente esse universo de marginais atrai a atenção da mídia. Mesmo a dos noticiários policiais. Exceto o de São Paulo. Menos pelos protagonistas descritos e mais por uma outra razão, distante do crime e da prostituição. Isso acontece quanto à Boca do Lixo da capital paulista, por aquela região ter sido durante um bom tempo uma espécie de capital do cinema.

A afirmação, à primeira vista, pode soar exagerada, principalmente a nova geração que recebeu a respeito muitas observações equivocadas e, na maior parte, predatórias. Assim são porque inúmeros jornalistas especializados sempre insistiram em classificar o cinema feito na Boca do Lixo como um estilo. Qualquer realização de lá era identificada como pornochanchada, outro rótulo pejorativo (agora já perdeu a carga) para designar a comédia maliciosa ou de costumes, mas acabou sendo usado de forma indiscriminada. O clichê, carregado de preconceito, substituiu a análise séria e passou a ser aplicado indistintamente pelos críticos para apontar a produção saída da Boca, fosse de qualquer gênero. E com isso criou-se um lamentável estigma para boa parte dos nossos cineastas.

Na realidade, de uma maneira ou de outra, quase todos os filmes realizados em São Paulo, no século XX, entre meados dos anos 60 e final dos anos 80 passaram pela Boca do Lixo. Desde aqueles mais politizados até as comédias com sexo explicito. Produções como O Pagador de Promessas – a única do Brasil que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes – saiu também daquela região, foi executada a partir de uma empresa sediada em um prédio da Rua do Triunfo.

Mesmo assim, e apesar desse exemplo gritante, os registros a respeito do Cinema da Boca, em sua maioria, insistem em expor essa fase de forma depreciativa, com sarcasmo. Volta e meia batem nessa tecla de vulgarização, de um cinema apenas voltado para o mercado consumidor. Essa preocupação existia, afinal os cineastas sobreviviam, em sua maioria, do próprio cinema. Esse lado comercial não invalida, porém, a sua importância para a própria existência da indústria cinematográfica brasileira em uma época nada fácil para o país e em especial para a sua criação artística.

Alguns até colocam o cinema da Boca como um gênero, uma tendência criativa, ao lado (ou em oposição) do Cinema Novo. Ora, o Cinema Novo procurava ter uma unidade ideológica: seus filmes se empenhavam em retratar de forma dramática (e, ás vezes, com total desprezo pelas normas da linguagem cinematográfica) a realidade brasileira, em especial a mais miserável e, quase sempre, aquela localizada no Nordeste. Daí o surgimento de filmes como Cinco Vezes Favela (que muitos consideram o carro-chefe do movimento), Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Essa coerência temática não existia entre os realizadores da Boca, que sempre se manifestaram pelos mais diversos gêneros. Mas é forçoso reconhecer que o erotismo predominou, mais como razão ou pressão do exibidor do que livre escolha dos cineastas. Como observou o cineasta e professor Nuno César Abreu no livro O Olhar Pornô, “a Boca do Lixo sempre teve sua produção apoiada em capitais privados, vivendo a tensão do investimento (bárbaro e nosso) e de suas relações com o mercado. Por isso, seus filmes, inseridos na faixa que se qualifica como ‘média’, constituíam-se de fato num real termômetro do interesse popular e do consequente retorno financeiro”.
O Cinema da Boca do Lixo não existe mais. Hoje só temos vestígios de um passado que pode, apesar de tudo, ser considerado esplêndido para a história da nossa Sétima Arte, pode oferecer lições. Por isso, é preciso fazer justiça, é preciso resgatar essa fase tão enérgica, seus diretores, sem nenhum viés predatório, com total respeito em vez da ironia frequente.

Geografia e Origem

As ruas do Triunfo, Vitória, dos Gusmões, das Andradas são as principais da chamada Boca do Lixo, no bairro da Luz, bem perto do centro de São Paulo. Durante muito tempo abrigou residências da classe média, hotéis e pensões familiares. Mas por volta de 1950 o meretrício, que ficava confinado quase que legalmente em duas ruas do bairro do Bom Retiro, um pouco mais adiante, do outro lado da estrada de ferro, se viu expulso de lá por decreto do então governador Lucas Nogueira Garcez. Na ilegalidade total, sem a proteção dos bordéis do Bom Retiro, as prostitutas se concentravam justamente nessas e em outras ruas da Luz. E, com elas, logo vieram outros marginais. As moças, além de atender à clientela local, podiam investir nos homens que estavam em trânsito por São Paulo, geralmente a trabalho, e se hospedavam naquela região. Eles faziam isso porque duas das três estradas de ferro que passam pela cidade, a Paulista e a Sorocabana (hoje pertencentes ao Governo do Estado), tinham nas imediações as suas estações de trens: a Luz e a Júlio Prestes. Mais tarde, ali perto, na Praça Júlio Prestes, foi construída, rente à Av. Duque de Caxias, a estação rodoviária que atendia todos os ônibus intermunicipais e interestaduais.

Foi nessa proximidade com as estações ferroviárias e rodoviária que atraiu o cinema. Primeiro as distribuidoras de filmes, tanto a de produções estrangeiras como brasileiras. Economicamente, tal proximidade representava um ganho, mais agilidade. Isso porque bastava ter um indivíduo com um carrinho de mão para levar ou buscar uma cópia de filme (geralmente quatro ou cinco latas duplas) nos pontos de partidas e chegadas. Por isso, no final dos anos 50 e meados de 60, empresas como a Polifilmes (então a maior distribuidora de filmes em 16 mm), a Columbia, a Paramount, a Warner, a Art Filmes, a Fama Filmes, a Pel-Mex, a França Filmes do Brasil, a Paris Filmes e muitas outras já estavam instaladas na Boca. Mesmo companhias como a Fox, que não via com bons olhos ir para lá e que, por isso, ficou durante muitos anos na avenida São João, por volta de 1979 já ocupava um andar do prédio 134 da Rua do Triunfo.

Nem sempre foi fácil a convivência desses escritórios com as moças da chamada vida fácil, que de fácil não tem nada. Manuel Alonso, um veterano da área de distribuição e produção, lembra que nos anos 50, quando atuava na França Filmes do Brasil, foi obrigado a servir de pacificar em uma briga que surgiu entre as garotas e José Borba Vita, então diretor da Pel-Mex do Brasil, que faturava muito com os folhetins mexicanos protagonizados por Ninon Sevilha e Maria Antonieta Pons. O falecido Vita, que mais tarde seria diretor-geral do Laboratório Líder, se irritou com os gritos de algumas dessas moças na porta da distribuidora e decidiu jogar água nelas. A guerra começou, ele foi ameaçado de linchamento, não podia sair do prédio. “Tive de ponderar com ambas as partes e a paz de fez”, disse Alonso. “Na realidade, a convivência com as prostitutas foi serena”.

Alonso recorda também os dias tensos que passou quando vieram ordens de Paris para a França Filmes encerrar suas atividades e destruir todo seu material. “É o que o proprietário da Cofran, a empresa que nos fornecia os filmes franceses, estava envolvido com a guerra da Argélia, que lutava pela sua independência. E por isso a sua empresa foi considerada ilegal, assim como as suas exportações. Mas me deu uma pena ter de destruir cópias de filmes como Les Amants, Se Todos os Homens do Mundo, Acossado...Porém, ordens são ordens”. Só que, na última hora, Alonso salvou uma cópia de cada filme, guardou-as em lugar secreto e, depois, fez uma doação à Cinemateca Brasileira, sem se identificar.

Naturalmente, as mesmas razões estratégicas provocaram a presença das produtoras na Boca. “O cinema, ou melhor, a indústria cinematográfica veio se estabelecer aqui, na Rua do Triunfo, em função exclusiva das estações ferroviárias e da rodoviária. A grande proximidade entre os dois pontos facilitava o escoamento de toda a produção cinematográfica via transporte rodoviário, principalmente, e por trens, com rapidez e eficiência. Um filme nacional também podia, naquela época, estrear em cem cidades brasileiras ou mais, em funcionalidade dos meios de transportes”, lembra o diretor e produtor Aníbal Massaini Neto, filho do produtor e distribuidor Osvaldo Massaini.

A Cinedistri

Nos anos 50, o cinema brasileiro ainda tímido e já enfrentando problemas na exibição – era difícil competir sem reserva de mercado – de carona em seu próprio país, ainda engatinhava no terreno da distribuição específica. A empresa mais atuante era a UCB (União Cinematográfica Brasileira), criada no Rio de Janeiro em 1945 pela família Severiano Ribeiro, que havia décadas dominava (e ainda tem presença) a exibição cinematográfica do país. A empresa passou a distribuir as produções da Atlântida, também pertencente ao grupo Severiano Ribeiro.

Em 1949, surgiu em São Paulo (precisamente na Rua Dom José de Barros, no centro) a Cinedistri. Foi fundada por Oswaldo Massaini, um paulistano que tinha, então 30 anos de idade. Desde 1937 estava no meio, primeiro como funcionário da extinta Distribuidora de Filmes Brasileiros, depois da Columbia Pictures e da filial paulista da Cinédia, a distribuidora criada pelo produtor carioca Adhemar Gonzaga para lançar os filmes dessa empresa. Nessa área, ela encerrou suas atividades justamente em 1949.

Em 1956, a Cinedistri já instalada na Boca, em uma sala sobre o Bar Soberano, que se tornaria um importante ponto de encontro da classe cinematográfica. Estava perto da Campos Filmes, produtora de documentários. Nos primeiros anos, a empresa limitou-se a ser apenas distribuidora. Só depois de se associar ao filme carioca Rua sem Sol, em 1953, é que Massaini passou a atuar também como produtor. No início, tomidamente. Afinal, aquele melodrama com conotações sociais dirigido pelo crítico Alex Viany (que nunca escondeu suas ideias de esquerda) e que tinha como protagonista a cantora Dóris Monteiro, havia sido um fracasso de público.

Mas ele não desanimou e, de forma modesta, associou-se a boa parte das chamadas chanchadas feitas no Rio de Janeiro, em sua maioria por Watson Macedo, como Depois eu conto e Rio Fantasia. Em 1956, passou participar de filmes paulistas, como a comédia Uma Certa Lucrécia, dirigida por Fernando de Barros, com Dercy Gonçalves e Odete Lara. No ano seguinte, sua atividade de produtor intensificou-se em Absolutamente Certo, o primeiro longa-metragem de Anselmo Duarte.

Em 17 de agosto de 1959, a Cinedistri passou a ocupar um andar inteiro (o primeiro) do prédio 134 da Rua do Triunfo. Ao mesmo tempo em que se associava como produtor a realizações dos mais diversos gêneros, garantindo assim vitalidade para a distribuidora, Massaini não deixava de ser ambicioso e partia para trabalhos solos nessa área. Dessa maneira, ousou sair das fórmulas mais tradicionais que predominavam no comércio cinematográfico quando decidiu fazer O Pagador de Promessas, sob direção de Anselmo Duarte. A compensação não poderia ter sido melhor: a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1962. A consequência foi um êxito internacional sem precedentes e uma respeitabilidade que outros filmes não lhe tinham dado.

Naquela tarde de maio, a vitória na França foi festejada por muitos no escritório da Rua do Triunfo, sob a liderança de Antonio Martins, o segundo homem da empresa depois de Massaini, que estava em Cannes com Anselmo e alguns intérpretes. E o troféu permaneceu exposto na dependência da Cinedistri por duas décadas. É que naquela época a Palma de Ouro costumava ser entregue ao produtor e não ao diretor. Daí Massaini se achar no direito (que ninguém contestou) de coloca-la na sala de espera do seu gabinete, junto de outros prêmios. E assim ficou anos seguidos até que, por volta de 1980, Anselmo Duarte a solicitou emprestada, mas nunca mais a devolveu. O que gerou uma ruptura na longa amizade entre o produtor e o diretor.

Em 1972, Massaini teve nova oportunidade de mostrar a sua garra como produtor. Naquele ano acontecia o Sesquicentená

rio da Independência do País. Por causa disso, ele decidiu fazer Independência ou Morte.

Mas as filmagens começaram só em maio, muito em cima para que o lançamento ocorresse em 7 de setembro. Contrariando as previsões pessimistas, o descrédito geral, o filme dirigido por Carlos Coimbra estreou justamente naquela data. Um recorde, uma demonstração da capacidade técnico-artística da Boca.


Publicado originalmente em STERNHEIM, Alfredo. Cinema da Boca: dicionário de diretores. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005.

Nenhum comentário: