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quarta-feira, 2 de agosto de 2023

GAÚCHO: 78 ANOS DE VIDA E QUASE 78 LONGAS-METRAGENS NO CURRÍCULO

 





Por Matheus Trunk

 

Hoje, dia 2 de agosto, o diretor de fotografia Virgílio Roveda, o Gaúcho (1945-) completa 78 anos de vida. Para celebrar essa data irei colocar um episódio que ele testemunhou na sua vida em mais de 57 anos de vida profissional, iniciada no longa-metragem “O Diabo de Vila Velha” (1966) de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, onde trabalhou como figurante. Seu último longa-metragem como técnico foi “Sete Cidades e Uma Vida Inglesa” (2022), no episódio dirigido por Diomédio Piskator, no qual fez a direção de fotografia. São mais de 70 longas-metragens no currículo nas mais diferentes funções: diretor de fotografia, foquista, operador de câmera, diretor de produção, fotógrafo de cena (still), assistente de câmera, operador de segunda unidade, produtor, eletricista, assistente de direção, maquinista, figurante, entrevistado em documentários...

 

Em 1969, o cineasta Anselmo Duarte ficou interessado em assistir ao filme “Meu Nome É Tonho”, de Ozualdo Candeias. Roveda trabalhou na produção do longa-metragem e também atuava no escritório do produtor Augusto Cervantes. A sessão foi feita num dia de semana no Cine Santa Inês, cinema de bairro localizado na zona norte de São Paulo. Candeias, Anselmo, Gaúcho e alguns colegas assistiram ao longa-metragem. Anselmo gostou bastante o filme. Depois da exibição, todos concordaram que o melhor era tomar uma cerveja numa padaria próxima. Menos Gaúcho. Ele queria ir embora o quanto antes. O técnico tinha que levar a cópia até o filme do escritório de Cervantes na Boca. De lá, iria seguir para seu apartamento localizado na Baixada do Glicério, zona central de São Paulo. Mas os papos se prolongaram durante muito tempo. Galã de produtoras como a Atlântida e a Vera Cruz, Anselmo desembestou a contar todas as suas proezas na Europa, onde morou durante anos e havia recebido a Palma de Ouro em Cannes, pelo filme “O Pagador de Promessas” (1962). Chegou um horário em que os ônibus pararam de passar. Gaúcho teve que esperar o dia clarear para prosseguir seu caminho. “O Anselmo sabia muito de cinema. Não pelo lado teórico, mas pela prática que ele tinha desde os anos 1950”, resume Roveda. Depois do papo noturno, Virgílio Roveda voltou para a Boca no jipe DKW Candango, dirigido pelo amigo Candeias, que estava um tanto alto. “Nossa sorte foi que todos os anjos da guarda trabalharam bastante naquele dia. Impediram qualquer coisa de errado acontecesse com a gente”. A cópia foi entregue de manhã para Cervantes, produtor do filme que depois se tornaria um dos mais renomados produtores do cinema paulista do período. Sua produtora, a Masp Filme, tornou-se referência dentro cinema da Boca em produções com orçamentos mais enxutos e que muitas vezes chegavam a ganhar a atenção dos críticos. “Augusto de Cervantes começou com o Mojica e foi se tornando um grande produtor com o tempo. Foi aos poucos”, confessa Gaúcho. “Mas ele era espanhol e quando ficava nervoso começava a arrancar os pelos dos bigodes com os dedos”. Foi isso que aconteceu naquela manhã de 1969 quando Roveda chegou no escritório de Cervantes com a cópia de “Meu Nome É Tonho” debaixo do braço um tanto atrasado. Culpa das fantásticas histórias de Anselmo Duarte, o único diretor que trouxe a Palma de Ouro para o cinema brasileiro. “O Anselmo e o Candeias se davam muito bem. Aliás, todo mundo gostava do Anselmo, ele era excelente profissional, muito engraçado e cheio das histórias”. “O Pagador de Promessas” foi produzido pelo produtor Oswaldo Massaini (1919-1994), cujo escritório ficava (e ainda fica em 2023) na rua do Triunfo, na Boca paulista. “Pode parecer bobagem. Mas até hoje, o único cinema que deu a Palma de Ouro para o cinema brasileiro foi uma produção da Boca. Foi o Anselmo. Não foi o cinema da Embrafilme, que era tido como o oficial. Nem de outras áreas do Brasil. Isso ainda causa muita inveja no meio. O Anselmo ficou muito marcado com isso”, sintetiza Gaúcho, lembrando do antigo colega com afeto e respeito.

 

Mais histórias de Gaúcho, Candeias, Anselmo, Mojica, Mazzaropi e outros personagens do cinema paulista no meu livro “O Coringa do Cinema” (2013) publicado na editora Giostri e no documentário de longa-metragem “O Coringa do Cinema” (2019), dirigido por Sérgio Kieling, produzido pela IMG Content e Aruanda Filmes.


segunda-feira, 31 de julho de 2023

ALFREDO STERNHEIM 81 ANOS

 

O cineasta e crítico Alfredo Sternheim (1942-2018) faria 81 anos hoje. Um grande nome da história do cinema da Boca e brasileiro em todos os tempos. Um dos homens mais inteligentes e sensíveis que conheci. Bom diretor de atores, especialmente atrizes foi um crítico muito inteligente enxergando filmes e diretores internacionais que muitas vezes estavam fora do grande circuito. Principalmente no cinema japonês, já que frequentava muito as salas do bairro da Liberdade em São Paulo. Alfredo Sternheim deixou grandes filmes, grandes histórias e grandes amigos.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

CINCO histórias minhas com o cineasta e produtor DIOMÉDIO PISKATOR (1958-2022)


Às vezes, penso em fazer um “Dossiê Boca” parte dois. Mas não valorizam essas coisas e quando lancei o primeiro não vendi muitos exemplares. Mas enfim, seguem alguns momentos que convivi com o cáustico Diomédio:

I- Lançamento do “Mulher Barata” do Mário Vaz Filho com a Débora Muniz. Teve a sessão no Cine Faroeste na própria rua do Triunfo onde tinha um pessoal do teatro. Na época, foi bacana eles montaram um meio um espaço cultural ali e estavam próximos ao Diomédio. Depois o Diomédio se afastou porque ele brigava e se afastava de todo mundo. Era natural dele. Mas enfim, teve a sessão e juntou um pessoalzinho. Deve ter sido em 2012. Lembro que foi numa noite muito fria. Lembro que eu tentava dar uma de intelectual para uma fulana bonita que apareceu lá. Quem diria! Uma moça jovem e bonita num evento do povo da Boca. Depois chegou o namorado da fulana e aí quase apanhei. Mas fiquei com os veteranos mesmo. Mas a ideia era ter a sessão e depois íamos comer pizza num lugar perto da praça Roosevelt que o Diomédio conhecia. Lógico que tomamos um porre homérico. Chegamos todos embriagados na pizzaria. Lembro que estava um pessoal da Boca nesse lugar da pizza: Mário, Índio, mais alguns. E que não teve como cortar a pizza, ninguém pegou uma faca. Cada um foi arrancando um pedaço, um negócio meio feio. O politicamente correto nunca foi uma das proezas do pessoal da Boca. Lembro que o Diomédio na hora de pagar falou que tinha algo e simplesmente sumiu. Bem aquelas coisas de produtor de cinema pobre: na hora de sair o dinheiro da conta o produtor sumiu!

II- Velório de um amigo da Boca. Melhor não falar o nome do falecido dessa história. Cheguei atrasado porque trabalho em Alphaville: peguei ônibus, metrô e outro ônibus. Lembro que passei no Habibs e já enchi a lata pra doer menos. Era no Cemitério da Vila Alpina, zona leste. Quando cheguei estava o Diomédio, Mário Vaz, Waltinho, Índio e mais alguns no bar vagabundo do lado do cemitério bebendo e cantando. “Pô, Diomédio, o que é isso?”. “É que ele queria ver a gente feliz”. Lembro que o Índio estava conversando com alguém do velório do lado. E aí o Diomédio falou com aquele humor cáustico dele: “Tá vendo? Até que a coisa não está tão ruim. O Índio até arrumou um namorado novo!”.

III- Pro Diomédio, o Ozualdo Candeias era a referência, o maior cineasta do mundo. Dizia que o Candeias tinha incumbido ele de reunir o pessoal da Boca. Diomédio tentava ser uma espécie de sub-Candeias, ou algo assim. Mas um amigo da Boca que trabalhava muito com ele dizia: “Mas entre o Candeias e ele tem uma diferença abissal”. Outro dizia: “O grande problema do Diomédio é que ele acha que é o Candeias do Piauí”. Isso porque o Diomédio nasceu em Teresina, capital deste estado.

IV- Não é que o Diomédio, o Marinho e o povo da Boca gostavam de bar vagabundo. Bar vagabundo gosto eu, você e as pessoas normais. Eles gostavam daqueles que tem ovo roxo, que os banheiros são o fim da feira. Normalmente, a gente começava na galeria Boulevard onde tinha um restaurante gaúcho que era de um japonês (vejam vocês!). A galeria continua lá, em frente ao Cine Dom José. Lá fechava acho que 22h. Aí o Mário gostava de um que ficava na avenida São João meio que expulsavam a gente. Não é que expulsavam, mas passavam o rodo para limpar e a gente saía reclamando. Lembro da minha mochila molhada com água da limpeza desse bar. O Mário também gostava de um que fica na rua Timbiras chamado Bar do Peixe. Eles botavam DVD do Milionário e José Rico. Nesse, chamavam o Índio de “chapéu”. Não me pergunte o motivo. Quando eu levava gravador o meu medo não era dos nóias me roubarem. Era de roubarem o gravadorzinho que eu levava para gravar as histórias do povo da Boca. Lembro de estar completamente bêbado olhando pros lados pra não pegarem o gravador. Tinha um na São João que era 24 horas. Pelo menos esse tinha salgadinho tipo Doritos e você comia para não ficar com a barriga vazia a madrugada toda. Esse continua lá. Diomédio frequentava determinado bar por um certo tempo. Depois, ele brigava e mudava de lugar. Teve um que o Diomédio ia que colocavam rádio e TV ligados juntos que era de um chinês. Ficava perto do Copan, acho que na Epitácio Pessoa. Lembro do Diomédio falando pro dono sem nenhuma cerimônia: “Oh, seu Ching Ling da casa do c..., que p... é essa!?”. É sério. Ele xingava o cara e chamava de Ching Ling sem a menor preocupação.

V- Diomédio organizava uns eventos de final de ano do pessoal da Boca. Ele já estava com câncer avançado. Num desses ele saiu do Cine Olido e começou a fumar. Eu falei: “Diomédio, desculpa me meter na sua vida, mas você pode fumar mesmo tendo câncer?”. “Cuida da sua p... da sua vida seu b..., v... O médico me proibiu de beber”. “Mas e de fumar?”. “Eu não falei pro médico que fumo!”, me respondeu rindo. Quero guardar essa imagem dele rindo. É isso.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Mojica early years, parte XIV: 1976-1979: Delírios de Um Anormal

            Capítulo 15: 1976-1979: Delírios de Um Anormal

 

Por André Barcinski e Ivan Finotti


No início de 1976, Mojica procurou o produtor Alfredo Cohen implorando por um emprego. Sua situação nunca estivera tão crítica: além de não ter um tostão furado no bolso, ainda corria risco de perder sua parte em A Estranha Hospedaria dos Prazeres, já que Nelson Teixeira Mendes, de quem havia alugado câmera e luzes para fazer o filme, ameaçava entrar com um processo na Justiça caso não recebesse logo pelo aluguel. Mojica assinou com Cohen um contrato para a produção de Inferno Carnal, uma adaptação de um antigo roteiro de Rubens Lucchetti. Antes, porém, topou dirigir mais uma pornochanchada para Augusto de Cervantes, Como Consolar Viúvas.

Augusto estava passando por uma fazer muito difícil. Poucos meses antes, sua companheira por vinte anos, Nilza de Lima, morrera de um câncer no útero. Agora a filha de Nilza – e sua atual namorada, Georgina Duarte – fora diagnosticada com a mesma doença. Foi a própria Georgina quem escreveu o roteiro de Como Consolar Viúvas, uma comédia erótica sobre um espertalhão que tenta enganar três viúvas ricas. Augusto, sabendo que ela não teria muito tempo de vida, pediu a Mojica que apresasse as filmagens.

Mojica rodou o filme em dezesseis dias. Com o roteiro que dispunha, não conseguiria fazer uma fita decente, mesmo que tivesse dezesseis anos. As piadas eram das mais tacanhas – já uma brincadeira recorrente com um personagem que cultiva mandiocas – e os atores também não ajudavam. A única curiosidade de Como Consolar Viúvas é o local onde foi filmado: Georgina queria um apartamento com uma cama ampla para filmar as cenas de sexo. Sua filha Ana Nilsen (atriz de D´Gajão Mata Para Vingar) sugeriu usar o apartamento de seu namorado, o cantor Peri Ribeiro, que havia herdade de sua mãe, a grande cantora Dalva de Oliveira, vários móveis antigos, incluindo uma linda cama colonial. Todas as cenas eróticas foram filmadas na cama que pertencera à romântica Dalva de Oliveira.

Mojica ainda tentou dar um toque pessoal ao filme, adicionando algumas cenas sobrenaturais, como uma em que um sujeito é atacado por um vibrador voador, mas o resultado não foi dos mais empolgantes. Envergonhado, ele decidiu novamente assinar com o pseudônimo de J. Avelar. Goergina pelo menos pôde ver sei filme concluído. Morreu seis meses depois.

Assim que terminou Como Consolar Viúvas, Mojica iniciou as filmagens de Inferno Carnal. A verba para o filme foi conseguida novamente na base da “vaquinha” entre alunos, e completada por um adiamento do distribuidor Alfredo Cohen. A produção era tão pobre que o almoço da equipe foi o queijo provolone que havia sobrado da festa no Viola de Ouro, cinco meses antes.

No filme, Mojica interpreta o cientista George de Medeiros, um gênio da química que se dedica à descoberta da fórmula de um ácido poderosíssimo. Enquanto ele passa as noites trancado no laboratório, sua mulher, Raquel (Luely Figueiró), diverte-se com o amante, Oliver (Osvaldo de Souza). Juntos, eles planejam matar o cientista e ficar com sua fortuna. Numa noite de tempestade, Raquel entra no laboratório do marido, joga o ácido em seu rosto e foge com Oliver, acreditando ter matado George. Só que George sobrevive e começar a planejar sua diabólica vingança. A história fora escrita por Rubens Lucchetti como um episódio do programa O Estranho Mundo de Zé do Caixão, chamado “A Lei do Talião”, exibido em agosto de 1969 na TV Tupi, com José Parisi no papel do cientista e Irene Ravache interpretando a esposa.

Com Inferno Carnal, Mojica provou mais uma vez ser incapaz de criar um ambiente de alta burguesia convincente. Seu personagem é um milionário, mas anda numa Brasília velha, guiada por um motorista vestido de trocador de ônibus; seu “laboratório” não passa de meia dúzia e tubos de ensaios cheios de suco de uva, e o tal ácido poderoso fica guardado num vidro de maionese destampado. Para completar, George, o cientista, usa um jaleco com o nome de Oliver, amante de sua mulher (a gafe foi resultado de um erro dos dubladores, que trocaram os nomes dos personagens).

Mojica filmou às pressas. Estão tão desinteressado pelo filme que perdeu a seu assistente Marcelo Motta para dirigir algumas sequencias. Na terça-feira, 20 de julho, quando trabalhava na dublagem de Inferno Carnal, recebeu a notícia de que Nelson Teixeira Mandes havia perdido na Justiça a penhora de seus bens. Imediatamente ligou para Mendes, tentando, como já fizera diversas vezes, adiar o pagamento. Pediu que ele esperasse pelo menos até o lançamento de A Estranha Hospedaria, quando então teria dinheiro para quitar sua dúvida. Mas Mendes recusou. Disse que estava farto de desculpas e prometeu confiscar todos os bens de Mojica.

- O único bem que eu tenho é o Biribinha! – respondeu Mojica, referindo-se a uma velha perua DKW que havia comprado em sociedade com o técnico Luizinho de Oliveira. – Se quiser, pode confiscar!

Assim que desligou o telefone, Mojica empalideceu. Nilce perguntou o que havia acontecido. Ele respondeu que não estava se sentindo bem e que precisava descansar. Naquela noite nem bebeu, o que era um péssimo sinal. Acordou na manhã seguinte com uma forte dor no peito. Seu assistente Satã levou-o para a Clínica de Doenças Internas, no Ipiranga, onde os médicos fizeram um eletrocardiograma e descobriram quer ele havia sofrido um enfarte. Teria de ficar internado.

Na verdade, era só uma questão de tempo até que Mojica viesse a sofrer algum problema sério de saúde: ele fumava quatro maços de cigarro por dia, bebia como um peixe e alimentava-se basicamente de torresmo frio e linguiça calabresa boiando no óleo. Na sua cabeça, no entanto, logo despontou um único culpado para seu infortúnio: a “máfia do cinema”. Mojica teve a ideia de usar o enfarte para angarias simpatia e denunciar a tal “máfia” que, na verdade, era composta apenas por seus credores. Ele convocou a imprensa para fotografá-lo deitado na cama da clínica, cercado de médicos, e deu várias entrevistas nas quais dizia ter sofrido uma parada cardíaca que o deixara clinicamente morto por quatro minutos (“Agora que eu já vi a morte de perto, poderei fazer filmes de terror muito melhores!”). Também revelou, sem especificar nomes, que a “máfia do cinema” estaria tentando matá-lo.

- Na primeira noite que passei aqui na clínica, uma mulher veio ao meu quarto de madrugada e desligou meu tubo de oxigênio. Se não fosse por um discípulo meu que estava de guarda, eu estaria morto!

Mojica queria aproveitar ao máximo a situação. Durante sua internação, ele começou a rodar um documentário sobre sua própria vida, chamado O Diabólico Reino de Zé do Caixão. A ideia de fazer o filme já existia há anos, mas o momento agora parecia ser ideal, já que seus alunos e a imprensa estavam sensibilizados pelos episódios do enfarte e não hesitaram em ajudá-lo. Nilce e o faz-tudo Luizinho de Oliveira sugeriram a Mojica reencenar o episódio de sua internação, para incluir no documentário. Poucos dias depois, Mojica, usando o equipamento alugado por Alfredo Cohen para Inferno Carnal, dirigia a cena de sua chegada à clínica. Ele apareceu deitado na cama, sem camisa e desfalecido, enquanto os médicos tentaram reanimá-lo com pancadas no coração. Sua mãe, Carmen, observa angustiada, ao lado de Nilce e Satã.

Uma semana depois, Nilce pediu outro favor a Quintavalle: queria fazer uma entrevista dentro da clínica. O médico ficou temeroso de que o movimento pudesse perturbar os outros pacientes, mas Nilce garantiu que seriam poucos repórteres. No dia marcado, vieram mais de vinte jornalistas, além de fotógrafos e cinegrafistas. A clínica parecia o Maracanã em dia de decisão.

Para aproveitar a presença dos jornalistas e fazer publicidade do novo filme, Mojica mandou decorar o quarto com fotos de Inferno Carnal. Ele chamou seus credores de “abutres que se alimentam da carcaça do cinema nacional” e pediu ajuda ao povo para sair da penúria em que se encontrava. A súplica tocou fundo no coração de seus alunos, que imediatamente iniciaram a campanha “Ouro para o Mestre”, doando alianças, relógios e correntinhas de ouro para pagar a conta da clínica.

Mojica passou quase vinte dias internado. Já havia melhorado bastante e poderia receber alta a qualquer momento. Mas Nilce, percebendo que a sexta-feira seguinte cairia no dia 13 de agosto, teve uma brilhante ideia: implorou ao dr. Quintavalle para deixar Mojica internado por mais alguns dias. Depois ligou para os jornais e anunciou que Zé do Caixão receberia alta na sexta-feira, 13 de agosto, exatamente às 13h13.

No dia marcado, seus alunos fizeram uma grande festa na porta da clínica. Todos os jornais e emissoras de TV cobriram o evento. Mojica saiu amparado por dois assistentes, com ar de abatido. Abraçou seus discípulos, choravam e gritavam “Longa vida ao mestre!” e “Os abutres do cinema nunca irão nos derrotar!”. Com lágrimas nos olhos, ele agradeceu o apoio de seus alunos: “Sei que muitos de vocês chegaram até a empenhar seus dentes de ouro na Caixa Econômica. Eu nunca vou esquecer isso!”.

Mojica deu entrevistas aos jornais, identificado os supostos membros da tal “máfia do cinema”: primeiro acusou o produtor Antônio Polo Galante (Trilogia de Terror) de ter dado um calote em seus alunos, que teriam atuado como figurantes num filme, sem receber nenhum tostão. Depois, disse ter sido ludibriado por Nelson Teixeira Mendes numa transação de aluguel de equipamentos. Reservou farpas também para outro produtor, Renato Grecchi, a quem acusou de ter embolsado dinheiro a mais na venda de filmes seus como O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Mojica não poupou ninguém: disse estar decepcionado com a falta de profissionalismo das atrizes Marizeth Baumgarten (A Estranha Hospedaria dos Prazeres) e Helena Ramos (Inferno Carnal), que teria se comportado de maneira arrogante no set de filmagens, chegando sempre atrasadas e ainda exigindo aumento de salário. E finalizou: “Outras estrelinhas sem responsabilidade e senso profissional que me sinto na obrigação de denunciar são Arlete Moreira, Sônia Suega, Aldine Müller, Sônia Garcia, Denise Ongarelli e Dirce Moraes”. Curiosamente, ele trabalharia com Arlete Moreira um ano depois, no filme Estupro.

Nelson Teixeira Mendes ficou furioso ao ler as reportagens e pediu direito de resposta. Disse que Mojica não passava de um alcoólatra e charlatão, que enganava seus alunos com falsas promessas de sucesso no cinema. Acusou-o de desonesto e de ter sumido por meses depois de receber dinheiro para dirigir o faroeste Papa Defunto, o Pistoleiro (Mendes acabou contratando o diretor Mimo Valdi para terminar o filme).

No fim das contas, depois de todos os artigos de jornal e de tantas denúncias sobre mafiosos que só existiam na sua imaginação, Mojica continuava sem dinheiro para saldar a dívida com Mendes. Alfredo Cohen veio em seu socorro e saldou a dívida com Mende em troca de um percentual maior na bilheteria de Inferno Carnal. Com um cheque, Cohen aniquilou toda a “máfia do cinema”.

 

Em meio a essa agitação toda, Nilce vivia um grande drama pessoal: estava grávida de Mojica. Ele não queria que Rosita e Maria descobrissem, e tampouco contava com a ajuda de Dona Carmen, que ainda a culpava pelo fracasso do casamento do filho. Resolveu esconder a gravidez de Carmen, apesar de morarem juntas no pequeno sobrado da Moóca. Nilce passou a sair às cinco da manhã e ficava o dia inteiro no estúdio. Só voltava às onze da noite, quando Mojica já estava dormindo.

No dia 5 de janeiro de 1977, exatos doze anos depois de seu primeiro encontro com Mojica, Nilce deu luz à uma menina, Nilcemar, logo apelidada de Nilcinha. Assim que saiu da maternidade, ela levou a filha para a casa dos pais, no Brás, Maria soube do nascimento da criança e, desconfiada de que o filho era de Mojica, foi correndo tirar satisfação. Chegou na porta da casa e tocou a campainha. Ninguém atendeu. Furiosa, começou a esmurrar e chutar a porta como uma louca. Uma vizinha saiu, assustada: “Não faça isso, dona, a moça aí acabou de ter um neném e precisa de descanso!”. Maria respondeu: “Pois eu vim mesmo para estrangular mãe e filha!”.

Depois desse episódio, Nilce mudou-se para um sobrado no Alto da Moóca, alugado por Mojica. Pela primeira vez na vida, tinha casa só sua. Assim que se recuperou do parto, voltou a frequentar o estúdio. Quando saía para trabalhar, deixava a filha com a irmã, Rosa Feo. Às vezes, quem cuidava da menina era Fátima Senna Porto, uma jovem de 19 anos, recém-chegada à escolinha. Nilce gostava de Fátima, menina esforçada e muito prestativa. Mojica também curtia a nova discípula, mas por outras razões: era uma morenaça de encher os olhos. Logo estaria de caso com Fátima.

Com mais uma namorada, a situação de Mojica passou a ser a seguinte: continuava morando com Maria e os três filhos no Brás, mas quase não parava em casa. Passava os dias com Nilce no estúdio e as noites com Fátima em algum boteco. De vez em quando, ainda arrumava um tempinho para visitar Rosita. Tudo isso, enquanto acertava o lançamento de vários filmes e tentava levantar dinheiro para novos projetos. Em fevereiro de 1977, ele tinha nada menos de quatro fitas simultaneamente em cartaz em São Paulo: A Estranha Hospedaria dos Prazeres, Como Consolar Viúvas, Mulheres do Sexo Violento (co-dirigido por Francisco Cavalcanti) e Exorcismo Negro, que estava sendo repisado dois anos depois de seu lançamento. Em maio, estreou também Inferno Carnal. Logo depois, ele foi contratado pela atriz Rosângela Maldonado para ajudá-la na direção da comédia erótica A Mulher que Põe a Pomba no Ar.

Mojica estava ansioso para terminar logo o filme com Rosângela e poder se dedicar a seu próximo projeto, Delírios de um Anormal, que marcaria a volta de Zé do Caixão às telas. Pela primeira vez desde Exorcismo Negro, tinha esperanças de fazer um bom filme. Seria seu retorno ao terror, depois de experiências malsucedidas com pornochanchadas, comédias e filmes de suspense. Rubens Lucchetti havia escrito um ótimo roteiro, sobre um psiquiatra (Jorge Peres) que é atormentado por alucinações com Zé do Caixão.

Assim como a maioria dos filmes que havia rodado durante os anos 70, Delírios de um Anormal foi financiado na base da coleta entre alunos. Mojica sabia que não teria muito dinheiro para fazer o filme, por isso decidiu utilizar diversas cenas que havia criado para outras fitas, fazendo uma colagem com as melhores imagens de seus grandes clássicos. Muitas dessas sequencias ainda eram inéditas para o público, pois haviam sido cortadas pelos censores dez anos antes. Mojica acreditava que a Censura, bem menos severa em 1979 do que no fim dos anos 60, liberasse o novo filme sem reclamar.

Mais de 90% das cenas de alucinação de Delírios de um Anormal foram tiradas de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, O Estranho Mundo de Zé do Caixão e Exorcismo Negro. A maior ousadia de Mojica, no entanto, foi incluir diversas sequencias de Ritual dos Sádicos, filme que continuava interditado. Nenhum dos censores percebeu o truque.

Em Delírios, Lucchetti novamente colocou Mojica interpretando dois papéis: o dele próprio e o de Zé do Caixão. O cineasta José Mojica Marins é chamado pelos amigos do psiquiatra delirante para ajudá-lo a curar sua obsessão pelo personagem. É curioso – e ao mesmo tempo triste – notar a preocupação de Mojica em mostrar-se sempre como um diretor de sucesso e fortuna: ele aparece sentado na confortável sala de sua mansão (na verdade a casa de um bicheiro, seu amigo), fumando um cachimbo e tomando um bom scotch. Depois, passeia pelo jardim e observa os empregados divertindo-se na piscina. Um amigo comenta: “Poxa, Mojica, você dá tantas regalias a seus funcionários!”.

Enquanto no filme os funcionários de Mojica tomavam banho de piscina, na vida real os infelizes comiam o pão que o diabo amassou: o diretor de produção Giulio Aurichio, o assistente de câmera Luizinho Oliveira e o ator principal do filme, Jorge Peres, foram encarregados de conseguir vários morcegos para uma cena. Alguém sugeriu que eles tentassem embaixo de uma ponte na Via Anchieta, no caminho de Santos. Munidos de lanternas, gaiolas e uma rede de pesca, os três rumaram para o local.

Realmente não faltava morcego na Anchieta. Eram milhares. Luizinho, Giulio e Jorge pegaram a rede e começaram a caçá-los como se estivessem pescando no ar: quando os bichos voavam, dando rasantes em suas cabeças, eles arremessavam a rede e os capturavam em pleno voo. Mas os morcegos morriam esmagados assim que a rede batia no chão. Luizinho teve a ideia de esticar a malha em frente a um buraco, por onde saíam os pequenos vampiros. A tática deu resultado e logo eles pegaram mais de cinquenta. Puseram os bichos nas gaiolas, cobriram com um pano preto e voltaram ao estúdio.

Durante a viagem de volta, morreram trinta morcegos. No estúdio, os outros também começaram a bater as botas, um atrás do outro. Quando chegou a hora de filmar, só haviam sobrado cinco. Assim que o fotógrafo Giorgio Attili ligou os holofotes para iluminar a cena, ouviu-se o crespilhar das asas dos morcegos, torrando sob as luzes fortes. Morreram queimados.

- Incompetentes! – gritou Mojica, possesso. – Não conseguem nem achar um morcego que preste!

A turma teve de improvisar, amarrando fios de náilon nas patas dos morcegos. O resultado não foi dos melhores: em vez de voar, os vampirinhos aparecem saltitando pelo cenário, como se fossem ioiôs.

Outra cena que demandou muito esforço foi a do “túnel de nádegas”: Mojica havia pedido ao carpinteiro e eletricista Rafael Bastos que construísse um túnel de madeira com vários buracos no teto. A ideia era botar moças sentadas em cima da estrutura, com as nádegas nos buracos. De dentro do túnel, veria-se apenas um monte de nádegas, que seriam maquiadas e pintadas com olhos e bocas. Como as moças não podiam se mexer, sob risco de arruinar a maquiagem, as coitadas tinham de ficar por horas enlatadas no túnel, num desconforto terrível.

 

A decisão de reciclar cenas antigas para compor as alucinações em Delírios de um Anormal foi vista como uma grande trambicagem por vários produtores e fãs. De um ponto de vista puramente estético, no entanto, o filme é uma maravilha: a montagem de Nilce é preciosa e a seleção de cenas não poderia ser melhor.

Para atrair a atenção da imprensa, Mojica começou a espalhar que Delírios era uma colagem de todas as cenas cortadas pela Censura, o que não era verdade (muitas sequencias já haviam sido exibidas nos cinemas). Inventou também uma tremenda cascata, dizendo que havia usado no filme um novo processo cinematográfico, recém-descoberto nos Estados Unidos, chamado “para-audiovisual”. Segundo ele, o processo causava delírios e alucinações nos próprios espectadores. Para provar, mandou seus alunos simular chiliques e desmaios dentro dos cinemas. Ninguém acreditou. Quando o filme estreou, Mojica bolou outra atração, o “estande humano”: diversos alunos foram para a porta dos cinemas, fantasiados de monstros, e reencenaram sequencias do filme. O estande foi um sucesso e rendeu diversas reportagens.

Todo esse esforço promocional, no entanto, não livrou o filme de críticas negativas. No jornal Última Hora, Jean-Claude Bernardet reclamou – com razão – que o uso de imagens antigas e o excesso de cenas de alucinação prejudicavam o andamento da fita:

 

Delírios de um Anormal apresenta-se como uma antologia ou museu de filmes anteriores de Mojica, a totalidade, ou quase, das alucinações do “anormal” são fragmentos de outros filmes, o que dá um tom particular a este novo filme. Primeiro porque Zé do Caixão fica mudando constantemente de caro: as sobrancelhas, a barba, as unhas de Mojica, a cara mais ou menos gorda se modificam a cada sequência, uma variação sobre si próprio. E também porque as sequencias de inferno, tortura, sadismo, isoladas dos enredos para os quais foram concebidas, tornam-se estáticas. O filme não anda. Os pesadelos se multiplicam, mas em cada um deles repetem-se incansavelmente. O tempo parou. O que sobra são efeitos visuais, cenografia, bichinhos etc. Algumas dessas imagens são fortes, outras ridículas, como as desse inferno povoado de chacretes infernais de véus roxos. Aqui, o inferno está entre o fantástico show da vida e Chacrinha.

 

O crítico de O Globo, Ely Azeredo, viu no uso de cenas antigas um protesto de Mojica contra Censura:

 

Delírios de Um Anormal é menos (ou mais) que um filme. É um desabafo, um protesto, um festival. A rigor, não deveria receber cotação. Dez anos depois de proibição (que persiste) de Ritual dos Sádicos, o criador de Zé do Caixão, José Mojica Marins – que sofreu cortes desde o início de sua filmografia de terror, iniciada em meados da década de 60 – resolveu promover à sua maneira uma celebração do obscurantismo oficial. Aproveitando certo relaxamento dos rigores censórios, realizou Delírios apoiado no fato de que nada se perde, tudo se transforma (...) Para os críticos e cineastas aficionados de Zé do Caixão e de seu criador, Delírios deve valer por uma orgia de prazeres cinematográficos (...) Quem não conhece outros filmes de Mojica e entrar na sala que exibe Delírios deve ficar perplexo e/ou desertar sem demora. O que a Censura, em outras oportunidades, condenou como excesso, torna-se efetivamente excessivo nesse festival de cortes resgatados. As alucinações (além de repetitivas, redundantes) têm em comum uma poluição sonora e visual difícil de suportar (...) Mojica presenteia os aficionados com visões infernais temperadas com insólitas aparições de nus e de muros decorados com muitos traseiros e seios. Um gênio incompreendido? Há quem responda afirmativamente.

 

Delírios de Um Anormal levaria mais de um ano para ser lançado. Nesse meio-tempo, Mojica prosseguiu as filmagens do documentário O Diabólico Reino de Zé do Caixão, e co-dirigiu outro filme de Rosângela Maldonado, A Deusa de Mármore – Escrava do Diabo, uma história mística sobre uma mulher de 2 mil anos de idade – interpretada pela própria Rosângela – que se conserva bonita e jovem sacrificando homens para Satã.

Foi durante esta filmagem que ele fez amizade com o produtor Wilson Garcia, dono de uma grande loja de autopeças no centro de São Paulo. Garcia tinha bastante dinheiro e gostava de cinema. Quando Mojica lhe falou da ideia que tinha para um novo filme, Estupro, ele ficou imediatamente interessado. O projeto tinha tudo para ser um sucesso: alguns meses antes, Mojica havia sido apresentado a Elza Leonetti do Amaral, uma quarentona bonita e elegante, conhecida em todo o país como a “milionária assassina”. Fazia dois anos que ela havia matado a tiros seu amante, o ricaço Roberto Lee. Elza alegou legítima defesa e foi condenada a dois anos de prisão domiciliar. Depois surgiram indícios que ela havia forjado o suicídio de seu primeiro marido, o milionário Anésio Augusto do Amaral Filho, de quem havia herdado não só o sobrenome, mas também todo o dinheiro. Mojica sugeriu a Elza fazer um filme inspirado em sua vida, sobre uma mulher que, traída e maltratada pelo marido, resolve se vingar. Ela adorou a ideia se dispôs a bancar parte da produção. Mojica foi além e prometeu inclusive usá-la como atriz. Já podia até ver as manchetes: “Filme reúne Milionária Assassina e Zé do Caixão”.

Wilson Garcia farejou ouro na jogada e topou entrar de sócio. O orçamento ficou em 1 milhão de cruzeiros. Combinaram que Garcia pagaria metade e Mojica e Elza dividiam a outra parte. Só que Mojica não tinha onde cair morto. Seu plano era pegar a grande de Garcia, começar a rodar Estupro e depois usar o dinheiro da bilheteria de O Diabólico Reino de Zé do Caixão e Inferno Carnal para finalizá-lo. Isto é, se conseguisse lançar os dois filmes. Outra hipótese seria convencer atores e técnicos a trabalhar de graça. Ele teve uma ideia: reuniu seus amigos e sugeriu rodar um filme-relâmpago, bancado por cotar, na qual ele atuaria e dirigiria sem ganhar nada. A bilheteria seria toda dos alunos. Em troca, o pessoal se comprometeria a trabalhar de graça em Estupro. A turma concordou e poucas semanas depois já estava rodando Mundo, Mercado do Lixo – Manchete de Jornal.

Mojica anunciou o filme como sua homenagem aos jornalistas. Ele interpreta um repórter que recebe de seu editor a missão de encontrar uma manchete em menos de 24 horas, sob risco de perder seu emprego. O intrépido homem de imprensa pega seu bloquinho e sai pela cidade em busca de uma notícia, mas dá um azar tremendo e sempre perde os acontecimentos por questão de minutos.  É só ele ir embora de um lugar que logo acontece alguma tragédia ou crime. Enquanto ele está na rua procurando uma manchete, o editor vai até sua casa e estupra sua mulher (bela homenagem aos jornalistas!). No final, o personagem de Mojica mata o editor e acaba virando a própria manchete do dia.

As filmagens levaram apenas três semanas. Mojica filmou numa correria louca, improvisando a maioria das cenas. Seu filho Crounel, então com 15 anos, foi assistente de direção, continuísta e escreveu vários diálogos, além de fazer uma ponta. Para Crounel, foi um curso intensivo de cinema “mojicano”, uma chance de sentir na pele a dureza de filmar sob condições tão precárias. No roteiro, havia uma cena passada numa favela. A equipe de Mojica chegou ao local e não havia favela alguma.

- Ué pai, cadê a favela? – perguntou Crounel.

- Que favela? Não tem favela, tem um bar! – disse Mojica, apontando para um botequim.

- Mas pai, no roteiro não tem bar, tem favela!

- Não tem, porque você não escreveu ainda! Começa logo, que a gente vai filmar já!

Crounel ficava louco com o esculacho do pai. Ele era um rapaz caprichoso e metódico, que se orgulhava de suas boas notas na escola e de seu conhecimento de teatro e cinema. Passara meses estudando o método de Stanislavsky, e agora tinha de aprender, em questão de minutos, o método “caixotesco” de cinema de improviso. Como todos os outros discípulos de Mojica, Crounel aprendeu rápido: Mundo, Mercado do Lixo foi rodado, montado e dublado em menos de dois meses. Só estrearia, no entanto, mais de um ano depois, com o título mudado para Mundo, Mercado do Sexo, para tentar faturar em cima da onda de pornochanchada.

 

A equipe nem teve tempo de descansar: mal terminaram Mundo, já iniciaram as filmagens de Estupro, outra história passada nos círculos do “soçaite” paulistano. Mojica bolou um enredo envolvendo uma moça pobre que se vinga do milionário que violentara sua irmã. Ele próprio interpreta o vilão, comendador Vitório Palestrina, um ricaço italiano, cafajeste ao extremo, que se satisfaz humilhando suas amantes e gabando-se de suas conquistas sexuais.

Palestrina violenta uma jovem, Sílvia (Nádia Destro) e, numa cena grotesca, arrancha um dos mamilos da moça a dentadas. Orgulhoso de sua façanha, o tarado exibe o mamilo para os amigos, como se fosse um troféu de caça. Em seguida, é apresentado a uma linda moça, Verônica (Arlete Moreira), mas ela não parece atraída por seu charme irresistível. Louco de paixão e desejo, Palestrina faz de tudo para conquistar a rapariga, sem saber que na verdade ela é irmã da menina que ele seduzira. Elza Leonetti interpreta uma advogada que acusa o comendador de ter violentado Sílvia.

Os grã-finos de Estupro andam de terno quadriculado e tomam uísque em copo de requeijão; o comendador, para impressionar Verônica, leva-a para um banho de mar em Santos, e em seguida convida seus amigos para um jantar chique – numa churrascaria da Praça da República! Os diálogos são pretensamente rebuscados e soam ridículos. Durante uma aula na USP (a personagem de Verônica é estudante de medicina) um dos alunos pergunta: “Professor, o soro glicosado 5% pode ser injetado na veia?”. O professor rebate com outra pérola: “O coração é dividido em duas aurículas e dois ‘ventríloquos’”. A trilha sonora do filme beira o surreal: Mojica usou – sem pagar um centavo – músicas de Pink Floyd e Paul McCartney. Cada vez que seu personagem aparece, ouve-se o tema de A Ponte do Rio Kwai.

Ninguém gostou do filme. os críticos malharam e a Censura exigiu a mudança do título para algo mais “ameno”: Perversão. Na revista Isto É, Rubens Ewald Filho escreveu:

 

Difícil é aceitar que Mojica seja um milionário, principalmente italiano, como é seu personagem, o comendador Vitório, com sua casa povoada de grã-finos da Boca do Lixo, vestindo terninhos da Ducal e comendo salgadinhos em bandejas de papelão. A ideia que Mojica e seus colegas cineastas da Boca fazem dos ricos merece um estudo sociológico. Segundo eles, os ricos são todos imbecis sem profissão, que dizem frases em português escorreito, formulando ideias dignas de uma novela de rádio, e com uma única ideia na cabeça: de faturar as vadias que se passam por mulheres da sociedade (...) O triste é que José Mojica Marins, nos seus primeiros filmes (Á Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver) tinha um certo charme do malfeito. Era como um pintor primitivo que levaram para a escola a fim de aprender a pintar. Disseram-lhe que era gênio e ele acreditou. Hoje já sabe fazer fotografias de cartão-postal e dar declarações intelectualizadas. Mas é apenas um borra-botas igual a tantos outros.

 

Quando finalizou Perversão, Mojica estava exausto. Entre 1976 e 1978, ele dirigira ou co-dirigira nada menos de oito filmes: Como Consolar Viúvas, Inferno Carnal, A Mulher que Põe a Pomba no Ar, Deusa de Mármore, Delírios de Um Anormal, Mundo, Mercado do Sexo, Estupro (Perversão) e o documentário O Diabólico Reino de Zé do Caixão. Nenhum desses se comparava, em termos de inventividade e força, aos filmes que fizera nos anos 60. Apesar de sua produção prolífica, Mojica continuava numa dureza de dar pena. Ele não recebia percentual sobre a bilheteria de alguns filmes, e o desempenho das fitas nas quais tinha parte – Inferno Carnal, Delírios de um Anormal e Perversão – não ficou nem peto do que esperava.

Quanto a O Diabólico Reino de Zé do Caixão, Mojica deu um azar tremendo: na véspera de começar a dublagem, seu continuísta Ronaldo Rocha dos Santos desapareceu, levando os blocos de anotação com todos os diálogos. Não era costumeiro fazer documentários com som dublado, mas Mojica nunca havia aprendido a usar som direto e ainda utilizava o antiquado método de copiar à mão as falas, para depois reproduzi-las em estúdio. Com o sumiço do continuísta, ele agora tinha horas de cenas filmadas e não sabia o que os personagens estavam falando. A solução foi inventar uma esquisita narração em off, na qual ele simplesmente comentava as cenas que eram mostradas.

 

Nessa época, Mojica havia transferido sua escolinha para um prédio na rua Barão de Jaguara, na Moóca. Estava tão duro que costumava ir a pé até o centro para economizar o dinheiro do ônibus. Um dia, Crounel teve uma ideia louca: queria fazer uma discoteca no estúdio. O Brasil vivia a febre de Os Embalos de Sábado à Noite e da novela Dancin´Days, e a juventude da Moóca só queria saber de calças boca-de-sino e camisas de náilon. Mojica, que não tinha nada a perder mesmo, permitiu.

A primeira festa foi um desastre: uma caixa de som caiu na cabeça de um sujeito que estava dançando e o pessoal, assustado, se mandou. Crounel não desistiu. Na semana seguinte, alugou um som potente, decorou o estúdio com desenhos de caveiras e batizou o lugar de Discoteca do Caixão. O público gostou da novidade. Em menos de um mês, a discoteca transformou-se no maior programa da moçada da Moóca. Às sextas e sábados, o point da galera era o “Caixão”. A polícia também aprovou:

- Seu Mojica, muito legal essa discoteca que o senhor montou. Antes, a gente tinha que policiar a Moóca inteira, agora é só aqui, porque os maus elementos estão todos reunidos!

A discoteca sustentou o estúdio por seis meses, até que os vizinhos, fartos do movimento e barulho, reclamaram na delegacia e exigiram seu fechamento.

Em julho, Mojica foi convidado para exibir Delírios de um Anormal e o faroeste A Sina do Aventureiro numa mostra de filmes de horror que seria realizada paralelamente ao Festival de Brasília. Era a primeira vez que participava de um festival no Brasil. Apesar de a mostra ter sido batizada de Horror Nacional, o único diretor efetivamente dedicado ao gênero era ele. Os outros filmes eram de cineastas ligados ao cinema “udigrudi”, como Rogério Sganzerla (O Abismu, Sem Essa Aranha e Anjo), Júlio Bressane (Agonia e Rei do Baralho) e Elizeu Visconti (Os Monstros de Babaloo).

Essa mostra paralela, dominada pelo chamado cinema alternativo, ou marginal, fez um contraponto interessante à mostra oficial, marcada por fitas de diretores do establishment embrafílmico como Cacá Diegues (Chuvas de Verão), Ruy Guerra (A Queda), Walter Lima Júnior (A Lira do Delírio) e Arnaldo Jabor (Tudo Bem). Mojica foi o grande destaque do festival: não só exibiu dois filmes, como ainda atuava em O Abismo, de Sganzerla, e era tema de um curta-metragem do cineasta Ivan Cardoso, O Universo de Mojica Marins. Deu dezenas de entrevista e passou tardes bebendo uísque na piscina do Hotel Nacional, em companhia do diretor de TV Walter Clark.

Quando voltou a São Paulo, Mojica recebeu um, convite para participar do Festival de Cinema Fantástico de Sitges, na Espanha, que se realizaria em outubro. Ele já havia sido convidado em anos anteriores, mas sua desorganização e problemas com a liberação dos filmes na Censura haviam atrapalhado seus planos. Desta vez, estava decidido a ir. Para divulgar sua viagem, organizou uma festa em comemoração aos quinze anos do caixão que o acompanhava desde as filmagens de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Vários amigos e admiradores compareceram, como Rubens Lucchetti, o físico nuclear Mário Schemberg e Almeida Salles, presidente da Cinemateca Brasileira.

Mojica rebocou para a Espanha uma verdadeira comitiva: além dele e do assistente Satã, viajaram o produtor de Estupro, Wilson Garcia, sua mulher, Aparecida e o jornalista e cineasta Jairo Ferreira, que cobriu o evento para a Folha de S. Paulo. A viagem não foi tão excitante quanto a visita a Paris, quatro anos antes. Em vez de exibir seus velhos clássicos, Mojica teimou de levar três produções recentes – Estupro, Delírios de um Anormal e Mundo, Mercado do Sexo – que decepcionaram o público. Os jurados, para não o deixar voltar de mãos vazias, resolveram lhe conceder uma menção honrosa pelo conjunto de sua obra e por “grandes serviços prestados ao cinema de horror”.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Mojica early years, parte XIII: 1974-1975: Zé do Caixão enfrenta “O Exorcista” – O Diabo é Nosso!

        Capítulo 14: 1974-1975: Zé do Caixão enfrenta “O Exorcista” – O Diabo é Nosso!


         Por André Barcinski e Ivan Finotti


        


 


Mojica voltou da França com a bola cheia. Assim que suas fotos ao lado de Christopher Lee começaram a aparecer nos jornais brasileiros, a imprensa local, que o havia ignorado solenemente pelos últimos quatro anos, publicou diversas reportagens sobre seu sucesso no exterior. Aproveitando a boa fase, ele transferiu sua escola para um prédio de três andares na avenida Celso Garcia, no Brás, e batizou o lugar de Caixolândia.

O produtor Aníbal Massaini Neto, filho do famoso Osvaldo Massaini, ficou impressionado com a repercussão dos prêmios de Mojica na Europa e decidiu convidá-lo para dirigir um filme. Naquela época, o mundo inteiro estava surpreso com o sucesso de O Exorcista, o filme de William Friedkin baseado no livro de William Peter Blatty. Massaini teve a ideia de filmar uma espécie de versão brasileira de O Exorcista e lançá-la simultaneamente ao filme americano, cuja estreia no Brasil estava marcada para novembro de 1974.

Massaini deu uma cópia do livro para Mojica e pediu que ele botasse uma história envolvendo possessão demoníaca (Mojica, preguiçoso, mandou Nilce ler o livro e contar as melhores partes). O produtor garantiu uma verba de 150 mil dólares – três vezes mais do que qualquer outro filme de Mojica – e lhe prometeu um bom salário, além de 15% sobre o lucro líquido do filme. Mojica procurou Rubens Lucchetti e pediu que escrevesse o roteiro.

- Rubens, o Massaini vai bancar tudo, pode inventar o que quiser! Exagera mesmo, põe uma mansão, um castelo!

Assim como já fizera em Ritual dos Sádicos, Mojica queria misturar ficção e realidade, explorando sua própria fama. Ele sugeriu a Lucchetti uma história no qual ele próprio, José Mojica Marins, enfrentasse sua criatura, Zé do Caixão. Lucchetti gostou da ideia e escreveu Exorcismo Negro.

Massaini contratou uma equipe de profissionais gabaritados para trabalhar na fita, incluindo o fotógrafo Antônio Meliande e o assistente de câmera Jorge Pfister Jr. O elenco teria Jofre Soares, Georgia Gomide, Walter Stuart, Wanda Kosmo e iniciantes como Alcione Mazzeo e Marcelo Picchi. O assistente de produção seria o novato André Klotzel, que anos mais tarde dirigiria o premiado A Marvada Carne. Da equipe de Mojica, apenas Marcelo Motta foi aproveitado, como assistente de direção. Adriano Stuart (filho do ator Walter Stuart) trabalhou como diretor-assistente, além de atuar no filme. Ele acabaria recebendo crédito como roteirista, o que deixou Lucchetti extremamente magoado. Stuart era o homem de confiança de Massaini e ficou responsável por garantir um mínimo de ordem no set de filmagens. Massaini respeitava Mojica, mas temia que ele cometesse algumas das barbaridades de filmes passados, como obrigar os atores a mexer com cobras e aranhas caranguejeiras.

 

Nas primeiras cenas de Exorcismo Negro, Mojica aparece recebendo a imprensa para falar de seu recente sucesso na Europa. Ele revela estar sofrendo um bloqueio criativo e diz que aceitou o convite de um amigo, Álvaro (Walter Stuart), para passar o Natal em sua casa der campo, onde pretende relaxar e pensar em seu próximo filme.

Os fãs de Mojica certamente estranharam ao vê-lo interpretando a si próprio, com ares de intelectual. Na casa de campo, Mojica e Álvaro jogam xadrez, fumam cachimbos e discutem temas como parapsicologia e as obras de Conan Doyle (um dos autores prediletos de Lucchetti).

Mojica logo percebe que alguma coisa não está certa na casa: cadeiras andam sozinhas pelos corredores, tridentes aparecem no espelho do quarto e livros viam das estantes, como que impulsionados por uma força invisível. Logo depois, o cachorrinho da família aparece morto no jardim. A coisa fica ainda mais esquisita quando a família de Álvaro começa a ficar possuída por espíritos malignos. A primeira vítima é seu pai, Júlio (Jofre Soares). Ele sofre uma espécie de delírio, durante o qual ataca Mojica. Depois, é a vez de Wilma (Ariane Arantes), filha mais velha de Álvaro.

O que Mojica não sabe é que a mulher de Álvaro, Lúcia (Georgia Gomide), havia feito, vinte anos antes, um pacto com uma bruxa (Wanda Kosmo) para ter uma filha. A bruxa deu à Lúcia uma filha – Wilma – com a promessa de que a criança, depois de adulta, se casaria com Eugênio (Adriano Stuart), que na verdade é filho de Satã. Quando Wilma anuncia seu casamento com Carlos (Marcelo Picchi), a bruxa se revolta e convoca Zé do Caixão para cobrar a dívida e consumar o matrimônio infernal. Zé celebra uma missa negra para ratificar a união de Wilma e Eugênio, e ordena o sacrifício da filha mais nova de Álvaro, a pequena Betinha (interpretada por Merisol, filha de Mojica). Mas Mojica descobre os planos de Zé do Caixão e tenta evitar o casamento. Criador e criatura acabam finalmente se encontrando:

- Fiz de tudo para evitar esse encontro – diz Zé do Caixão.

Mojica acha que está sofrendo uma alucinação. Zé pergunta:

- Por acaso não acredita no que faz?

Depois, para provar seus poderes, Zé manda seus assistentes iniciarem uma bárbara sessão de tortura, arrancando línguas de penitentes, decepando dedos e chicoteando mulheres indefesas. Mojica se borra de medo. Segurando um crucifixo, ele pede ajuda a Deus:

- Eu acredito em Deus Pai! Em nome do nosso Senhor Jesus Cristo, ordeno que abandonem esses corpos!

Comparado aos outros filmes de Mojica, Exorcismo Negro teve uma filmagem tranquila. Um dos poucos problemas enfrentados pela equipe foi uma alergia braba que atacou os olhos do ator Jofre Soares, causada pelas lentes de contato vermelhas que ele teve de usar na cena em que estava possuído. Depois que Jofre colocou as lentes, não conseguiu mais tirá-las. Seu rosto começou a inchar e a equipe teve que levá-lo às pressas para um hospital.

O episódio mais grave, no entanto, foi um acidente de trânsito em que provocou ferimentos em Mojica e em três outros membros de sua equipe. Na segunda-feira, 25 de junho, Mojica, o assistente Marcello Motta, o guarda-costas Satã e o motorista João Rosa foram a um restaurante japonês na Liberdade, depois da filmagem. Tomaram saquê à vontade e saíram do lugar num porre de dar pena. João estava tão chumbado, que caiu numa escadaria e torceu o braço. Decidiram levá-lo para o pronto-socorro. Como Mojica não sabia dirigir e Motta estava num estado deplorável, Satã – que nem carteira de habilitação tinha – assumiu o volante da kombi de João. Três quarteirões depois, ele avançou um sinal na rua Tamandaré, na Liberdade e bateu de frente com um Karmann-Ghia que vinha em sentido contrário. A kombi capotou duas vezes e foi parar em cima da calçada. Por sorte, ninguém se machucou seriamente. Uma ambulância veio e levou todo mundo. Mojica, com medo de que a história acabasse nos jornais, pirulitou-se da chegada da polícia, enquanto João, Satã e Marcelo Motta tiveram de passar a noite inteira no Distrito, dando explicações para o delegado.

Exorcismo Negro ficou pronto em setembro, dentro do prazo previsto. Mas a Censura atrasou a liberação e Massaini não conseguiu lançá-lo junto com O Exorcista, como pretendia. Mesmo assim, Mojica decidiu aproveitar a onda em cima do filme americano para obter publicidade para sua fita.

O lançamento de O Exorcista estava sendo aguardado como o grande acontecimento cinematográfico do ano no Brasil. No dia da estreia do filme, 11 de novembro de 1974, as filas começaram a se formar quatro horas antes da primeira sessão. No Rio, às nove da manhã, já havia uma multidão em frente ao Cine Roxy, em Copacabana. Houve empurra-empurra e as vidraças do cinema acabaram estilhaçadas, ferindo duas pessoas. Em São Paulo, a polícia teve de ser chamada para controlar as filas.

Mojica não poderia perder uma chance dessas: no fim de semana de estreia de O Exorcista, ele fantasiou-se de Zé do Caixão e improvisou um comício na porta do Cinema Ipiranga, no centro de São Paulo. Empunhando cartazes de Exorcismo Negro e cercado por alguns de seus assistentes, Zé conclamava o povo a esquecer o exorcista gringo e prestigiar o similar nacional:

- Por que vocês estão interessados nesse demônio americano? – gritava. – Lá nos Estados Unidos ninguém sabe nada do diabo! Quem sabe de diabo é brasileiro! O diabo é nosso!

O slogan acabou colando. Os jornais adoraram a história e mandaram repórteres cobrir o protesto. A cena era extraordinária: Zé do Caixão correndo a quilométrica fila do cinema, implorando aos espectadores para que desistissem de ver o filme americano:

- Esse demônio americano não é de nada! Diabo por diabo, o brasileiro é muito melhor! Vocês nunca prestigiaram os meus filmes, mas pagam para ver o diabo gringo! É o fim do mundo!

Mojica deu entrevista aos jornais malhando O Exorcista: “Vê se pode, um diabo que faz levitação, arrasta móveis, racha teto de cimento armado, e depois não consegue se libertar de duas correiazinhas de couro? Onde já se viu isso?”. Depois, explicou as vantagens do diabo nacional: “O diabo brasileiro só entra num lugar para cometer uma série de maldades, tentando conseguir mais gente para seu lado. Já o estrangeiro, mata sua vítima sem nenhum objetivo. O nosso visa o espírito; o estrangeiro a matéria”.

O protesto rendeu dezenas de reportagens sobre Exorcismo Negro, mas não parece prejudicado a bilheteria de O Exorcista. Numa lista publicada pela Embrafilme em 1984, O Exorcista apareceria como o quinto filme mais assistido no Brasil, com 8 milhões de espectadores, atrás apenas de Tubarão (13 milhões), Dona Flor e Seus Dois Maridos (10,7 milhões), Inferno na Torre (10,3 milhões) e E.T. – O Extraterreste (8,1 milhões).

 

Exorcismo Negro estreou no dia 23 de dezembro, em doze cinemas de São Paulo. A produção “sofisticada” do filme confundiu os críticos. Se antes eles malhavam o primitivismo das fitas de Mojica, agora reclamavam que Zé do Caixão estava refinado demais. No Jornal da Tarde, Luciano Ramos escreveu:

 

Tudo indica que o diretor de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma busca o refinamento. Acabou-se o charme dos cenários de papelão e graça do barbudo de capa preta, saltitando entre sepulturas de um cemitério do interior. Agora Mojica cuida mais da linguagem cinematográfica e contrata atores profissionais (...) Moderadíssimo, quase não mostra mulheres nuas com aranhas e cobras.

 

Leon Cakoff, escrevendo no Diário da Noite, também reclamou da sofisticação do filme:

 

O requinte primitivo que envolvia o personagem Zé do Caixão, criado por José Mojica Marins, acabou por enquadrar-se às exigências de uma produção Cinedistri (empresa de Massaini). Tem até um solar de fachada quase igual aos castelos medievais presentes na maioria dos filmes de horror europeus. Para o ator, o seu personagem é que se internacionaliza. Para o espectador mais atento, novos sintomas da aculturação que já faz algum tempo vem corroendo aspectos relevantes da cultura nacional.

 

Apesar das críticas mornas, o filme estava atraindo um bom público, e acabou ficando três semanas em exibição no Art-Palácio. Para atrair mais atenção, Mojica promoveu um coquetel de lançamento dentro do cemitério da Consolação, com a presença de toda a imprensa paulistana. Em seguida, organizou uma de suas jogadas promocionais mais astutas e ambiciosas: mandou que seus alunos, fingindo-se de espectadores, simulassem transes hipnóticos durante as sessões de Exorcismo Negro. Um de seus assistentes ligou para os jornais, identificando-se como gerente de um cinema e avisando que um “fenômeno paranormal nunca visto” estava acontecendo durante as sessões do filme. Os jornais mandaram repórteres para conferir a história. Os alunos de Mojica, quando percebiam a presença de jornalistas, começavam a gritar e a pular nas poltronas, como se estivessem possuídos. Outros fingiam desmaios e ataques histéricos. A performance deu tão certo que Mojica decidiu mandar um ônibus cheio de alunos para Curitiba, na semana de lançamento do filme na cidade. Vários acabaram no xadrez, depois que o gerente chamou a polícia para reclamar da bagunça.

Quando Exorcismo Negro estreou no Rio de Janeiro, em 27 de janeiro de 1975, os críticos cariocas reagiram da mesma forma que seus colegas paulistas. Onézio Paiva, do Última Hora, acertou na mosca:

 

Os cuidados da produção dispensados por Aníbal Massaini Neto não se revelaram tão eficientes quanto era de se esperar. E por um motivo bem simples: primitivo, rústico e intuitivo, Mojica parece mais à vontade e criativo quando trabalha em condições precárias – principalmente se não dispõe de recursos para realizar sequer uma cenografia de médio nível artístico, pois, paradoxoalmente que seja, ele respira melhor num meio de escassez, de pobreza e de ignorância – elementos que lhe permitem traduzir, conscientemente ou não, certos aspectos da miséria brasileira. O ambiente limpo, falsamente tranquilo e reluzente da alta classe média não é, positivamente, seu terreno ideal.

 

O crítico de O Globo, Fernando Ferreira, gostou do filme, embora concordasse que Mojica não parecia muito à vontade interpretando um intelectual:

 

Esta é a primeira fita de José Mojica Marins na qual o argumentista-diretor-produtor-ator teve a seu alcance condições amplamente favoráveis ao nível da produção. Sob esse aspecto, é o mais satisfatório dos filmes desse realizador ao mesmo tempo supervalorizado e incompreendido (...)

Resta saber até que ponto a espontaneidade da inventiva de José Mojica Marins, patente nos seus filmes mais expressivos, como Á Meia-Noite Levarei Sua Alma e O Estranho Mundo de Zé do Caixão, não se acanhou neste esquema de cinema desenvolvido. Parece claro que isso se deu. Mojica Marins dissertando eruditamente sobre parapsicologia, sobre Conan Doyle e Sherlock Holmes, sua criatura, absorvido em leituras e apontamentos, jogando xadrez em sala grã-fina e bebendo do melhor Passport, enquanto fenômenos de possessão vão acontecendo na casa onde descansa, são coisas que soam falso e inconsistente (...)

A melhor sequência do filme é a missa negra oficiada por Zé, finalmente em cena depois de muitas promessas. Aí Mojica Marins vai ao encontro do melhor de suas possibilidades: a história em quadrinhos, o grand Guignol, a efervescência temática de mitos populares, o tradicional filme de horror e a delirante imaginação do realizador brotam, afinal, incontidos, num show de circo e mafuá – aqui com certo requinte de luxo – que tem realmente algo a acrescentar à singular carreira do cineasta.

 

Exorcismo Negro ficou em exibição na cidade de São Paulo por quase dois meses, depois foi lançado no interior do Estado e em outras capitais. Em março, Mojica estava promovendo o lançamento do filme em Belo Horizonte, quando ocorreu um evento bizarro que lhe trouxe ainda mais publicidade. Um grupo de trinta alunos estava na cidade de Americana, noroeste de São Paulo, rodando um filme de terror em Super-8 chamado Materialização. A fita seria uma espécie e “prova final” do curso de cinema de Mojica (ele encorajava seus discípulos a fazer seus próprios filmes, para ganhar experiência).

Na madrugada de segunda-feira, 22 de março, o padre João Rodrigues foi acordado em sua casa por alguns vizinhos, que diziam ter visto “moças nuas andando pelo cemitério da cidade”. Intrigado, ele foi ao local e percebeu que havia uma movimentação intensa dentro do cemitério. O sacerdote entrou no cemitério e ficou estarrecido com o que viu: rapazes seminus corriam pelas catacumbas; outros cansavam e dançavam, enquanto moças de calcinha e sutiã rebolavam entre as sepulturas. Não se conteve:

- Isso é uma profanação de um lugar sagrado! Saiam daqui, seus miseráveis!

Um dos alunos tentou argumentar, dizendo que também era cristão, mas que no momento estava apenas trabalhando.

- Você chama isso de trabalho? Até os pagãos do Império Romano respeitavam as catacumbas! Ordeno que vocês vão embora!

Quando percebeu que suas ordens não seriam cumpridas, o padre apelou para o pessoal que observava a cena de cima do muro:

- E vocês, filhos de Deus? Vão ficar aí parados enquanto esses maconheiros pisam nos seus semelhantes? Vamos acabar com isso! Quem for cristão que me acompanhe!

A multidão não resistiu ao apelo e invadiu o cemitério, botando os atores para correr. Os cristãos de Americana destruíram todo o equipamento e surraram uma dúzia de alunos, que correram para se abrigar na casa do zelador do cemitério. A massa enfurecida começou a apedrejar o prédio e tentou arrombar a porta. A polícia chegou poucos minutos depois e evitou o linchamento. Mesmo assim, dois alunos – inclusive uma moça – levaram pedradas e tiveram que ser hospitalizados.

Na delegacia, o padre não se conformava: “Quando vi aqueles rapazes de cor e enormes cabeleiras correndo sobre as sepulturas, não resisti!”. Mojica voltou correndo a São Paulo e deu várias entrevistas lamentando o incidente e reclamando dos “enormes prejuízos” que sofrera. Duas semanas depois foi a Americana, onde reuniu a imprensa local e agradeceu ao povo americanense pela “recepção hospitaleira”. A cidade retribuiu com um processo por violação e profanação do cemitério, que acabou não dando em nada.

Com tanta publicidade gratuita, Exorcismo Negro rendeu um bom dinheiro. Mojica saiu da pindaíba absoluta em que se encontrava e alugou um pequeno sobrado de dois quartos na Moóca, para onde foram sua mãe e Nilce. Depois de passar quatro anos dormindo no sofá da casa de Carmen, Nilce finalmente teria um quarto só seu.

Apesar de morarem juntas por tanto tempo, Nilce e Carmen não se davam. Carmen ainda a via como uma intrusa, e a acusava de ter atrapalhado o casamento do filho, o que era uma tremenda injustiça, uma vez que Mojica, quando conheceu Nilce, já nem morava mais com a esposa Rosita, mas com a amante, Maria.

Nilce sofria o diabo com as outras mulheres de Mojica: durante as filmagens de Exorcismo Negro, Maria foi diversas vezes ao estúdio acompanhando a filha Merisol, que atuava no filme. Chegou a ameaçar Nilce de morte caso descobrisse que ela tinha alguma coisa com Mojica. Poucos dias depois, foi Rosita quem invadiu o estúdio e atacou Nilce com um cinto. O irônico é que quem trabalhava para sustentar Rosita e Maria era, no final das contas, a própria Nilce. Ela não tinha salário, férias ou hora de dormir; trabalhava feito um cavalo e dependia de Mojica para tudo. Quando confrontada por Maria ou Rosita, Nilce negava o romance com Mojica, mas na verdade os dois estavam cada vez mais ligados. O relacionamento de Mojica e Maria havia esfriado. E Rosita nem entrava mais na equação: Mojica só ia à sua casa para visitar o filho.

 

(...)

 

Nilce sabia que tinha condições de ganhar a vida montando filmes ou comerciais de TV. Afinal, já era conhecida nos meios de cinema como uma montadora de talento. Há dez anos vinha observando atentamente o trabalho de vários montadores e aprendendo os segredos da profissão, tendo inclusive ajudado Luiz Elias e Roberto Leme na montagem de vários filmes. Mojica se desesperou. Implorou para que ela não o abandonasse e prometeu torná-la sócia em uma nova produtora. Semanas depois, fundou a Produções Cinematográficas Zé do Caixão, e anunciou a filmagem de A Estranha Hospedaria dos Prazeres.

Como sempre fazia às vésperas de filmar, Mojica tratou de armar algum evento para atrair a atenção da imprensa. Seu objetivo era divulgar seu mais novo projeto e, quem sabe, conseguir investidores para o filme. A primeira ideia que lhe veio à cabeça foi organizar uma passeata em defesa do cinema nacional. Mudou de ideia assim que viu a manchete do jornal Notícias Populares de domingo, 11 de maio de 1975: “Nasceu o Diabo em São Paulo”.

No dia anterior, o repórter policial Waldemar de Paula estava de plantão na redação do NP quando soube de um boato que se espalhava pela cidade. Dizia-se que um bebê com pelo e chifres havia nascido em um hospital da periferia. Waldemar ligou para algumas maternidades, mas não conseguiu confirmar a história. Mesmo assim, escreveu um artigo, no qual batizou a criança de “Bebê-Diabo”. Na segunda-feira de manhã, o editor Ebrahim Ramadan e o secretário de redação, José Luiz Proença, receberam um telefonema do responsável pela distribuição do jornal, informando que a edição havia esgotado:

- Todo mundo está querendo saber mais sobre esse Bebê-Diabo!

Não se falava em outra coisa na cidade: em pontos de ônibus, botequins, escolas, salões de cabelereiros, escritórios, o assunto do dia era o Bebê-Diabo. O telefone do jornal não parou de tocar. Eram leitores jurando de pés juntos ter visto o tal filho do capeta. Um repórter do NP descobriu um hospital em São Bernardo do Campo, onde os médicos e funcionários garantiam ter presenciado o nascimento de uma criança deformada e peluda. Só que ninguém sabia onde estava a criança. No dia seguinte, o jornal alardeou: “Bebê-Diabo Desaparece!”.

Aí a coisa pegou fogo: leitores começaram a ir ao jornal em bandos, contando histórias mais mirabolantes. Uns diziam ter visto o bebê andando por Osasco; outros juravam terem sido perseguidos pela criatura em São Bernardo do Campo. Um desenhista do jornal fez um retrato falado do demônio, baseado na descrição de um leitor. Às dez da manhã, a edição de terça-feira já estava esgotada. Naquela mesma tarde, chegaram à redação os resultados da pesquisa de venda nas 2 mil bancas de São Paulo. O encalhe da edição de domingo havia sido de exatos oito exemplares, e estes só não foram vendidos porque estavam destroçados e ilegíveis pelo excesso de manuseio. A chefia do jornal imediatamente aumentou a tiragem de 70 mil para 150 mil. O sucesso foi tão grande, que o Notícias Populares deu nada menos de 28 reportagens consecutivas sobre o Bebê-Diabo.

Mojica, que dois anos antes já havia exorcizado o Vampiro de Osasco para o NP, telefonou para o editor Ebrahim Ramadan pedindo para entrar na cobertura do Bebê-Diabo. Depois inventou uma tremenda cascata, dizendo que havia recebido informações de que o tal filho do demo estaria em Salvador.

- Vou mandar meus dois assistentes mais corajosos, Satã e Marcello Motta, para a Bahia, atrás do Bebê-Diabo!

O jornal deu ampla cobertura à caçada de Mojica: uma chamada de primeira página dizia: “Zé do Caixão vai caçar Bebê-Diabo no Nordeste”. Dois dias depois, outra reportagem informava que os emissários de Mojica haviam, de fato, feito contato com o pequeno Lucífer. Segundo o artigo, Satã e Marcelo Motta teriam encontrado o capetinha na cidade de Qui-Papa, no interior da Bahia. Motta declarou ao jornal: “Existe uma lenda no Nordeste segundo a qual, há muitos anos, quando Satanás andava por lá carregando seu filho – o Bebê-Diabo – no colo, deixou-o no meio do sertão para procurar água. O demônio largou seu filho lá, por vários dias, sem água. Quando voltou, o bebê havia encontrado água por conta própria e, apontando para o solo, falou ao Papai-Diabo, indicando a água: ‘Qui-papa, qui-papa...’. Daí batizaram a cidade com esse nome!”.

A cara-de-pau de Mojica e sua trupe era impressionante: Satã e Marcelo Motta não tiveram nem a preocupação de se esconder por um dia ou dois para simular a tal viagem à Bahia; Satã passou aqueles dias enchendo a cara num bar da Moóca, enquanto Motta havia começado a dirigir A Estranha Hospedaria dos Prazeres.

 

Mojica deixou Motta dirigir o filme. Estava exausto de tanto trabalho e ainda não havia resolvido sua situação com Nilce. Além do mais, Motta, que o acompanhava desde 1969, há muito vinha pedindo a chance de dirigir. Como não conseguiu nenhum produtor disposto a bancar a produção, Mojica recorreu ao velho sistema de cotas para fazer A Estranha Hospedaria dos Prazeres. Mais de cem alunos se cotizaram e bancara o filme.

A equipe foi formada basicamente por alunos. Os únicos profissionais seriam Mojica, Nilce e o fotógrafo Giorgio Attili. Todos os outros eram novatos: Marcelo Motta (diretor), Jorge Perez Ortega (diretor de produção), Giulio Aurichio e Airton Lopes (assistentes de produção), José Geraldo (assistente de câmera), Rafael Bastos da Silva (eletricista-chefe), Luiz Antônio de Oliveira (eletricista), Ivo Casimiro da Silva (contra-regra), Creusa Maria (maquiadora), Laurentin Antonescu (técnico em efeitos especiais) e Ronaldo Rocha (continuísta).

A história do filme se passa numa única noite de tempestade, em uma misteriosa hospedaria. Mojica – usando um engraçado chapéu-coco – interpreta o gerente do estabelecimento. Vários tipos começam a chegar – um casal de noivos, um grupo de industriais, uma gangue de motoqueiros hippies, uma adúltera com seu amante – e cada um vai para seu quarto. Durante a noite acontecem brigas, crimes, orgias e toda sorte de acidentes, muitos deles apenas imaginados pelos hóspedes. Quando amanhece o dia, descobre-se que a hospedaria na verdade é um cemitério, e que o personagem de Mojica é a própria morte.

A pobreza da produção é evidente: para economizar, Mojica usou diálogos e músicas de outros filmes. Numa cena em que os motoqueiros hippies fazem um bacanal na hospedaria, ele usou o mantra “Todo mundo nu, oba! Peladinho, peladão, oba!”, gravado cinco anos antes para Finis Hominis. A inexperiência dos alunos obrigou-o a refazer diversas cenas por causa de gafes banais como erros de continuidade e imagens fora de foco.

Os efeitos especiais também deram muito trabalho: havia uma cena em que o personagem de Mojica matava alguns ratinhos brancos apenas com a força de seu olhar. O eletricista-chefe Rafael Bastos da Silva montou um chiqueirinho de areia em cima de uma placa de metal ligada a fios elétricos, para eletrocutar os ratos, Luiz Antônio de Oliveira, o Luizinho, espécie de faz-tudo da equipe, ficou no interruptor, pronto para dar a descarga fatal. Ele deveria esperar que Mojica olhasse para os ratinhos e só então ligar a corrente elétrica. Mas estava tão nervoso que, assim que gritaram “câmera” ele ligou a tomada e os ratos caíram duros.

Luizinho era mais um desses abnegados que largou tudo para trabalhar com Mojica. Ele ganhava a vida como taxista em São Paulo, quando resolveu tentar a sorte no cinema. Acabou trabalhando como técnico e fotógrafo em uma dúzia de filmes. Era tão pobre, que passou dois anos morando no estúdio e dormindo dentro do caixão de Mojica. Em noites frias, botava um pauzinho segurando a tampa do esquife, para poder respirar.

A filmagem de A Estranha Hospedaria dos Prazeres terminou em agosto. Faltou dinheiro para completar a dublagem, o que forçou Mojica a vender uma parte do filme para Alfredo Cohen, dono da distribuidora Brasil Cinematográfica. O dinheiro de Cohen foi usado também para refilmar algumas cenas que haviam sido prejudicadas pela inexperiência do diretor Marcello Motta.

Em dezembro, estava marcada a festa de formatura de uma turma de alunos de Mojica. Todo ano ele organizava essas festas, nas quais distribuía diplomas aos melhores atores de sua classe e faturava um troco com bingos e rifas. Sua atuação financeira até que não era das piores: ainda tinha parte do salário de Exorcismo Negro e recebia todo mês seu 15% da bilheteria do filme, que continuava em cartaz e cidades do interior. Ainda tinha A Estranha Hospedaria dos Prazeres no forno, com lançamento previsto para o início de 1976.

Foi aí que Mário Lima veio com outra de suas ideias brilhantes (a primeira foi a compra da perua C-14): ele sugeriu fazer a formatura na Viola de Ouro, outro gigantesco salão no Ipiranga, e convenceu Mojica a investir suas economias na compra de bebidas e salgadinhos para vender na festa. Mário contratou trinta garçons, comprou toalhas de renda branca e alugou jogos de talheres e pratos finíssimos. Depois, foi a um armazém e alugou comida para abastecer um exército: 100 quilos de queijo provolone, 50 quilos de azeitonas, 30 latas de picles, além de jarras de tremoços e batatinhas em conserva. Trouxa ainda caixas e mais caixas de champanhe e dezenas de engradados de cerveja e refrigerante.

A festa foi um sucesso de público: mais de duas mil pessoas compareceram. O problema é que ninguém tinha dinheiro para o jantar. Só tomaram cerveja, e bem pouca. O champanhe ninguém quis. No fim da noite, sobraram 92 quilos de provolone e 45 quilos de azeitonas. Era tanta comida que Nilce teve de pedir a vários bares da região para guardas as jarras de picles em suas geladeiras. Os prejuízos foram imensos: Mojica foi obrigado a procurar o produtor Aníbal Massaini e vender seus 15% de Exorcismo Negro para pagar o rombo. Ficou novamente na sarjeta. Passou os meses seguintes comendo queijo provolone com azeitona.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.