Por Fausto Salvadori Júnior
Matheus Trunk sabe que existe um mundo sem fim,
repleto de histórias e mistérios, para além dos quatro cantos das telas de
tablets, celulares e notebooks. Essa é uma das suas qualidades, nem sempre
encontrada entre os jornalistas da geração que começou a trabalhar após a
invenção do Google.
O Matheus é foda. Ele gosta de pesquisar metendo as
mãos na poeira dos sebos e remexendo em arquivos amarelados atrás de filmes
perdidos, edições esgotadas, revistas esquecidas e discos de vinil. Também é
daqueles que curte conversar com gente. Passa horas ouvindo pessoas de cabelo
branco contar histórias de tempos em que ele nem havia nascido. Entre os
antigos cineastas da Boca do Lixo, tema desse livro, Matheus virou conhecido de
todo mundo. Conversando com eles, volta e meia é capaz de surpreendê-los
mencionando fatos, datas e detalhes que os protagonistas dessas histórias já
tinham esquecido. Ao longo dos anos, foi reunindo um belo acervo de fragmentos
da história do cinema, da música, do esporte e do jornalismo em São Paulo.
Matheus se meteu nessa trilha de pesquisador sem
qualquer garantia de que o material reunido por ele algum dia viesse a ser
publicado em algum lugar, fosse como conteúdo jornalístico ou pesquisa
acadêmica. Faz isso simplesmente porque ama esses temas e quer conhecer mais e
mais sobre eles. Amor e sede de conhecimento: não são essas as bases de toda
busca que vale a pena?
Outra qualidade de Matheus é o olhar voltado para
todas as pessoas que fazem história, especialmente para aquelas que ficam nos
bastidores, fazendo tudo acontecer longe do aplauso público. Ele tem o olhar do
“operário que lê” do poema de Bertolt Brecht, aquele que se indignava lendo os
textos que retratavam os acontecimentos como uma sucessão de feitos praticados
por semideuses solitários. “O jovem
Alexandre conquistou as Índias. Sozinho? César venceu os gauleses. Nem sequer
tinha um cozinheiro ao seu serviço?”, perguntava o operário do poema. Este
operário provavelmente teria a mesma reação diante de muitos textos escritos
sobre história do cinema, que parecem enxergar apenas as figuras dos diretores
e dos atores principais. “Glauber Rocha
filmou ‘Terra em Transe’. Não precisou nem de um eletricista?”
Quando escreve sobre cinema, Matheus abre espaço
para as histórias de técnicos, atores coadjuvantes, roteiristas, diretores
esquecidos. Foi o que fez em seu primeiro livro, O Coringa do Cinema, sobre o técnico Virgílio Roveda, e é o que faz
neste livro. Aqui, a gente dos bastidores é quem sobe ao palco. Os
protagonistas de sempre, como José Mojica Marins e David Cardoso, passam a
entrar como coadjuvantes para falar da vida de figuras como Giorgio Attili e
Walter Wanny.
Com seu gosto pelas histórias dos anônimos e
esquecidos, faz todo sentido que Matheus goste tanto do cinema semiartesanal e
independente feito em São Paulo entre os anos 70 e 80, no quadrilátero
docemente batizado de Boca do Lixo, atual Cracolândia. Embora criticada de
todos os lados, especialmente pelos cineastas e críticos mais
intelectualizados, a Boca foi uma das mais fascinantes experiências de cinema
feito pelas classes populares.
Na Boca paulista, o sonho de fazer cinema virou
realidade para muita gente que não tinha dinheiro nem educação formal. Suas
histórias estão nesse livro. Histórias de um peão de boiadeiro que conseguiu
fazer seu próprio filme sobre os rodeios, de um faxineiro de cinema que se
tornou cineasta, de atores que eram contratados no mesmo bar onde comiam fiado
ou de um garçom que se tornou o maior montador de filmes da história do Brasil.
Histórias como essa só podiam ter acontecido na
Boca do Lixo, quando fazer cinema era barato – e assistir também. Trabalhando
com pouco dinheiro, sem financiamento estatal ou renúncia fiscal, toda essa
gente dependia do resultado das bilheterias para poder comer. E quem pagava
pelos filmes era um público de baixa renda que tinha o mesmo perfil dos que
faziam os filmes. Um cinema feito do povo para o povo.
É como se, em plena ditadura militar, muitos anos
antes da chegada dos governos democráticos que tiraram milhões de brasileiros
da miséria, o cinema da Boca já estivesse promovendo o seu projeto de ascensão
para um grupo de brasileiros originalmente destinados a coadjuvantes do quadro
social.
Uma ascensão que, para muitos, foi feita mais de
sonho do que de dinheiro. Ao longo das páginas do livro, é melancólico ver como
muitos personagens não conseguiram mais prosseguir em suas carreiras depois que
a Boca do Lixo fechou as portas e o cinema tornou-se uma indústria bem mais
elitizada. Os sobreviventes da Boca, contudo, não desistem. Em seus
depoimentos, estão sempre cheios de projetos: podem não ter dinheiro, mas têm
roteiros que um dia serão filmados, livros que um dia serão escritos, filmes
inéditos que um dia serão lançados.
Podem ser ilusões, mas são as suas ilusões. Cada um do seu jeito, os personagens da Boca parecem
ter seguido a sugestão dada a Orson Welles para Ed Wood, destinado a se tornar
o pior cineasta do mundo, no filme de Tim Burton: “Vale a pena lutar pelos seus
sonhos. Por que passar a vida realizando os sonhos dos outros?”.
Um comentário:
O melhor período do cinema nacional,amo.
Postar um comentário