Capítulo
2
OS
FESTIVAIS
Por
Marcus Pereira
O
“Jogral” passou a ser frequentado por artistas de expressão e consagrados, e
também pelos novos. Sua fundação coincidiu com uma fase de revalorização da
música do Brasil, quando se realizaram os primeiros festivais. Essa fase tem
como marco o primeiro festival da TV Excelsior que lançou Edu Lobo e Elis
Regina com Arrastão. Depois veio o segundo, em seguida os dois importantíssimos
Festivais da TV Record, o de 66 e o de 67. O de 66 consagrou Chico Buarque,
Geraldo Vandré, lançou Caetano Veloso. Nesse festival Carlos Paraná concorreu
com De Amor ou Paz, que foi interpretada por Elza Soares. O Brasil inteiro
passou a interessar-se por música. As três eliminatórias, que apresentavam doze
músicas cada, transmitidas pela televisão, atingiram níveis inéditos de
audiência para programas musicais. O altíssimo nível das músicas concorrentes
proporcionaram shows musicais de uma qualidade que nunca houvera sido atingida
antes e nem foi atingida depois pela televisão no Brasil. Selecionadas as doze
finalistas, o interesse pela batalha musical final tomou conta do Brasil.
Ninguém, rigorosamente ninguém, ficou á margem. Formaram-se partidos em torno
das duas primeiras músicas que logo se definiram como candidatas ao primeiro
lugar: A Banda, de Chico Buarque, e Disparada, de Geraldo Vandré-Théo de
Barros. A escolha era realmente difícil. Lembro-me bem que minha preferência
era, um dia, por uma, outro dia por outra. A Banda tinha um tema de sentido
múltiplo, era evocativa, de enorme beleza musical e literária. Era, mais do que
tudo, nova, nova na sua proposta brasileira, nova ao incorporar aquilo que os
narcotizados pelo iê-iê consideravam pieguice. Disparada era também uma
obra-prima de música e letra, era também nova como estrutura e forma literária,
como música e, principalmente, como tema. Ela tinha beleza plástica até, uma
música em 35 mm, feita de terra, de brio e de sonho. Afinal, filiei-me ao
partido de Disparada e comecei a detratar os defensores da Banda, alimentando
calúnias e espalhando boatos sobre sua probidade pessoal e familiar.
Finalmente
chegou o dia da grande final. O Brasil parou. O teatro Record, na Rua
Consolação, em São Paulo, não conseguiu receber nem a metade dos interessados
em assistir diretamente à grande final. Uma multidão imensa postou-se diante do
Teatro, exibindo faixas, fazendo ameaças. A Banda contava com uma pequena margem
de favoritismo; era, talvez, um pouco mais universal, em termos do heterogêneo
público que, repentinamente, passou a interessar-se por música. A tendência do
júri, dizia-se, era reconhecer esse favoritismo. Os defensores da Disparada
ameaçavam incendiar o País se a música não fosse classificada em primeiro
lugar. O confronto das duas facções era o iminente, quando Blota Júnior e Sônia
Ribeiro, apresentadores do festival, pediram calma ao público que lotava o
Teatro, repetiram várias vezes o pedido quando começaram a anunciar as músicas
classificadas, a partir da quinta colocada. Eu havia reunido em minha casa um
grupo de amigos para assistir à grande final e nós todos tínhamos, a partir de
informações de alguns membros do júri, muita esperança de que a música do
Carlos fosse classificada. Nossa tensão era enorme e parecia que estava em jogo
muito mais do que apenas uma alegria musical ou cultural. Quando foi anunciada
a quinta colocada nossa esperança diminuiu um pouco. Anunciada a quarta,
diminuiu mais ainda. Quando foi anunciada a terceira colocada, Carlos
disfarçadamente sai da sala, para não nos constranger com seu desaponto.
Evidentemente, sua música não tinha sido classificada, pois só restavam duas a
serem anunciadas que eram, sem dúvida, A Banda e Disparada. Sônia Ribeiro pede,
então, muita calma e compreensão ao público e anuncia: “em segundo lugar, de
Adauto Santos e Carlos Paraná...” Não esperei que ela terminasse, corri a uma
sala onde o Carlos tinha se refugiado, agarrei-o pela cintura, coloquei-o no
meu ombro e entrei com ele, triunfalmente, na grande sala onde os amigos
estavam reunidos. O anúncio que se seguiu depois que Elza Soares cantou De Amor
ou Paz, solene e patético como se estivesse anunciando alguma coisa de
extremamente grave, e que era a decisão do júri de considerar empatadas as duas
músicas, classificando-as em primeiro lugar, nem se interessou. Fomos para o
“Jogral” que tinha transbordado para a Galeria e, até amanhecer, bebemos,
cantamos e dançamos.
Lembro-me
de Sérgio Buarque de Holanda, eufórico e grandiloquente, comemorando com todos
a vitória da Banda, lembro-me de Luís Lopes Coelho que caiu, derrubado por uma
de suas grandes gargalhadas, e que levantou-se lépido e continuou rindo, e
bebendo, e cantando, e dançando, porque a vitória do Carlos era um pouco de
todos nós e a alegria do Carlos fabricava alegria em cada um de nós. Ás seis
horas da manhã, o Antoninho, garçom do “Jogral”, veio me dizer que tinha um
sujeito completamente bêbado no banheiro querendo beber detergente líquido,
pois não havia mais uma gota de bebida.
No
começo de 1966, “O Jogral” já era famoso no Brasil inteiro. Um dia Carlos me
contou que o Chico Buarque, cujo talento já era reconhecido, tinha estado lá um
fim de noite e cantara A Banda, que pretendia inscrever no festival da Record.
O Chico aparecia sempre, meio esquivo, mostrava as músicas novas e os
frequentadores habituais ficavam atrás do Carlos e do Adauto para ouvir os
trechos que eles tinham conseguido memorizar. E Paulo Vanzolini, de quem Chico
se confessou filho musical na contracapa do disco que gravamos com músicas do
Paulo em 1967 profetizava: “Seu Francisco vai longe, eu conheço a raça”. Nessa
ocasião, Gilberto Gil defendia uns trocados num bar da Galeria, chamado
“Bar-Bossinha”. E aparecia sempre também. A música de Gil que nos chamou a
atenção foi Procissão.
O
Festival de 1967 se beneficiou da repercussão e da qualidade do de 66. Tinha-se
a impressão de que o que se convencionou chamar de opinião pública tinha
encontrado na música uma saída para a sua marginalização no processo político e
para as frustrações decorrentes do estado de coisas, a partir dos
acontecimentos de 1964. O público, impedido de participar da escolha dos
dirigentes do País, em todos os níveis, passou a participar da escolha de seus
líderes musicais. Na verdade, o envolvimento de grande parte da população de
alguma forma participante da vida do País, em termos de consumo, nível cultural
e acesso às fontes de informação, tinha um caráter extramusical ou, em outras
palavras, a música passou a ocupar um espaço mental antes ocupado com coisas
mais consequentes. O festival, sendo uma forma de participar, ganhava a participação
integral de muitos, que passaram a se interessar e a opinar, com grande
antecedência, nos acontecimentos de bastidores, desde músicas e letras
concorrentes, até arranjadores, intérpretes e composição de júri. “O Jogral”
era, então, o ponto de reunião dos compositores, músicos e de todos que tinham
participação direta no prélio musical.
Em
1967, “O Jogral” já era um negócio definitivamente bem sucedido. Carlos Paraná
chegou, então, ao auge de sua carreira artística. Nosso convívio era diário. Em
1965, eu comprara um pequeno e encantador sítio perto de Atibaia, onde passava
os fins de semana. Frequentemente, Carlos ia passar o domingo comigo. Fechava
“O Jogral” no sábado ás cinco da manhã, apanhava um ônibus na Estação
Rodoviária e descia na estrada que levava ao sítio, a três quilômetros. Fazia
esse percurso a pé, nunca quis que eu fosse espera-lo em Atibaia, essa caminhada
era mais um testemunho seu do nascer do dia, ele que, vezes sem conta, lá na
roça, surpreendera o dia nos trajes menores de suas madrugadas. Passávamos o
dia conversando, Carlos almoçava seu regime, certa vez chupamos setenta
laranjas.
Logo
depois que conheci Carlos Paraná soube que ele tinha uma doença gravíssima e
que estava praticamente condenado à morte. Por causa que, só depois da operação
que ele fez, em outubro de 1970, foi descoberta, ele tinha varizes nas veias do
esôfago e teve a primeira grande hemorragia em 1960. Essa anomalia biofísica é,
em regra, provocada pela esquistossomose, por paralisia que se contra em águas
contaminadas e que, devido ao seu grande porte, diminui a capacidade de vazão
das grandes veias abdominais provocando aumento da pressão “hidráulica” e
consequente rompimento das veias superiores. Uma outra causa comum desta
anomalia é a cirrose, que provoca crescimento do fígado e consequente
compressão das veias do abdome. Carlos houvera feito exame para apurar se tinha
contraído esquistossomose, que deu negativo. Depois, Paulo Vanzolini internou-o
no Hospital das Clínicas para colheita de tecido hepático que mostrasse o
estado do seu fígado, mas este exame – biopsia – é extremamente dolorido e como
o primeiro não deu certo, Carlos fugiu do Hospital antes de fazer outro. De
qualquer forma, a causa mais comum da cirrose – o alcoolismo – estava afastada
porque Carlos só bebia leite. Quando teve uma grande hemorragia, em outubro de
1970, a operação que fez revelou a causa: estreitamento congênito da veia
esplênica, que recebe o sangue do baço. Os médicos que acompanharam sua doença
– inclusive Paulo Vanzolini – convenceram o Carlos que ele tinha úlcera de
estômago. Nunca tive certeza se ele acreditava ou se simulava acreditar, para poupar-se
e poupar-nos do compadecimento inevitável. O fato é que ele fazia regime
rigoroso, como se tivesse úlcera no estômago.
Quando
Carlos não ia ao sítio e eu estava em São Paulo, eu e minha filha Luciana, que
então tinha cinco anos, íamos acordá-lo no seu pequeno apartamento de solteiro
da Rua Gravataí 23, ap. 68, que Paulo Vanzolini chamava de apartamento
“quase-quase”: quase gravata, a rua, e os números, quase outras coisas.
Almoçávamos juntos na casa da minha mãe, Carlos já tinha se transformado numa
pessoa de nossa família. Aos domingos, no fim da tarde, reuníamos amigos na
minha casa da Rua Novo Horizonte, a maioria era de compositores e cantores.
Nesta ocasião, 66-67, meu primeiro casamento tinha se desfeito, eu estava
solteiro. Carlos era solteiro e nós curtíamos nossa disciplina social,
organizando reuniões todas as semanas. Carlos dizia: “não podemos perder tempo
senão não vai sobrar nenhuma mulher bonita e inteligente pra nós. Paquerar é a
primeira prioridade, o resto é secundário”. Para nós, a qualidade mais
importante numa mulher era a inteligência e a sensibilidade. E quando se
juntava a beleza, nós dávamos o melhor de nós.
Carlos
cantava, eu cantava ás vezes, com o Adauto Santos não me acompanhando, mas me
perseguindo – como dizia o Paulo Vanzolini – eu declamava poemas de Carlos Pena
Filho, um poeta pernambucano genial, que morreu em 61, com 30 anos. Lembro-me
de que uma vez disse para o Carlos uma coisa que o fez rir longamente, a
propósito de um amigo que tinha sempre namoradas lindíssimas: “Olha Carlos, eu
cheguei à conclusão de que mulher muito bonita ou é neurótica ou é burra ou é
mau caráter”. E nos consolamos...
Em
66 tive um romance complicado com uma moça que estava estudando na França.
Carlos envolveu-se desde o começo, queria saber de todos os detalhes, fazia
previsões, dava conselhos. Era seu assunto predileto. Eu ia quase todas as
noites ao “Jogral”, chegava cedo não tinha ainda chegado ninguém. Carlos ia
logo perguntando, ansioso: “Tem carta, tem carta?” Quando daquele enredo romântico,
apanhava um abajur portátil e sentava-se a um canto para ler a carta. Depois,
conversávamos longamente, tentando extrair das dubiedades do jogo romântico
conclusões que alimentassem meu sonho. Em seguida, ele me inteirava das
novidades sobre sua paixão de ocasião, solitária e não correspondida algumas
vezes, outras correspondida mas contraditória, instável ou impossível. Foi
nessa ocasião que ele compôs, de parceria com Adauto Santos, De Amor ou Paz:
“Quem
anda atrás
De
amor e paz
Não
anda bem
Porque
na vida
O
que tem paz
Amor
não tem
Seja
o que for
Sou
mais do amor
Com
paz ou sem
Sei
que é
Demais
Querer-se
paz
E
amor também.
Já
que se tem que sofrer
Seja
a dor só de amor
Já
que se tem que morrer
Seja
mais por amor.
Vou
sempre amar
Não
vou levar
A
vida em vão
Não
hei de ver
Envelhecer
Meu
coração
Vou
sempre ter
Em
vez de paz
Inquietação
Houvesse
paz
Não
haveria
Essa
canção”.
Esta
canção lindíssima é o retrato sentimental de Carlos Paraná, que eu transformo
em proposta de uma receita milagrosa que, como certos remédios populares, cura
todos os males da alma. Sartre, na sua entrevista dos setenta anos, afirma que
todos os males do mundo se resumem num só: a reserva, o egoísmo e o desamor.
Carlos fez uma proposta para um sentimento de amor específico. Que todos
comecem por aí, para ir aprendendo, para chegar à abertura total de amor aos
próximos e aos distantes.
A
música De Amor ou Paz não tem sequer um adjetivo, e permite concluir que o
adjetivo foi inventado não para enriquecer a linguagem, mas para dar lucro aos
linotipistas, editores e fabricantes de papel.
Voltando
ao Festival de 67, do qual o “Jogral” foi o quartel-general extra-oficial,
Carlos concorreu com Maria, Carnaval e Cinzas, que uma noite me mostrou
recém-composta. Os interesses que envolviam o festival transformariam sua
organização numa verdadeira batalha política. Certa noite, cheguei ao “Jogral”
e encontrei o Carlos indignado e disposto a aceitar uma proposta de O Globo de
dar uma entrevista denunciando a manipulação de interesses nos bastidores do
Festival. Carlos era tímido, quase sempre fechado, e tinha enorme pudor de
tratar de seus próprios interesses. Abro um parêntesis e para ilustrar o
comportamento de Carlos Paraná e para mostrar um aspecto raro de sua
personalidade: seu brio.
Nos
tempos em que vivemos, não sei quantos anos, décadas ou séculos antes que o
tempo termine sua tarefa de fabricar o Homem e que seja, afinal, promulgada a
Lei Definitiva da Vida, em que os equívocos, os preconceitos e os erros, o
desamor e a reserva, o egoísmo e a solidão que fazem com que a vida seja uma
tragédia para os que a natureza dotou, prematuramente, de sensibilidade –
nestes tempos, o valor de cada um é estabelecido, em regra, pelo que cada um
possui e não pelo que cada um é. Carlos Paraná tinha uma aguda consciência
disso. E, por tê-la, seu comportamento era muitas vezes estranho aos olhos de
quem o conhecia superficialmente. Ele se recusava a cantar quando os ouvintes
não estavam atentos e, por dinheiro nenhum, se apresentava onde não estivesse
absolutamente à vontade. Recusou sempre convites para cantar em festas
grã-finas porque, com frequência, nesses ambientes, as pessoas, preocupadas em
encher os bolsos, esqueceram-se de encher a cabeça. Também, em meios que se
convencionou chamar de aristocráticos ou conservadores, muita gente considera o
artista uma espécie de marginal, na melhor das hipóteses curioso, e que, por
não gostar de trabalhar, arranjou um jeito de se encostar na sociedade. A
verdade é o oposto, o artista é uma raridade humana e é fabricante de emoções
para consumo geral e para as pessoas sentirem que estão vivas ainda. Muitos
homens – a maioria quem sabe – depois de cumprir a sentença que é a vida, morre
sem ter sequer nascido. Não apenas os privados do alimento para o corpo, mas
também aqueles privados dos estímulos e das condições para a vida espiritual e
emocional, que é o que se distingue a espécie humana das demais. E como se
convencionou que é virtude ocultar os sentimentos – o amor, a lágrima, a
vaidade até, que é um sentimento sadio e não mórbido – os artistas são, em
certos meios, altamente inconvenientes. O brio pessoal de Carlos Paraná e sua
extraordinária dignidade pessoal e artística são, seguramente, os aspectos de
sua personalidade que mais me impressionam.
Voltando
ao Festival de 67, dispus-me a apurar o que estava se passando pois a principal
queixa era a de que todos os grandes e bons intérpretes já tinham se
comprometido com outros concorrentes, que isso fora decidido na sombra, em
prejuízo dos concorrentes de boa-fé. Procurei Paulo Machado de Carvalho Filho,
o Paulinho que, apesar das vicissitudes que sua TV enfrentou depois, ganhou um
lugar de destaque na história da nossa música popular. Eu houvera, antes, feito
uma boa camaradagem com o Paulinho, quando tratei de interesses de Geraldo
Vandré, na condição de seu amigo, que houvera se incompatibilizado com a TV
Record e cuja contratação consegui, dele e de seus músicos, para um programa
musical na Record, Paulinho expôs-me, então o que estava pensando. Compositores
mais expeditos e menos tímidos que o Carlos já haviam conseguido comprometer os
melhores intérpretes. Do primeiro time, restava apenas Elisete Cardoso, que
houvera declarado que só cantaria no festival para defender a música de seu
filho que era concorrente. Os demais, ele reconhecia, eram de menor expressão.
Evidentemente,
o prestígio, primeiro e, depois, o talento do intérprete tinham grande
influência na classificação e depois na premiação da música. Paulinho estava
desolado, mas não podia fazer nada. Continuou, porém, interessado, por minha
causa e por causa do Carlos, a quem ele estimava muito. E propôs-me procurarmos
juntos uma solução, Recordamos todos os grandes cantores do Brasil, e cada um tinha
um impedimento ou um inconveniente sério. De repente, Paulinho me disse: “Para
você ter uma ideia do meu interesse, estou disposto a convencer o Roberto
Carlos que não admite participar de um festival, a defender a música do Carlos.
O que você acha?”. Roberto Carlos estava no auge de sua carreira, era um rei no
Brasil. Nós todos fazíamos sérias reservas ao seu comportamento artístico,
líder que era de um movimento espúrio e alienante chamado “Jovem Guarda” e que
cultivava a versão cabocla do iê-iê que nos era imposto. Mas ele tinha grande
prestígio popular e era excelente intérprete. Respondi de pronto que concordava
e que iria tentar convencer Carlos.
Roberto Carlos em 1967
As intrigas, boatos e calúnias que antecederam o Festival de 67 davam bem a dimensão dos interesses em jogo. Antes da primeira eliminatória, um radialista, cujo nome me escapa, que tinha um programa de grande audiência, denunciou que Maria, Carnaval e Cinzas era plágio de uma milonga argentina chamada Negra Maria. Carlos ficou acabrunhadíssimo e durante alguns dias sumiu de nós aquele Carlos irônico, sensível, doce-amargo que conhecíamos. A calúnia atingira-o fundamente. Até que, uma noite, ele me entregou uma folha datilografada esclarecendo que, para ele, importava a opinião e o juízo de pouquíssimas pessoas. E que eu era uma delas. Reproduzo a seguir o que Carlos escreveu:
“Peço
licença para contar como nasceu e como querem que morra Maria, Carnaval e
Cinzas, samba de minha autoria, inscrito e classificado no Festival da TV
Record.
Nasceu
assim: Elza Soares havia defendido muito bem De Amor ou Paz no festival
anterior. Pensei fazer, por isso, um samba especialmente para Elza, um samba
que se adaptasse melhor ao seu estilo quente. Imaginei-a cantando sua própria
vida de sambista. Comecei, é óbvio, por onde se começa qualquer vida: pelo
nascimento.
Onde
deve nascer uma sambista? No morro
Em
que época do ano lhe fica melhor nascer? No carnaval é claro, durante a festa
máxima do samba.
O
que lhe fica melhor como enxoval de batizado? Uma fantasia. Real ou imaginária.
Está
pronta a primeira estrofe.
Agora
eu precisava batizá-la. Tinha que ser Maria. Não só porque Maria é o mais-comum
dos nomes em todo o mundo, mas porque é o mais belo e puro de todos os nomes de
mulher. Não sou pai, mas se o fosse, minha primeira filha chamar-se-ia Maria.
Maria somente, sem ser das Dores, das Graças ou de uma flor qualquer, ainda que
essa flor fosse a rosa. E para completar a segunda estrofe, Maria quer ser
motivo de muito amor e muito samba.
Agora
a terceira estrofe. É lenda, creio que universal, que quem nasce de dia tem
sorte, fortuna, vida alegre, favores do destino. Quem nasce de noite, tem tudo
ao contrário. Minha Maria não nasceu de dia, nem de noite, mas de madrugada, ao
fim da primeira noite de carnaval. Então seu destino seria incerto. Daí o “Quem
sabe a sorte lhe sorriria...” da terceira estrofe.
Na
quarta e última estrofe da primeira parte, Maria chegaria ao máximo que pode
chegar uma criança nascida no morro, em pleno carnaval e destinada a ser
sambista. É porta-estandarte, rainha do samba, cobiçada por todos os foliões. E
estará em todos os sonhos.
Mas
como o que se sonha para uma menina pobre, nascida no morro e destinada ao
samba, dificilmente se realizava, quis a sorte, uma vez que o seu futuro era
incerto, que Maria morresse criança, no mesmo carnaval em que nasceu. Daí toda
a segunda parte da letra, onde todos os sonhos se desmoronam. Ela não seria a
gloriosa porta-estandarte, mas também não teria o destino infeliz de toda a
criança nascida nas condições em que ela nasceu.
Mas,
à medida em que meu trabalho chegava ao fim, comecei a notar que o samba não
serviria para a interpretação de Elza Soares. Carecia de interpretação mais
contida e mais triste. Ficou então para Roberto Carlos, um dos melhores, mais
sóbrios e tristes dos nossos cantores.
Quanto
ao fato de o samba conter uma coincidência temática com a milonga Negra Maria,
eu não poderia evita-la, mesmo conhecendo, como de fato conhecia essa música.
O
único ponto coincidente é: Negra Maria nasceu e morreu no carnaval.
A
coincidência temática é uma ocorrência comum na arte. A morte do poeta Garcia
Lorca, por exemplo, inspirou Aragon, Guillen, Neruda, Vinícius, Paulo Mendes
Campos e sei lá quantos outros poetas no mundo inteiro.
A
morte no carnaval, antes e depois de mim e do autor da milonga, já foi tema de
inúmeras músicas (lembram-se daquele samba que começava assim: Quero morrer no
carnaval, na Avenida Central...?). E a morte de uma porta-estandarte de escola
de samba inspirou um dos mais belos e famosos contos de Aníbal Machado.
Agora, para finalizar, uma única pergunta: Maria, Carnaval e Cinzas é ou não é um legítimo samba, assim como Negra Maria uma típica milonga argentina?”.
Alguns
meses antes do Festival, cuja comemoração só desagradou aos nossos fígados, uma
noite eu estava no “Jogral”, que sempre foi uma espécie de dependência na minha
casa, quando Carlos se aproximou e me entregou um violão com a sua capa,
dizendo: “É pra você”. E eu respondi: Mas, Carlos, eu tenho violão...”. E ele
completou: “Tem uma coisa na barriga dele pra você”. Tirei a capa do violão e
encontrei um papel dobrado lá dentro. Neste papel, estava escrito o que
reproduzo:
“Marcus,
este
meu companheiro de tantos anos, parceiro de minhas canções de amor até aqui, eu
gostaria de oferece-lo à mulher amada. Mas ela passou e passará sempre. Fica
então para você, porque os amigos passam menos e até há os que nunca
passam.
Carlos, S.P. 6/3/67.”
Paulo
Vanzolini andou espalhando que eu choro até no Dia das Mães, o que nunca ficou
provado. Mas tenho várias testemunhas que ele chorou no casamento do Adauto
Santos. O fato é que a maioria das pessoas pensa que sentir, e revelar, é uma
deformação, é um desvio de conduta. Assim então as coisas nesta altura da
História da Civilização. Depois de milhões de anos da chegada do Homem á Terra,
acredita-se que a principal virtude da vida é esconder os sentimentos. Macho
mesmo é o que não chora, que não ama, que não sofre. O grande laboratório desta
teoria foi o Vietnã do Sul, como os americanos confessaram em Corações e
Mentes.
Naquela
noite não me lembro se chorei, nem importa. Lembro-me que senti a vida na sua
densidade máxima, lembro-me que brotou dentro de mim uma qualidade nova de
alegria, e ela continua lá intacta, lembro-me de uma sensação muito clara de
enriquecimento de quem conseguiu fazer treze pontos no jogo mais importante da
vida, que é o da relação humana. Desde então, o violão está dependurado na
principal parede da minha casa, o bilhete emoldurado está embaixo, o corpo do
Carlos deve estar reduzido aquilo que o tempo não conseguiu ainda resgatar, mas
seu espírito está definitivamente preservado e ele mora dentro do velho violão
pendurado na parede, lá onde, um dia, faz tempo, Carlos depositou um bilhete
feito só de amizade, a forma de amor que é a substância básica de todos os
sentimentos humanos. E esse espírito associou-se a mim para fazer coisas que
ouço dizer que são muito importantes, como começo a relatar a seguir.
Um comentário:
A música e a interpretação do Roberto Carlos são ótimas.
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