Por Inimá Simões
Entre a Avenida São João, Largo do
Paissandu, Praça da República e vizinhanças, acotovelaram-se dezenas de salas –
Cines Ouro, Paissandu, Árcades, Rio Branco, Windsor, Art-Palácio, Ipiranga e
outras – onde se destaca o velho Marabá, hoje o campeão nacional de renda
média. Esses cinemas constituem o conduto básico por onde escoa o grosso da
produção da Boca. Marcos Rey, romanista e autor de inúmeros roteiros filmados,
na sua “ficção-memória” publicada na revista Oitenta, observa que “fila no
Marabá diz mais que qualquer borderô. Se ela, no dia da estreia, chegar a vinte
metros, a fita se paga. Se alcançar a praça da República é sucesso”.
O ambiente nesses cinemas – principalmente
nas sessões vespertinas, quando a plateia é composta majoritariamente por desempregados,
office-boys, comerciários, estudantes, soldados e homossexuais na batalha
diária – é extremamente animado e ruidoso, em franca oposição ao silêncio
habitual das salas elegantes da Av. Paulista e zona sul da cidade. Lembra a
atmosfera densa do velho teatro de revista, que após um período esplendoroso
nos anos 50, vive hoje uma fase de inevitável decadência.
Tanto no teatro de revista como nessas
salas centrais da cidade, é possível assistir a dois espetáculos. Um que ocorre
no palco/tela e outro que se desenvolve junto às cadeiras. A cada estímulo
visual apresentado na tela, corresponde imediatamente um comentário – quase
sempre de maneira jocosa. O tom de informalidade que marcava e ainda marca o
nosso teatro de revista, foi o responsável pela comunicação fluente entre
artista e público; aliás tão fluente que em inúmeras oportunidades
estabeleciam-se diálogos inesperados entre uma vedete e o espectador mais
afoito, com vantagens nítidas para a artista. Tal risco, o do espectador se
sentir ridicularizado frente aos outros e eventualmente vem-se compelido a
bater em retirada, não ocorre nas salas de cinema. É fácil entender porque.
Além da impossibilidade física de um confronto verbal e eventualmente ver-se
compelido a bater em retirada, não ocorre nas salas de cinema. É fácil entender
porque. Além da impossibilidade física de um confronto verbal, adiciona-se o
“fator sala escura” decisivo para a descontração e impunidade.
Nesses anos todos, o que se viu foi uma
massa de espectadores que grita, fala, ri, “orienta” o galã empedernido,
debocha da virgem resistente, caçoa do homossexual cheio de salamaleques e
delira quando o garanhão irresistível “derrota” todos os esquemas defensivos da
fêmea. E é fundamental que o herói corresponda ás expectativas, caso contrário,
numa rápida operação, invertem-se os sinais e o garanhão passa a ser desprezado
e merecedor da mais solene vaia. Como depositário de emoções e projeções
individuais, tornadas coletivas no ambiente da sala de cinema, o personagem,
tal qual o jogador de futebol em dia de clássico, não pode falhar. Entre o gol
feito (ou a mulher que se rende incondicionalmente) e o gol perdido (falta de
eficiência ou habilidade para “ganhar” a fêmea e confirmar a sua
superioridade), está a distância que separa o êxito do fracasso.
O aficionado pela pornochanchada (ele
existe sim!) se sensibiliza ao perceber do outro lado, por detrás
daquelas imagens projetadas na tela, alguém que compartilha o mesmo código e
que possui habilidade suficiente para enfiar cada cena no seu “lugar
privilegiado” e no momento exato, evitando frustrações desnecessárias. De
maneira semelhante ao fãzoca do faroeste americano, que preencheu suas
fantasias com imagens na tela, o espectador do Marabá é conivente com a
liturgia desencadeada, cúmplice do garanhão e solidário com as soluções
dramáticas.
Como naquele papo de bar, com aquelas
velhas piadas recicladas e relatos de conquistas, atribulações com maridos e
pais enraivecidos, a pornochanchada exige de que se dispõe a assisti-la, uma
adesão incondicional. Adesão liberta de critérios de veracidade (para efeito
dos papos de boteco) ou de verossimilhança (para os filmes).
O fato do desempenho sexual de Lírio –
personagem central de O Bem
Dotado – desconsiderar os
limites da fisiologia humana, não tem a menor importância. Da mesma forma que o
revólver de seis tiros, que dispara oito ou nove vezes sem recarregar, nunca
afugentou o “curtidor” do faroeste. Nesse contexto, o desenvolvimento da trama
ou a originalidade da história contada importa pouco. O que vale é
histrionismo, a versão mais rica em detalhes – obtida a partir de uma
decupagem, que frequentemente “esquarteja” os corpos para tratamento fetichista
– e o corpo da mulher nua apoiado na oposição libertinagem/puritanismo, como ilustra Elas São do Baralho.
Desta oposição, do princípio dos contrastes e das expressões de duplo sentido,
é que boa parte dos filmes retira sua pimenta.
Publicado originalmente em SIMÕES,
Inimá. O imaginário da Boca.
São Paulo: IDART, 1981
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