Por Nuno César Abreu
Denominou-se Boca do
Lixo o quadrilátero do bairro da Luz, no centro de São Paulo, formado pelas
ruas do Triunfo e Vitória, nas imediações das estações da Luz e antiga
rodoviária, ponto de referência da indústria cinematográfica, onde se
localizavam os escritórios de distribuidores, exibidores e produtores. A origem
dessa designação é incerta mas foi anunciada poeticamente no filme O Bandido da
Luz Vermelha, em 1968. Ao contrário do que muitos pensam, a Boca do Lixo não
surgiu com a pornochanchada. Ela ganhou esse ano nos anos 1950, com a crônica
policial, quando os habitantes daquele bairro de classe média começariam a
abandonar o local. Como na época os filmes eram despachados por trem para
cidades do interior, sua localização próxima à rede ferroviária era privilegiada.
Antes, portanto, de ser um centro de produção cinematográfica, a Boca
caracterizou-se por ser um centro de distribuição no Estado.
Nos anos 1970, depois
de flertar com o esquema de produção precário do Cinema Marginal,
cristalizaram-se aí produtores e diretores nascido na irrupção da comédia
erótica, a pornochanchada. Estes foram responsáveis, durante os anos 70, por
cerca de 60 dos 90 filmes brasileiros produzidos em média anualmente. O cinema
da Boca do Lixo caracterizou-se por investir principalmente na chamada produção
média (para os padrões do Brasil) ou com “recursos controlados”, em muitos
casos com visível preocupação de oferecer bom acabamento artesanal. Obtendo
retorno financeiro dentro dessa faixa “média”, garantiu uma base empresarial
que, embora pulverizada entre várias produtoras (e produtores), foi o que mais
se aproximou do que poderia chamar indústria cinematográfica no Brasil. A Boca
do Lixo sempre teve sua produção apoiada capitais privados, vivendo a tensão do
investimento de risco e de suas relações com mercado. Concretamente ligada a
esse mercado, a Boca e seu cinema viviam em processo permanente de
ajustamentos. Fracassos de bilheteria a ameaçavam como uma doença fatal. Por
isso seus filmes constituíam-se, de fato, num real termômetro do interesse
popular e do consequente retorno financeiro. Mesmo tendo sua hierarquia
artística, nunca investiu diretamente numa política autoral (de diretores),
preocupando-se mais em adaptar-se às relações de mercado, como fornecedora de
produtos. Grande parte dessa produção é identificada com a pornochanchada,
gênero que abrigava várias tendências e subgêneros do cinema erótico: comédias,
dramas, horror, policial, suspense, westerns, e até experimentais. Pode-se
atribuir à pornochanchada e à Boca o feito de terem conseguido construir um
precário mas estimulante star system, á margem dos esquemas televisivos,
lançando atrizes como Vera Fischer, Helena Ramos, Aldine Müller, Matilde
Mastrangi, Zaíra Bueno, entre outras, ou cooptando nomes já conhecidos como
Sandra Bréa, Kate Lyra e até a nobreza de Ira de Furstenberg, figuras que
faziam as bilheterias funcionar. Com o crescimento da pornochanchada, a Boca do
Lixo, que na época era considerada a “Hollywood brasileira”, produziu um número
considerável de títulos (cerca de 700 filmes). Sua “época de ouro” corresponde
os anos de 1972 a 1982, quando as produtoras e distribuidoras pipocavam no
quadrilátero. As ruas viviam cheias de equipes de filmagem partindo para as
locações ou chegando delas. O Bar Soberano, depois transformado em restaurante,
era ponto de parada obrigatório.
No entanto, a
prosperidade do sistema produção-distribuição-exibição baseado em leis de
mercado não ficou imune à crise econômica que atingiu o Brasil nos anos 1980.
Após uma década promissora, ao menos em termos econômicos, veio a crise a
diminuição vertiginosa de público. O gênero pornochanchada começava a sinalizar
seu esgotamento. O cinema da Boca conseguiu com alguns de seus filmes e
realizadores certa respeitabilidade e a proeza de garantir, com o retorno de
seus investimentos, continuidade de produção e melhoria da qualidade. Com a
crise, esse sistema foi atacado em dois flancos: a evasão do público e a invasão
bárbara dos filmes de sexo explícito (hardcore) estrangeiros. Para tentar se
defender, a Boca começou a exibir filmes de grande apelo sexual, distendendo a “corda”
da censura. A caminhada da Boca em direção ao pornô explícito foi rápida, e
rompeu o frágil equilíbrio das produções que anteriormente a sustentavam. Os
filmes de sexo explícito passaram a ocupar uma enorme fatia do mercado,
realizando nos anos seguintes, cerca de 500 títulos, produção considerável para
os padrões nacionais. Em 1984, por exemplo, dos 105 filmes nacionais produzidos
(exibidos em São Paulo), nada menos que 69 eram de sexo explícito. O fim da
Boca como espaço físico e forma de produção ocorreu no final da década de 1980.
Retirado de A Enciclopédia do Cinema Brasileiro (organização de Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda), editora SENAC, 2000.
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