Todo mundo já ouviu a voz de Older Cazarré (1935-1992). Isso
porque ele foi o profissional responsável pela voz de dezenas de personagens as
nossa infância como o cachorrinho Don Pixote, o urso Zé Colmeia, do gato Gênio
da série Top Cat (Manda Chuva) ou mesmo o carteiro Jaiminho na série Chaves.
Além disso, Cazarré era excelente humorista fazendo diversas vezes o estereótipo
do velho devasso em produções como “A Superfêmea” e “Pintando o Sexo”.
Colaborou com Chico Anysio e esteve presente em diversas novelas. Profissional
versátil e talentoso, era filho de Déa Selva, uma musa do cineasta mineiro
Humberto Mauro. Cazarré é desses ilustres coadjuvantes que deveriam ser mais
lembrados.
Um Astro em Foco: Cazarré
Fomos encontrar Cazarré sentado em uma mesa de montagem,
trabalhando como assistente de J. Marreco no filme Passaporte para o Inferno.
O artista, que sempre se interessou pela técnica
cinematográfica (e já teve algumas experiências nesse setor), está se
aprimorando, pois pretende dirigir um filme, esse ano ainda, junto com J.
Marreco.
Com prazer, Cazarré sai da mesa de trabalho para
conversar conosco alguns minutos.
E ele conta sua vida:
- Nasci em 16 de janeiro de 1935. Portanto, 41 anos de
idade, embora eu pareça ter mais. Isso, talvez, por conta da minha imagem junto
do público. Meus melhores trabalhos foram feitos quando eu me apresentava
caracterizado como velho. Sou gaúcho de Pelotas, como o meu pai também era.
Filho de artistas, grandes nomes do passado: Darci Cazarré e Déa Selva. Meu
pai, Darci, foi ator essencialmente de teatro de comédias, mas também fez
filmes. Faleceu em 1953. Posso dizer que um dos trabalhos mais importantes dele
foi em Não me diga adeus, o primeiro
filme feito no Brasil em co-produção com a Argentina em 1948. Nesse filme eu fiz uma figuração: eu e Nélia
Paula aparecíamos rapidamente dentro de um elevador. Tinha 13 anos, nessa
época. Era meu terceiro trabalho em cinema, e o primeiro em que era pago.
Mamãe, Déa, acho que dispensa comentários. Foi uma das estrelas mais
fulgurantes da época. Também fez muito teatro de comédias, mas fez mais cinema
que papai. Entre outros filmes, gosto de destacar: Ave Sem Ninho, O Bobo do Rei,
Anastácio, Bonequinha de Seda. Em O
Bobo do Rei, estreei ao lado dela, como figurante. Eu tinha 4 anos de idade
(1939). Voltei a figurar em Anastácio,
com 11 anos. Meus pais tinham a Companhia Déa Cazarré de Comédias, e viajavam
pelo Brasil todo. Minha tendência para as artes não foi só a natural – por eu
ser filho de artistas e ter nascido praticamente num teatro – como pela
necessidade de estar junto de meus pais. Como eles viajavam muito, e eu vivia
na casa dos meus avós, no Rio de Janeiro, sentia aquela saudadezinha, até o dia
em que não aguentei mais e eles resolveram me levar junto. Viajei por todo o
Brasil, servindo como uma espécie de secretário de meus pais. Minha estreia no
teatro? Foi triste meu amigo. Foi com a Companhia dos meus pais, é lógico, em
1949. Estreei por uma infeliz necessidade: apresentávamos no Teatro Rival, no
Rio, a peça “O maluco número quatro”, estrelado por Alda Garrido (papai sempre
teve grandes nomes em sua companhia. Além dele mesmo e mamãe, ainda Delorges
Caminha, Alma Flora e outros). No intervalo da matinê com a sessão noturna,
fomos almoçar. Voltamos um pouco atrasados para a sessão, e, na pressa, papai
foi pegar uma toalha que estava sobre um ventilador, desses grandes e pesadões,
a toalha enroscou, e o aparelho veio por cima dele, ferindo seriamente o seu
nariz. O espetáculo tinha que ser feito, o público já estava a fazer. Que
fazer? Alguém sugeriu o meu nome, para substituir. Afinal, papai só entrava no
2º e 3º atos, e tinha uma relativa pequena participação. E eu sabia de cor o
papel dele (eu decorava o papel dos meus pais, só por farra). O único porém: o
personagem de papai tinha 80 anos, e...eu tinha 14! Sem problema: fiz a
maquiagem e entrei para o palco. Tremia feito não sei o quê. Mas o espetáculo
foi feito. Depois, fui obrigado a me fixar no Rio de Janeiro novamente, por força
de estudo. Ainda em 1949 fui para o rádio. Fui contemporâneo do Chico Anísio,
do Antoninho Seabra...só que eu estava num nível mais inferior, é claro. Entre
1949 e 1952 passei pelas rádios Clube, Globo e Nacional (tudo isso no Rio de
Janeiro). Em janeiro de 1953, Floriano Faissal, diretor artístico da Rádio
Nacional, me aconselhou a deixar o rádio, pois eu nunca teria condições de
seguir carreira. Voz sem graça, má dicção, enfim um monte de defeitos. Ele me
convenceu. Saí do rádio, decepcionado (eu só tinha feito radionovela. Estive
naquela famosa, “O Direito de Nascer”, lembra?). Papai falecera naquele ano me
deixando uma dívida de 400 contos. Eu era o mais velho (meu nome é Older, que,
traduzido do inglês, quer dizer “mais velho”, Older Berardi Cazarré), e, na
falta dele, tinha de arcar com os problemas de casa. Mas aí já, sem os 4 contos
de salário que eu tinha na Nacional, e com aquela dívida, a coisa engrossou.
Como eu desenhava muito bem, fui desenhista de rotas da Panair do Brasil,
empresa de aviação. Mas por pouco tempo. Vi aparecer na minha frente um novo
campo: “shows” em boates. E em 1953, ainda, parti para essa de show. Como eu
quis ter um veículo, e carro era coisa de rico, comprei uma motocicleta. Aliás,
quem comprou não fui eu. Foi o Julio Leiloeiro, um cara muito conhecido no meio
teatral. Ele comprou, me deu, e eu pagava para ele. Por sugestão dele mesmo, em
1954, vim correr com a moto num espetáculo do IV Centenário de São Paulo. Caí,
fui de cara ao chão, tive problemas com os dois maxilares, perdi todos os
dentes, e ainda corri o risco de ficar para sempre com defeito na dicção.
Cheguei a ter um problema na voz, mas superei. Voltei para o Rio, desgostoso e
sem perspectiva. Fui vendedor, apesar de ter um certo nível cultural (e eu
tinha abandonado a Faculdade de Arquitetura, no primeiro ano, em 1953, porque,
com a morte do papai, não dava para continuar). Ainda em 1954, quando me
transferi para São Paulo, conheci um senhor que trabalhava com máquinas de
escrever, o Seu Ribeiro. Ele se “ligou” em mim, por causa de meus pais, de quem
era fã. Participando de minha aflição, me indicou para falar com seu cunhado,
que era funcionário da organização Tupi. Fui, acabrunhado, pois estava
desinteressado de tudo. O cunhado de Seu Ribeiro era- para surpresa minha –
era, nada mais, nada menos que Edmundo Monteiro, o chefão da organização (hoje,
um grande amigo meu). Muito simpático, me mandou para o Teófilo de Barros
Filho, para o teste. Mas ele me testou para rádio e para ator dramático. Fui
reprovado. E eu sabia que isso ia acontecer, pois estava escaldado. E eu sabia –
acabava de descobrir- era a comédia. Voltei ao Seu Ribeiro, que me mandou ao
Edmundo, e acabei assinando contrato com a emissora, para a televisão. Estreei
no programa “O Contador de Histórias”, mas imediatamente fui progredindo, a
ponto de chegar - em 1955 – a ter cinco programas num só dia, como comediante.
Fui premiado como revelação naquele ano. Fiquei na Tupi até 1964. Mas em 1956,
vi para entrar para a carreira como dublador de filmes para a televisão, como
trabalho paralelo. Entrei para a AIC, onde estive até 1968. Naquela empresa fiz
de tudo, até chegar à administração. Entre os personagens de quem eu fazia as
vozes, gostava mais do Dom Pixote, Ploc (da série Plic e Ploc) e Zé Colméia,
todos em desenho animado, e com vozes caricatas. Depois que deixei a AIC, só
fiz, no ramo, direção de dublagem de uma série de “Vila Sésamo”, e agora
voltei, também para dirigir dublagem em Passaporte
para o Inferno, o filme que estamos montando. Agora, chega de dublagem.
Depois da AIC, entrei para o disco, cheguei a ser importante funcionário da RCA
Victor. Teve um ano em que eu fazia produção, a voz, a música e quase tudo da
série de disquinhos “Walt Disney”, que a Editora Abril encomendara. Chegamos a
ter 210 mil cópias num ano, recorde mundial de discos do gênero. Voltei para a
Tupi em 1971, onde já fiz “Hospital”, “Dom Camilo”, “Idade do Lobo”, “Conde
Zebra”, “O Machão”, “O Sheik de Ipanema”, “Vila do Arco” e “Canção para Isabel”,
este último dramático. No cinema eu participava esporadicamente, por falta de
tempo. Mas 1975 foi meu ano de redenção. Fiz cinco filmes só esse ano. Entre
eles: O Supermanso, O Quarto da Viúva e Passaporte Para o Inferno. Foi aí que
se solidificou meu interesse pela sétima arte, a ponte de eu pensar em dirigir,
aproveitando curso de direção que fiz nos Estados Unidos, nos estúdios Walt
Disney, na ocasião em que fazia os discos. Pretendo fazer, junto com Marreco,
uma comédia inteligente, uma gozação daquilo que chamam de “pornochanchada”.
Estamos entusiasmados com a ideia”.
Este é Older Berardi Cazarré, o homem que sabe o que
quer, e o que faz. Acredita – como nós também acreditamos – no sucesso de sua
nova empreitada, agora no cinema.
Publicado originalmente na revista Cinema Em Close-Up,
ano 2, número 7
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