Por Alessandro Porro
Diz: “Eu olho e não olho,
eu escuto e não escuto. Mas como é bonito ver o pessoal namorando, quando a
gente está tocando”. Diz: “É como se você ajudasse. Não é para pensar mal: mas
é como se você estivesse participando”. Diz: “Meu Deus, quantos beijos eu vi
trocar numa noite só, beijos de amor improviso, de paixão instantânea: e eu
tocando, e prevendo a chegada da madrugada, e do resto”.
Quem diz é Araken
Peixoto, o da noite, o do pistom, o da cara de gitano sem malandrice, o poeta.
Araken é também e especialmente um dos últimos artistas boêmios desta São Paulo
que vive de antigas surpresas. E de sons macios que me lembraram antigos pastores
da noite: o piano de Dick Farney, a voz de Maysa, o baixo sem sobressaltos de
Azeitona – um pulsar de coração no limiar do amanhecer. E agora Araken, que
insiste e resiste, à vontade em seu smoking preto, como se tivesse nascido
nele, e você nem percebe que ele está vestindo a rigor. Diz: “A noite e coisa
boa, é coisa séria, e deve ser respeitada”. Com sua música, Araken cria atmosferas
irrepetíveis, sem data ou hora marcada. Ele chega e toca, nunca subindo no
degrau das celebridades, mas entre as mesinhas de bar, ou apoiado ao balcão-
olhando, sob os reflexos reluzentes de seu instrumento, o copo que o espera
para depois do primeiro número. Outra noite, no Trianon do Hotel Maksoud, Araken
tocava As Times Goes By, e de repente houve dezenas de casais que se acharam
Humprey Bogart e Ingrid Bergman, os de Casablanca. Mais tarde, no One More
Time, Araken inventou entrar na sala não pela porta, as descendo pela escada,
já tocando as primeiras notas de Meditation: o pessoal não aguentou de prazer,
e aplaudiu de pé este herdeiro de arte de Harry James nascido em Niterói há 55
anos.
Filho do compositor
Elesiário, sobrinho de Nonô – o pianista de Pixinguinha -, Araken é o irmão de
Cauby Peixoto, 52 anos, o inesquecível intérprete de Conceição; é o irmão de
Moacyr Peixoto, 65, um dos melhores pianistas da noite brasileira; é o irmão da
cantora Andyara Peixoto, 57, que já abandonou o microfone pelo conforto do lar.
E é primo de Ciro Monteiro, o glorioso sambista que criava harmonias
inesquecíveis (Se Acasso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues), batucando numa
caixa de fósforos.
Com uma família assim –
alguém poderia desconfiar -, quem não estaria em condições de vestir o smoking
e assoprar um pistom? Araken já ouviu mil vezes coisas assim, e sempre reagiu –
com o sorriso sorneiro, matreiro, de quem não quer briga – contando o começo da
história.
VIVA O SARGENTO!
Foi em Niterói, no
quartel do Exército, onde começara, aos 20 anos, o serviço militar. O irmão
Moacyr lhe havia dado de presente um trompete de pistons, do qual Araken
conseguia tirar três ou quatro sons, sem muito entusiasmo. Mas foi o que bastou
para que o comandante do quartel nomeasse o recruta Araken Peixoto trompete do
regimento. “Mas não devo a este coronel o sucesso de minha carreira. Devo
agradecer é a um sargento malandro e boa praça, que permitia que eu saísse do
quartel quase todas as noites, para integrar pequenas bandas que tocavam nas
festas, nos bailes do interior, e nos inferninhos mais escondidos da Baixada
Fluminense: foi ali que comecei a tocar realmente, e saboreando pela primeira
vez o prazer do som”. Quando o soldado raso Araken Peixoto deixou o quartel, já
sabia o que fazer na vida. Não se pode dizer que começou nas “casas noturnas mais
elegantes do Brasil” – como diz hoje a publicidade que acompanha seu último LP,
Um Pistom dentro da Noite (Selo Eldorado). “Comecei na barra pesada, onde se
fazia som de verdade, sem compromisso, e as meninas desmaiavam de gosto
escutando minhas músicas”, conta Araken, lembrando duas entre as casas mais
endiabradas dos primeiros anos da década de 1960: o Recanto Nostálgico, na Rua
Amaral Gurgel, e a Old Friends, da Avenida 9 de Julho.
Araken é um artista de
muitos amigos e admiradores. Poderia ter viajado para o Exterior, e ganhar o
que, ele garante, teria sido “uma grana preta”, não fosse o maldito medo de
avião. Também pudera: “Nas únicas duas vezes que tentei vencer o susto, me dei
mal: uma vez voei para Belém do Pará, e o avião perdeu o trem da aterrissagem.
Outra vez, voltando da Bahia, os motores pararam, e eu acabei quebrando o
pistom de tanto apertar: era a única coisa que eu tinha para me segurar na
queda que eu previa iminente, e que não houve por mero milagre”. Assim na base
dessas experiências, Araken foi obrigado a renunciar a um convite daqueles
irrecusáveis, feito por Armando Manzanero, que queria organizar com ele uma
volta aos bares de todo o mundo, de Nova York a Tóquio, de Paris a Roma, de
Londres a Berlim. “Teria sido a glória, mas aqui também fui dando certo”, admite
Araken, que no eixo Rio-São Paulo fez sua carreira e seu sucesso. E não somente
nos inferninhos. Casas como o Studio do Hotel Jaraguá, o Sacha´s, o Bom Gourmet
– que fizeram a lenda da noite brasileira – brigaram por meu passe. “Mas eu
sempre fui muito livre: não posso deixar de tocar onde sei que há amigos me
esperando”. E assim você pode escutar numa mesma noite Araken no Trianon, um
dos mais requintados bares de São Paulo, no Hotel Maksoud (Al. Campinas, 150);
no One More Time, novo templo noturno dos Jardins; no efervescente La Bohème,
da Rua Álvaro de Carvalho, e – alta madrugada – em casa de amigos para tomar
com eles o último uísque e o café da manhã; e tocar.
No Rio de Janeiro,
Jorginho Guinle quis que Araken corresse para seu apartamento no Flamengo,
quando namorava Kim Novak: e garante que se a coisa deu certo foi porque Araken
tocou como um “grande”, comovendo a bela intérprete de Piquenique. Uma senhora
carioca (Araken é um gentleman: sabe quando não deve citar nomes) queria a
qualquer custo conquistar o pintor Salvador Dali, que estava visitando o
Brasil. Também neste caso, Araken apareceu com seu pistom para criar a
atmosfera única de que ele é capaz. A história não diz se, afinal, a madame conseguiu
o que queria. O que se sabe, por certo, é que hoje uma tela do pintor espanhol
ocupa uma das paredes da casa da colecionadora carioca, e que Araken recebe de
todos os anos um recadinho da mesma, com uma frase simples: “Obrigada, meu
amigo”.
A MÚSICA EM DISCO
O último LP de Araken
Peixoto, Um Pistom dentro da Noite (o primeiro de sua carreira produzido
comercialmente, pelo Estúdio Eldorado de São Paulo, mas existem outros dois
realizados no Rio para venda nas casas noturnas onde Araken se apresentava),
contém o melhor do repertório do pistonista mais boêmio do Brasil, uma
verdadeira antologia de clássicos americanos, com apenas uma faixa brasileira
(Bonita, de Tom Jobim) e outra italiana (Estate, de Bruno Martino). Com o
acompanhamento de alguns dos músicos mais festejados da noite (inclusive o
irmão Moacyr Peixoto, que embeleza com seu piano algumas faixas mais
significativas do disco), o LP é para ser ouvido em casa, de preferência a
dois, durante um papo gostoso, diante de uma boa garrafa de uísque. O som de
Araken faz o resto, sem nunca ser indiscreto, sem nunca querer intervir: é a
grande sacada do artista, que consegue criar um clima propício até no
apartamento de amigos desconhecidos. Mas, amigos. O disco é dedicado a José
Bonifácio Sobrinho, o todo-poderoso Boni da TV Globo. O motivo é comovedor, e
demonstra – não bastassem outros exemplos – como o pistonista preza a amizade e
sabe agradecer Araken – que é casado com Fátima há 26 anos (“Minha única
mulher: uma santa acredite”) e tem três filhos – não soube e não quis
transformar o sucesso em riqueza: no Trianon ganha 7 mil cruzados por mês, e o
resto vem da generosidade dos amigos da noite. Nestas condições, como comprar
um pistom novo, decente, que vale pelo menos 2 mil dólares? Boni, alguns meses
atrás, olhou para o pistom velho de Araken e não disse nada. Mas, quando voltou
de uma viagem aos Estados Unidos, trouxe para o amigo artista o melhor pistom
que existe, um Vicent Bach que parece de ouro. Então, Araken tocou a música
preferida de Boni, Someone to Watch Over Me, de George Gershwin, e mandou
gravar no instrumento algumas palavras singelas, como ele sabe dizer: “Boni, o
som agradece”. E com este pistom gravou seu LP.
Publicado originalmente
na “Playboy” de agosto de 1986
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