Por Matheus Trunk
São mais de 20
longas-metragens no currículo. A pernambucana Débora Munhyz tornou-se nome
conhecido no cinema nos anos 1980 quando participou de diversões produções da
Boca paulistana. Seu início foi com o diretor e produtor José Mojica Marins, o
Zé do Caixão e prosseguiu depois trabalhando com diversos profissionais do
quadrilátero. “A Boca foi a minha segunda casa. Eu escolhi viver e usufruir do
lado positivo da grande indústria cinematográfica: o castelo de sonhos que
virava realidade”, relembra ela com nostalgia.
A vida profissional da musa está no livro Débora Munhyz: do terror ao amor
publicado pela editora Laços com organização do radialista e produtor cultural
Rafael Spaca. A obra não teve lançamento oficial mas pode ser adquirida
diretamente com a editora pelo email editoralacos2016@gmail.com. Débora conversou com o VSP sobre o livro e sua trajetória na
sétima arte.
Como surgiu a ideia desse livro?
Débora
Munhyz: A ideia do livro surgiu mais ou menos em 1999. No
final da década de 1980, eu parei com tudo: cinema, teatro, atuação. Fui pro
Japão trabalhar com danças e eventos e voltei pro Brasil somente em 1999. Nessa
época, um jornalista chamado André Lourenço se interessou e teve a ideia de
fazer um livro sobre isso. Na época, eu achava uma loucura, dizia: “Não estou
preparara para isso. De jeito nenhum”. Mas ele insistiu tanto e começou a fazer
pesquisas, levantou um material grande. Mas no decorrer disso tudo aconteceu
uma coisa horrível que foi a morte do André. Foi um acidente e eu nem gosto de
falar sobre isso. Aí deixou de existir o projeto do livro.
Muitos anos depois eu
conheci o Rafael (Spaca, editor) que estava fazendo uma matéria sobre outra
atriz da Boca. Ficamos conversando e ele ficou insistindo na história de fazer
um livro. Aí novamente veio toda aquela história, mexeu com a minha cabeça. Mas
a insistência do Rafael durou dois anos e eu comecei a pensar no pedido do
André. Então, eu resolvi aceitar o
convite em homenagem a esse amigo querido. Isso foi rolando por alguns anos e
agora finalmente está saindo.
Como
você descobriu que queria ser atriz?
Eu descobri que queria
ser atriz quando nem sabia o significado disso. Eu cresci no interior do Paraná
numa fazenda e depois mudamos para a cidade chamada Itapejara do Oeste. Botaram
uma televisão na praça central e foi ali que tive o primeiro contato com a
atuação. É incrível que até hoje eu tenho a imagem da primeira cena que
assisti: um pai pegando no braço de uma menininha atravessando a rua. Na mesma
hora, eu peguei na mão do meu pai e falei: “Vou fazer aquilo”. Nem sabia do que
se tratava, do que era.
Passou o tempo e vim
para São Paulo quando eu tinha dez anos. Foi quando comecei a me inteirar e
assistir televisão na casa de uma tia. A vontade foi aumentando a vontade de participar
daquilo. Tive o acesso num primeiro anúncio do jornal que falavam das
escolinhas de cinema. Nisso, eu acabei caindo na escolinha da Planeta Filmes do
(cineasta) Wilson Rodrigues. Fiquei ali uns dois meses mais ou menos. De lá, o
(assistente de câmera) Geraldo Damasceno me levou para a escola de atores do
José Mojica Marins que na época ficava ali na (rua) Barão de Jaguara, na Mooca
(zona leste de São Paulo). Aí começou toda história e me tornei aluna do Zé do
Caixão.
Como
foi esse começo com o José Mojica Marins? Que importância ele teve na sua
carreira?
Naquela época, os
cursos de interpretação eram ministrados pelos alunos mais experientes. O
senhor Mojica passava somente as provas pra gente. Dividiram a gente em três
grupos. Montava-se um grupo que concorria com o outro. O meu grupo acabou
vencendo e foi maravilhoso. Era muito bom porque você aprendia a fazer de tudo:
montagem, continuidade e sempre acabava fazendo uma pontinha em alguma
produção. Mas o aprendizado com o seu Mojica não foi como atriz somente, mas
principalmente como pessoa. Ele tinha um círculo de amizades muito bom e para
mim era maravilhoso já que eu era adolescente ainda. Então, eu tinha muita
curiosidade de aprender e ficava num cantinho ouvindo pessoas conversando como
o (físico) Mário Schenberg, o (ator) Jofre Soares ou o (produtor) Wilson
Garcia. O Mojica foi muito importante como uma grande universidade e a minha
família mesmo não aceitava aquilo. Na época que eu entrei fiz amizades muito
fortes com outras pessoas que estavam começando como o Satã ou com a Fátima
Sena Porto. Então, o Mojica foi uma espécie de pai que eu respeito muito. Dele
guardo muito carinho e consideração.
Como
você começou a trabalhar com outros diretores de São Paulo?
O Mojica abriu um
escritório no edifício Soberano na rua do Triunfo. Esse espaço funcionava para
recrutar alunos para fazer a escola dele. Eu era secretária desse escritório,
resolvendo de tudo um pouco. Recebíamos as pessoas de fora que procuravam a
escola, fazíamos o cadastro dos futuros alunos e foi assim que conheci diversas
pessoas da antiga Boca do Cinema. Foi lá que conheci o Ary Fernandes, o Elias
Khouri. Resolvíamos os problemas dos filmes, o lado burocrático das viagens do
Mojica. Ali começou o meu convívio diário na rua do Triunfo trabalhando no
escritório e tendo contato com as pessoas que circulavam por ali.
Eu só tinha feito um
filme nessa época que era A Mulher Que
Põe a Pomba no Ar da Rosângela Maldonado. Nessa produção, a minha
personagem chamava-se Débora. O meu nome verdadeiro é Maria das Neves. Mas
diziam: “Você é a Débora do filme da Rosângela?”. E acabou ficando Débora. Esse
virou meu nome artístico.
Já
que você citou o Ary Fernandes, fala um pouco do convívio com ele. O que você
aprendeu com ele?
O Ary foi uma das
primeiras pessoas que eu conheci na Boca. Ele foi um dos primeiros amigos e
protetores que eu tive na minha história ali. O primeiro filme que eu fiz com
ele foi Essas Deliciosas Mulheres que
foi filmado em Poços de Caldas (interior de Minas Gerais). Cheguei a fazer
quatro filmes com ele como A Fábrica de
Camisinhas, Taras Eróticas. Tudo
participação pequena, mas era o meu começo. O Ary me ensinou como era a
política do meio cinematográfico da época, como eu devia me portar com as
pessoas da rua do Triunfo. Então, ele me ensinou muito da postura que eu tinha
que ter como profissional.
E
com o Tony Vieira? Você fez um filme com ele, certo?
O Tony Vieira foi um
grande amigo. Aprendi com ele muito da vida, a ser humano e enfrentar as
dificuldades. Fiz um único trabalho com ele que foi um marco na minha vida: O Último Cão de Guerra. Era uma época
em que estava terminando a Ditadura e o Tony foi muito corajoso em fazer um
filme com aquele tema. Era um tema sério, polêmico e filmado dentro da Base
Aérea de Cumbica. Nós filmamos acho que vinte dias lá. Foi muito enriquecedor
já que tivemos acesso a muitas coisas que aconteciam ali dentro. Eu costumo
dizer que tanto o Tony como o Mojica foram pessoas muito interessantes e com as
quais eu aprendi muito. O Mojica mais como um pai e o Tony mais como aquele
amigo que me ensinou que não existe limites quando você quer algo, quando você
busca algo de verdade na sua vida. Eu defino o Tony como um operário do cinema
da Boca. Foi um grande amigo e me ensinou a encarar a vida sem medo de lutar em
busca do que quero.
Como
era pra uma mulher frequentar um ambiente como a Boca? Era muito machista?
É incrível que
praticamente eu não percebi esse lado machista da Boca. Eu tinha amigos muito
queridos que me protegeram lá dentro. Claro que o meio artístico da época era
muito machista. O cinema sempre foi muito machista e quem trazia o grande
público para as produções eram as meninas. Mas eu passei a minha adolescência
na Boca. Tinha um círculo de amizades com pessoas que tinham outra cabeça, uma
cabeça mais familiar. Então, eu chamo de minha família da Boca. Essas pessoas
me viam primeiro como ser humano, como uma adolescente querendo aprender.
Agradeço muito a Deus por ter conhecido pessoas como Ary Fernandes, Augusto de
Cervantes, Jean Garrett, Satã, Mojica, Tony Vieira, Chico Cavalcanti. Esses
sempre me protegeram. Então, eu tive pessoas queridas foram me cuidaram de
verdade e acho que pela orientação deles eu não vi tantas pessoas que viam a
mulher como objeto. Eles criaram uma redoma em volta de mim deixando muita
gente sem acesso.
Quando vinham algumas cantadas
eu sempre bancava a bobinha que não estava entendendo tudo. Então, enquanto me
viam como boba eu trabalhava. A Boca naquele momento era a minha segunda casa.
Claro que existiram muitos problemas, fofocas como todo lugar, mas nunca dei
importância. Nunca alimentei o lado negativo. Eu escolhi viver e usufruir do
lado positivo da história da Boca que foi a grande indústria cinematográfica: o
castelo de sonhos onde podia virar realidade. Onde eu podia ir para a frente da
tela fazer os meus filmes, as minhas amizades. Então, o lado ruim eu nunca
levei em conta. Nunca alimentei essa coisa toda.
Você
trabalhou na fase explícita. Como foi isso? Como você avalia essa parte da sua
carreira?
Quando chegou filmes
como Coisas Eróticas e O Império dos Sentidos ficou difícil. A
Boca começou a produzir somente longas-metragens com sexo explícito. Fiquei
muito tempo sem aceitar fazer. Só que o tempo foi passando e comecei a me
questionar. O Ary Fernandes era um que falava muito comigo: “Vamos conversar
sério. Você vai parar ou continuar? Que rumo você via dar?”. Foi quando eu
recebi um convite da (produtora) Haway através do (produtor) Fernando
(Gregório) pra fazer A B... Profunda.
Eu fiquei seis meses pensando desde que veio a primeira proposta. Depois,
acabei indo numa reunião na Haway onde inclusive conheci o (diretor ) Álvaro de
Moya. Então, aí começou o questionamento interior: “O que fazer?”. Aí não era
mais a questão de aceitar fazer o explícito ou não. Era a questão aceitar
continuar fazendo cinema ou não e no começo foi muito difícil, a opção, aceitar
fazer foi muito complicado. Mas eu pensava
muito no que o Ary Fernandes tinha me falado: “Débora se você não fizer
o cinema parou”. Foi quando eu optei em
fazer. Ou seja: no momento não foi em fazer sexo explícito eu optei em
continuar fazendo cinema.
O Moya sabia das
dificuldades. Tanto que no primeiro dia de filmagens tive uma rejeição interna
enorme. Mas eu avisei o Moya: “Se cortar eu não repito a cena. Então, fica de
primeira não dá pra cortar, pra repetir não”. Ele levou isso muito a sério,
colocou duas câmeras e foi. Minha cabeça entrou num turbilhão. Fiz a cena
inteira e quando ele disse: “Corta”, eu desmaiei. Foi um dos momentos mais
difíceis da minha vida no meio artístico. Depois veio inclusive um médico me
visitar. Foi um dia muito difícil nas filmagens. Mas voltou ao normal e comecei
a pensar na Débora que veio para vencer, que sabia o que queria da vida e
cinema era a minha vida. Eu me propus a fazer cinema que era o que eu queria e
se naquele momento a única forma de fazer cinema era aceitar esse tipo de
segmento tudo bem. Já tinha feito o primeiro.
Naquele período eu só
fazia cena explícita com um ator. Normalmente, eu fazia uma cena por filme com
exceção do Gozo Alucinante do Jean
Garrett com produção do Augusto de Cervantes. Essa foi uma das maiores
produções de sexo explícito que teve na rua do Triunfo. Então, a partir daquele
momento que aceitei, eu levantei a cabeça e falei: “Vou fazer o melhor que eu
puder, mas com a responsabilidade de fazer cinema”. Depois, a maioria dos
diretores passaram a se preocupar somente com as cenas de sexo explícito até
que virou somente sexo explícito. Então, eu acho que na verdade o cinema da
Boca foi prostituído.
Como
você se adaptou ao final da Boca para ser ativa no teatro e em outros lugares?
Depois de um tempo
acabei desistindo daquele cinema. Parei com tudo e fui embora pro Japão viver
de dança, eventos e shows. Quando voltei de lá, encontrei com amigos queridos
que estavam indo pro teatro como o diretor Roberto Rocco. Meu primeiro
espetáculo nessa volta foi o Tropicanalha
do Aziz Bajur. Naquele momento eu queria fazer teatro, queria fazer cinema, mas
com muito cuidado e foi o que aconteceu. Fiquei muito tempo sem fazer cinema
porque as coisas que vinham não me interessavam. Então, esperei vir algo que eu
acabei me interessando.
Que
importância teve pra você participar do curta-metragem Amor Só de Mãe do Dennison Ramalho? O que mudou na sua vida depois
disso?
Eu
fui conhecer o Dennison quando ele me mandou esse roteiro. Acredito que
conhecer ele abriu um novo horizonte pra mim. Desde o primeiro momento vi que
ele era um jovem sincero, batalhador e que buscava um cinema sério. Acho que
foi a coisa mais certa que eu fiz na minha vida. Me senti respeitada como pessoa,
profissional e como mulher. Então, Amor
Só de Mãe foi um marco na minha vida, foi o meu retorno de forma digna
porque fazia muito tempo que eu não fazia cinema. Espero muito que eu encontre
outro filme, outro personagem que me dê tantas possibilidades. Um personagem
como Formosa que eu fazia no Amor Só de
Mãe. Pra mim, foi o melhor personagem que já fiz em cinema.
O
que você espera com o livro?
Espero contar parte da
minha história. Mas principalmente falar de pessoas queridas da Boca. Dessa
parte da rua do Triunfo com a minha visão, da forma que eu vivi, da forma que
eu convivi com pessoas que respiravam cinema e se alimentavam de cinema. A
minha prioridade é lembrar dessas pessoas, muitas delas nem são lembradas hoje.
Vamos dizer que seja uma homenagem a amigos queridos, essa família linda que eu
tive o prazer de conviver e que pra mim é um grande orgulho. Foi um presente de
Deus ter podido estar presente na história do cinema nacional na metade da
década de 70 e 80. Não tenho pretensões em fazer um livro acadêmico de mostrar
uma história luxuosa, não nada disso. A Boca não era nada disso: a Boca era
simples, a Boca era humilde. E assim é o meu livro.
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