Braz Chediak trabalhando em uma nova produção |
A proximidade com
Plínio Marcos, o autor mais proibido do Brasil. As adaptações cinematográficas
da obra de Nelson Rodrigues. O trabalho com produtores como Herbert Richers e
Carlos Imperial. A convivência com a Boca do Lixo em São Paulo e o Beco da Fome
no Rio de Janeiro. A distância do pessoal do Cinema Novo e das pessoas que
faziam um cinema comercial. O cineasta Braz Chediak foi privilegiado em
testemunhar diversos momentos da vida cultural brasileira das décadas de 1960 e
1980. Ele conta que foi chamado para ser assistente de direção em Terra em Transe de Glauber Rocha. Mas
não aceitou. Chediak também lembra de certos momentos com uma espécie de
desgosto. “Comecei essa produção sem roteiro, sem planejamento”.
Nessa segunda parte ele
comenta os longas-metragens que dirigiu: lembra as dificuldades de alguns
trabalhos e os motivos que o leva a considerar Navalha na Carne seu melhor filme. “Tivemos uma série de inovações,
trabalhei com um fotógrafo fantástico que era o Hélio Silva. Os atores eram
muito bons”. O realizador também analisa o atual momento do cinema brasileiro e
diz que não espera voltar a trabalhar na área. “Quando eu deixei o cinema eu
deixei por um motivo. Porque antes existiam estúdios e eu era o diretor”. Ele
termina dizendo que não se considera um agente cultural injustiçado.
Mas
você não foi íntimo do Lívio Bruni?
Não. Ele gostava muito
do Navalha na Carne que eu dirigi,
por isso tivemos uma boa relação. O (Leonel) Brizola (governador do Rio de
Janeiro) deu a ele uma comenda, comendador Lívio Bruni. Ele, ás vezes, ia á
Fiorentina, onde conversávamos...Morava no Copacabana Palace.
Como
o Mário Reis...
Mário Reis também morava
lá.
Jorginho
Guinle que você citou antes...
Esse era um dos donos
(risos).
O
senhor falou um pouco desse pessoal antigo...o Lima Barreto. O Cangaceiro foi um filme importante na
sua formação do senhor?
Sim.
E
o senhor encontrou ele já em estado de penúria...
Foi. Conheci o Lima na
Boca do Lixo. Fiquei muito chateado quando ele procurou a Embrafilme para fazer
um longa-metragem em esperanto. Eu nunca trabalhei com a Embrafilme, nunca fui
financiado por órgão nenhum do governo. Por princípio mesmo...E eles estavam tipo
assim ridicularizando o Lima Barreto. Ridicularizando e enfim...O Lima era um
homem de muito talento, O Cangaceiro
foi importantíssimo para o cinema brasileiro. A Rachel de Queiroz falava muito
bem do Lima, gostava muito dele. Mas tentaram acabar com ele, assim como O Limite do Mário Peixoto. O próprio
Glauber escreveu um artigo, não sei se você chegou a ler, falando do “mito Limite”. Não, não é mito.
Eles
achavam que o Limite não existia? Não
tinha esse papo?
Sim. Mas sabiam que
existia, não sei o Glauber que era intelectualmente muito honesto. O Lima
Barreto...Muitos cineastas não o perdoaram pelo filme ter feito o sucesso que
fez. Falavam que o Lima Barreto foi influenciado pelo cinema japonês. Mas o
Glauber também foi e Deus e o Diabo é
uma obra-prima.
Sim.
Pelo faroeste, John Ford...
Sim. Então, o João Ubaldo
(Ribeiro, escritor) dizia...Mas não sei se é verdade porque escritor tem
imaginação muito generosa (risos). O João Ubaldo dizia que quando foi visitar o
Glauber no hospital, ele já quase morrendo. O Glauber falou para ele: “Cinema é
John Ford”. Até pensei em perguntar isso pro João Ubaldo mas ele morreu também
(risos).
Já
que estamos falando do pessoal do Cinema Novo. E o David Neves? O senhor teve alguma
aproximação com ele?
Achava ele muito
simpático, um cara bastante legal...Não cheguei a ver os filmes dele. Mas como
pessoa era um cara bom. O Leon (Hirzman) era muito bom também.
O
senhor falou um pouco desse pessoal do Cinema Novo. E essa história em que você
quase foi assistente do Terra em Transe?
O Glauber (Rocha) me
chamou. Mas na época eu já trabalhava em estúdio e trabalhar num filme dele não
me ajudaria porque o filme é o Glauber, entendeu? Eu tinha mais autonomia
trabalhando em estúdio com diretores com os quais eu poderia perguntar: “Por
quê você colocou essa lente? Por quê você fez isso?”. Eles explicavam e o
Glauber era diferente nesse sentido. A mente do Glauber era de uma rapidez, uma
inteligência fora do comum. Seria interessante até como experiência. Mas eu
achava que aprenderia mais trabalhando com um diretor mais didático.
Acadêmico
vamos dizer...
Isto, acadêmico. Vou te
contar uma história do Mário de Andrade. Um dia um jovem levou pra ele umas
poesias revolucionárias, o Mário de Andrade leu e falou: “Muito bom, agora trás
um soneto para eu ver”. O cara assustou-se: “Mas o senhor é um demolidor de
sonetos. O senhor esteve na Semana de Arte Moderna. O senhor me pede um soneto,
uma coisa acadêmica?”. “Sim. Pra você destruir uma poesia clássica, primeiro
você tem que saber fazê-la. Então, trás um soneto pra eu ver se você sabe e
depois você destrói”. Então, eu pensava isso de alguma maneira. O Glauber era
maravilhoso, mas como amigo e cineasta, gostava de ver os filmes dele. Terra em Transe é um belo filme, Deus e o Diabo é um belo trabalho.
Gosta
de Barravento?
O Barravento eu não vi. Aliás, eu vi o Barravento, mas não me recordo porque na época...Apesar de ser o
Glauber e o (Luiz) Paulino que dirigiram, o Nelson Pereira (dos Santos) que
montou. Eu me recordo de cenas esparsas, como um todo não me cativou não.
O
senhor não gosta dos outros filmes?
O Dragão da Maldade já não acho que seja grande coisa...Cabeças Cortadas me cansou, não vi todo. Mas o Glauber tinha
coisas... Eu passei por ele uma noite no Leblon, quando voltava para casa.
Pensei: “Vou parar o carro e vou ver se ele quer alguma carona”. Estava com uma
amiga do meu lado e o Glauber estava discursando sozinho na frente do Cine
Leblon. Aí eu nem parei: “Sei lá o que está acontecendo. Não vai dar certo”.
Depois
o senhor se aproxima do Jece (Valadão, produtor). Isso foi uma coisa que te
prejudicou com esse pessoal mais engajado?
Não. Na realidade eu era
um garoto do interior, nasci em Três Corações. Meu pai era operário, sete
filhos. Então, eu era um menino muito pobre. Pra você ter ideia eu não fui
criado só pelo meu pai e pela minha mãe. Fui criado por várias pessoas: morei
na casa do meu avô, depois fui pro Rio, criança ainda, morando na casa de um
tio. Depois fui pra Três Pontas. Quando tinha quinze anos voltei pra Três
Corações e aí morei com os meus pais. E eu não tinha dinheiro, não tinha nada.
Então, eu não seria nunca aceito nessa turma do (colégio) Santo Inácio porque
eram todos de posse, muito ricos. Basta dizer que o bar deles era o Antonio´s, você
nunca viu ninguém do Cinema Novo na Fiorentina, que era um restaurante mais
popular.
O
Antonio´s era mais elitizado?
Sim. Tanto que o Nelson
Rodrigues citava muito: “A esquerda do Antonio´s”. O Antonio´s era da esquerda
festiva. Eles frequentavam lá, era outra coisa. Eram turmas opostas. Como os
personagens do Bonde Chamado Desejo.
Então, eram mundos opostos.
O
Saraceni também?
Nunca tive muita
intimidade com ele não. Nunca fui íntimo do Saraceni.
O senhor acha que eles tinham preconceito?
Alguns. Outros eram
legais como o Leon (Hirzoman), o David Neves, o Nelson Pereira (dos
Santos)...Mas para os preconceituosos eu dizia, de cara, que eles tinham uma
cultura de axilas, pois andavam sempre com um livro embaixo do braço. Até na
praia. Faziam tipo. Então, eu levava na gozação e eles ficavam com raiva.
Sinceramente, eu não levava a sério essas coisas.
Mas
eu não sabia dessa divisão do Antonio´s com a Fiorentina. Achei que todo mundo
do cinema frequentava.
Sim. Mas o Nelson Rodrigues cita o Antonio´s. A Fiorentina não passa na
pena do Nelson. Naquela época, o Rio tinha três bares: os atores frequentavam o
Gôndola, na Sá Ferreira; diretores de cinema de estúdio e atores mais
descompromissados iam à Fiorentina;
Cinema Novo e música iam Antonio´s. Tem uma célebre cena do Manolo, o
dono do Antonio´s. Ele colocava as fotos dos fregueses ilustres na parede. Um
dia pôs uma foto do Chico Buarque. No outro, uma foto do Boni e o Chico ficou
chateado, mandou que ele tirasse...Deu um rolo... Hoje são amigos. Mas naquele
tempo existia uma divisão forte.
Você
chegou a conhecer o Rogério Sganzerla?
Conheci muito o
Sganzerla. Éramos colegas. Gosto... O Bandido da Luz Vermelha, revi há
poucos dias, é uma obra-prima.
Mas
e os filmes posteriores?
Não sei. Pelo seguinte:
é muito difícil para o cineasta. Até pensei uma vez que era defeito meu, falei:
“Caramba. É um problema meu. Não estou vendo muitos filmes”. Aí vi uma entrevista
do Fellini. Ele dizia a mesma coisa, que ele não via filmes. Depois vi uma do
Ruy Guerra dizendo: “Faz muito tempo que não vou ao cinema”. Lembrei do Aurélio
(Teixeira)...E compreendi. É o mesmo que você trabalhar num banco e na hora de
folga você ir ao banco. Então, eu ia ver poucos filmes, dos caras que eu
gostava. Por exemplo: Kurosawa, Fellini. Já de alguns diretores tidos como cult como Alan Resnais e Antonioni eu
achava muito cansativos.
Detalhes da fantástica biblioteca de Braz Chediak |
Não. Fui cinéfilo dos
meus catorze aos vinte anos. Nessa época eu assistia todos os dias um filme.
Sábado e domingo assistia dois. Então, via tudo. Depois eu passei a dar mais
importância a rever. Isso eu acho melhor. Como eu estava te dizendo: eu não
assistia todos esses filmes. Fui ver O
Bandido da Luz Vermelha do Sganzerla e achei ótimo, fantástico. O
Sganzerla...Gostava dele, uma pessoa, um cara legal. Tem um fato até bastante
interessante. Eu estava fazendo um filme, montando, eu gostava muito de montar
até como treinamento. Pedia para montar trailer.
Ninguém gostava de montar trailer. Aí
eu chegava pro cara: “Está montando? Deixa eu montar pra você?”. Eu montava
bem. Gostava de fazer esse tipo de coisa. Então, eu estava na sala do Herbert
(Richers, produtor) e chegou o Sganzerla: “Caramba, o meu filme não deu
metragem. Você não tem alguma cena do seu filme sobrando?”. Falei: “Sganzerla estou
com uns trechos de um documentário”. “Dá pra eu ver?”. “Dá. Pega a moviola lá e
vê lá”. Ele olhou: “Esse pedaço aqui você dá pra eu colocar no meu filme”.
“Leva”. Então, ele fazia aqueles filmes dele. E ficavam geniais. Mas eu não
acompanhava. Não assisti tudo. O Glauber vi os dois...Não. Primeiro vi Barravento que eu não me recordo e
depois vi Deus e o Diabo. Eu já tinha
lido o roteiro três vezes quando o título era Deus e o Diabo Na Terra fdo Arame Farpado. Vi Terra em Transe, O Dragão da
Maldade. Aí o outro O Cabeças
Cortadas.
Do
Sganzerla o senhor só viu esse então?
Só.
Os
filmes posteriores da Belair. O senhor não chegou a ver?
Não.
Ele
trabalhando junto com o Bressane...
Desse não vi os filmes.
Na realidade eu era amigo de todo mundo, não tive inimizades no cinema. Nunca
fui de cultivar inimigos. Agora até pra preservar certas amizades é bom não ver
o filme. Entendeu? Senão...você vai
fazer uma análise. O cara te pergunta: “Você viu o meu filme? O que você
achou?”. Eu acho muito indelicado (rindo). Nunca perguntei pra ninguém: “O que
você achou?”. Até porque eu sou muito crítico inclusive com os meus filmes. Meu
filho me disse outro dia: “Pai: teu filme passou no CCBB (Centro Cultural Banco
do Brasil)”. Ele estava no Rio e acabou vendo: “Aí eu fui ver”. Eu disse pra
ele: “Por quê você foi ver? Esse filme é uma porcaria caramba”. Era o Banana Mecânica. Ele me disse: “Deixa de rigidez, vi o filme e
o pessoal ri pra caramba. É uma comédia maravilhosa”. Elogiou e eu falei: “Pô
que mau gosto. É ruim”. Ele falou: “Não pai. Reveja”. “Não. Não vou rever
nada”. Interessante...Há uns dois, três meses me ligaram de Boston. Passaram meus filmes lá,
creio que numa universidade. Uma coisa de cinema. E o sujeito lá me convidou.
Deve ser um diretor de cinemateca, não sei. Ele me convidou para dar uma
palestra sobre os meus filmes. Eu tinha até marcado com o cara: “Vou, mas tem
um problema. Eu não falo inglês”. Ele falou: “Não tem problema. Nós temos
tradução instantânea”. Aí um dos caras de Boston...esqueci o nome dele. Ele me
falou: “Assisti um filme seu: o Banana
Mecânica. Cara que loucura. O senhor não toparia escrever isso adaptado pra
Hollywood? O senhor ficaria aqui em Boston e nós adaptaríamos pra Hollywood?”.
Eu falei: “Não. Não quero não” (risos). Ainda bem que eu não fui dar a
palestra. Não fui. Além de ser muito cansativo, uma viagem muito longa.
Acho
que tem até Belo Horizonte...
Não. Eu teria de ir até
São Paulo. Mas de São Paulo até Boston são doze horas de avião. E depois de
sessenta anos, eu tenho 76, você não deve ficar muito tempo sentado...Mais do
que oito horas. Pode te dar um negócio chamado trombose.
É
o que aquele ator da Globo teve o Marcos Paulo...
Foi?
Sim.
Ele foi pra Manaus participar de um festival, ficou muito tempo sentado e
acabou morrendo.
Pois é. Aí eu pensei
bem...Grande Othelo, tanta gente que eu vi morrer em viagem assim que falei:
“Não”. Se fosse pra ficar um tempo, fazer algo mais interessante. Mas ir até
lá, dar uma palestra, ficar três dias e voltar? É muito cansativo, não dá.
E
o senhor gosta do Banana Mecânica?
Não. Não gosto.
O
senhor sabe que é cult hoje? Aquele
trecho do Imperial com o (Pedrinho) Aguinaga...
Pedrinho Aguinaga? Pois é, engraçado isso. O público ri muito.
É um negócio interessante que até o nome pornochanchada veio de um movimento...Dos críticos brasileiros daquela época. Hoje mudou, hoje é uma juventude com outro pensamento. Mas na minha época eles eram contra o cinema nacional. Muitos críticos batiam nos filmes brasileiros que davam bilheteria: “Esse é comercial”. Isso é uma maneira que Hollywood encontrou para destruir o quinto maior mercado do mundo que é o Brasil. Eu dei uma entrevista falando isso e citei o Harry Stone: “É um absurdo ter um embaixador de Hollywood no Brasil como se nós fossemos uma república bananeira em que o presidente da República negocia com um representante de Hollywood”. Me lembro que a Censura proibiu um filme americano: Calígula. Exigiu cortes. Eu sou contra a Censura: não tem que proibir nada. No dia seguinte o Ronald Reagan e o Harry Stone tiraram uma fotografia que foi publicada na primeira página de todos os jornais. Aí a Censura liberou o filme. Isso é uma ameaça. Fiz uma declaração dura. Então, a crítica inteira ficou contra mim (rindo).
Como
o senhor avalia a crítica aos seus filmes? Teve muita coisa positiva?
Não. Eu acho que não
foi legal. Sempre sofri uma espécie de preconceito. Mesmo o Navalha na Carne que foi o que teve a
melhor crítica...Teve um crítico chamado José Lino Gruenwald que fez uma
excelente crítica. Mas teve uma crítica dizendo que o silêncio no filme
enfraquecia o texto. Isto, antes do New York Times dizer que “são trinta
minutos de profundo e belo silêncio”. Enfim...vários disseram que eu enfraqueci
a peça. Meu Deus, ontem eu vi aqui na Internet uma entrevista do Plínio Marcos.
Começa com o apresentador perguntando: “Como você vem sendo tratado pelo cinema
nacional?”. Aí ele cita: “Poxa, não tenho do que reclamar. O Braz Chediak”. Ele
fala meu nome completo: “O Braz Chediak fez um trabalho do caralho com o Navalha na Carne. O que aqueles atores
fazem é um milagre”. Sabe? Ele rasga elogios e fala a mesma coisa do Dois Perdidos: “Eu me sinto honrado dele
ter feito esse filme”. Isso o Plínio falando...Aí de outros filmes ele está
contra, fala mal das adaptações.
Dos
produtores qual foi o melhor com quem o senhor trabalhou? E qual foi o pior?
Olha...O melhor
produtor foi o Herbert Richers. E foi um dos meus piores trabalhos, mas não por
causa dele. Como eu tinha falado antes: o Herbert era excelente produtor, mas
ele tinha um pequeno defeito: trabalhava com datas e cometi um erro. Fiz o
filme sem roteiro. E sem roteiro você não vai a lugar nenhum, você não tem
rota. Eu lembro que chamei o (ator) Nelson Xavier para ser meu assistente. Ele chegava para mim: “Chediak, amanhã o que é
que a gente filma?”. “Não sei. Vamos escrever uma cena”. Escrevia uma cena ali,
na hora. Então, não pode dar boa coisa. Você não pode fazer isso: o roteiro é a
base de um bom produto final. Você tendo um roteiro já tem 50% de chance de
fazer um bom filme. E eu comecei essa produção sem roteiro. Foi o único filme
em que eu não escolhi atores, não fui eu. Deixei o Herbert escolher: “Chediak:
qual é o elenco?”. “Você que sabe”.
Foi
no O Grande Desbum?
Não. Foi o Confissões do Frei Abóbora.
E
você fez sem roteiro...
Fiz sem roteiro, o
Herbert...
Mas
é baseado num romance...
Zé Mauro (Vasconcelos,
escritor).
Sim.
Mas o romance do Zé
Mauro...Eu o piorei. Na realidade eu estava precisando de grana. Minha mulher
estava grávida. E aí o Herbert (Richers, produtor) me chamou, eu fui, quando li
o livro e falei: “Caramba. Eu não vou fazer bem”. Eu já tinha feito Meu Pé de Laranja Lima. Gostava muito do
Zé Mauro, uma pessoa doce, um homem delicado, simples. Pensei: “Vou estragar o
livro dele. Não é meu gênero”. Nessa época, eu morava na (rua) Nascimento e
Silva, era o ponto mais chique do Rio de Janeiro. Eu morava na Nascimento e
Silva, 102, num apartamento de cobertura. Mulher grávida e eu duro. Falei: “Deus
do céu. O que é que eu vou fazer?”. Quando eu saí de manhã pra ir ao estúdio,
estava uma placa assim: “Apartamentos. Vende-se”. Fui lá e perguntei o preço:
“Dois quartos, sala, dois banheiros, dependência de empregada”. Aí eles
falaram: “É tanto!”. Não me recordo quanto era, não tinha noção de dinheiro. Aí
fui pro estúdio. O Herbert: “Pensou Chediak?”. “Pensei”. “E aí?”. “O problema
agora é grana”. “Quanto você quer?”. “Tanto!”.
Era
o valor...
Do apartamento. Ele
falou: “Está OK. Passa lá na secretária e fala pra ela fazer o contrato”. Poxa...Eu
não queria fazer (o filme), queria que ele risse da minha cara.
Entendi.
Você achou que ele ia...
Rir na minha cara. Aí eu falei: “Meu Deus e agora?”.
Fiquei confuso: “Meu Deus do céu. Estou liquidado. Mas não vou voltar atrás,
dei minha palavra”. E filmei sem
roteiro, sem planejamento...
O
senhor não ligou muito pro filme?
Não. Nem um pouco.
O
senhor se arrepende um pouco de algumas atitudes?
Não arrependo. Foi uma experiência...Mas eu poderia ter feito um trabalho bom.
Não arrependo. Foi uma experiência...Mas eu poderia ter feito um trabalho bom.
O
senhor acha que poderia ter feito um trabalho melhor?
Poderia. Se eu chegasse
pro produtor, dissesse: “Herbert eu tenho que fazer um roteiro. Vamos começar
daqui a seis meses não agora”.
E
foi bem de bilheteria esse filme?
Olha, não fracassou mas
não foi um sucesso...
Mas
se pagou?
Se pagou. Tinha um
elenco bom, Norma Bengell, Tarcísio Meira...Grandes atores.
E
ele era um cara tranquilo de trabalhar? Um cara legal?
Era, era. Eu nunca peguei ator complicado.
E
qual foi o pior produtor com quem o senhor trabalhou?
Eu mesmo (risos).
No
Desbum isso?
Todos os filmes que eu
produzi. No Brasil, o diretor não deve produzir. Entendeu? Porque você fica
pensando na direção e ao mesmo tempo tem que arrumar grana, se preocupar com a
produção. Não fui bem quando tentei abraçar as duas coisas.
Como
era aquele ambiente do Beco da Fome? Sempre produzindo?
O Beco da Fome era na
Cinelândia. Porque tinha vários becos...Tinha o Beco da Fome na Prado Júnior,
frequentado por prostitutas e onde os artistas comiam de madrugada, por ser
barato e não fechar. Na realidade, a Cinelândia não era um lugar de produção. Sobreviveu
até quando se formou o sindicato. O pessoal desempregado fica ali e aí chegava
algum empresário: “Preciso de um trapezista, três anões, um cantor de bolero”.
Alguns levantavam e iam fazer seus trabalhos. Dava problema porque o cara
estava desempregado. Dava problema porque muitas vezes o cara dizia que era
trapezista e não era (risos). Tinha dado umas piruetas e achava que era. Nisso,
caia...Dava muito problema. Quando o sindicato se tornou mais forte o Beco da
Fome acabou. Na realidade, o Beco da Fome que era perto do Hotel Serrador...
Na
Álvaro Alvim.
Na Álvaro Alvim. Era
chamado também de Beco dos Aflitos. Era um negócio de desempregados. O cinema
não acontecia ali. Pertinho, na rua Senador Dantas tinha o escritório do Jarbas
(Barbosa, produtor). Do lado de cá tinha o edifício onde ficava o escritório da
Atlântida do (Luiz) Severiano (Ribeiro). Eram os escritórios, mas não os
estúdios. O povo que ia muito lá não era de cinema. De cinema quem ia muito lá
era o Wilson Grey...
Um
pessoal antigo?
Sim, mas ia mais gente
de circo e de música. Interessante, na minha época aqui no interior o chique
era ir ao clube de terno e gravata e tinha uma orquestra chamada Cassino de
Sevilha. O Paulo Thiago escreveu um livro chamado Cassino de Sevilha, muito bom. Talvez a infância dele tenha se
passado numa cidade como a minha. Pelo menos aqui em Três Corações era chique e
o pessoal ia. Eu não frequentava, não fazia o meu gênero esse negócio de baile
social. Então, quando cheguei lá para fazer parte daquele universo é que eu vi que
o Cassino de Sevilha não era uma orquestra única. Era uma espécie de grife. O
cara chegava lá no Beco dos Aflitos: “Atenção. Apresentação do Cassino de
Sevilha lá em Pernambuco. Precisamos de um trompetista, um baterista e um cantor
com sotaque espanhol”. As pessoas se apresentavam. Ensaiavam e faziam, faziam
bem, tinha experiência. Então, eram várias orquestras formadas por grupos, como
ainda hoje existe...
E
nem era tudo isso...
Eram músicos de
qualidade, muito bons, que ganhavam um cachê honestamente, mas não era fixos.
Mas
e a Boca do Lixo. O senhor chegou a frequentar?
Fui poucas vezes na rua
do Triunfo. Poucas vezes...Me lembro que fui no escritório do (Antônio Polo)
Galante (produtor). Eu não saia muito, não sabia andar em São Paulo. Fui ao
Massaini, tomei muito uísque com o Massaini E muito chope no bar do Léo.
Mas
uma vez e outra...
Sim. Não foi uma
constante, eu morava no Rio. Só ia quando lançava um filme em São Paulo.
O
senhor achava ali um polo importante de produção?
Claro. Acho que foi importante e ainda continua sendo dentro do cinema brasileiro. Porque é uma coisa interessante...É como o Glauber Rocha disse numa entrevista: “Nós não temos que pensar só nos artistas. Nós temos que pensar como se fosse uma frente de batalha contra o cinema americano”. Aí ele falava bem pra caramba e eu achava isso. Achava que eram pessoas que estavam batalhando, gente de muito talento. Obviamente que tinham produções estritamente pornográficas. Depois nós fomos ver quem combatia os filmes pornográficos...Com o advento do DVD passou a locar os filmes pornôs.
As
pessoas que combatiam?
Sim. Eram os puristas,
eles iam ver na casa deles, com distintas esposas. Está entendendo?
O
senhor trabalhou com o Carlos Imperial somente no Banana Mecânica?
Foi no Banana. Ele como ator e produtor.
Como
vocês se conheceram?
Todo mundo conhecia o Imperial. Ele que me chamou para dirigir. Eu tinha feito um filme que ele gostou muito e me convidou para dirigir. A princípio eu não queria, achava o Imperial meio exótico (risos). Mas era um homem inteligente, tinha uma visão danada do sucesso. Aquele negócio da Viúva Virgem...Foi ele que fez o lançamento. Foi um grande sucesso. Colocou nos jornais um anúncio: “Viúva jovem procura”. E não falou nada, ninguém sabia de nada. O Drummond escreveu uma crônica sobre isso. Nosso querido poeta, Carlos Drummond de Andrade...
O Imperial era muito divertido.
Ele tinha um escritório na (rua) Sá Ferreira. Morei em dois endereços na Sá
Ferreira por isso eu sempre cito essa vizinhança toda: o Hélio Block, Jorge
Dória, Fernando Pereira, Jesus, Sindoval, Luiz Rosemberg, éramos todos jovens
que sonhávamos em fazer cinema. Mas estou me afastando do assunto... O
escritório do Imperial ficava na Sá Ferreira, 44. Ele morava ali também. No
quarto dele, mandou pintar as paredes de preto, pregar um compensado na janela
também pintado de preto. Era pra não
entrar a claridade porque ele dormia até meio-dia com o ar refrigerado (risos).
E ali era o estúdio também. Ele tinha uma página na Última Hora chamada na Corte do Imperial e tinha foto das lebres do
Imperial. Me lembro que a primeira vez que eu fui lá estava a Regina Duarte lá
que era a namoradinha do Brasil e o Francisco Cuoco jovenzinho tirando fotos
para uma revista. O Imperial fazia uma página do jornal que vendia muito.
Naquela época ainda pertencia ao (jornalista) Samuel Wainer. Ele me chamou e relutei
um pouco, pensando que ele ia interferir. Mas como era profissional e não vivia de outra
coisa que não fosse arte, cinema especificamente, acabei topando. Topei fazer mas
também foi um filme que teve um pecado no roteiro.
O
roteiro era ruim?
Não existia. Íamos
escrevendo enquanto filmávamos.
Mas
o Imperial deu um argumento para o senhor?
Não. Ele falou: “Eu
quero fazer um personagem assim, assim”. Tudo bem. “Então vamos lá”. Nos
cercamos de gente bonita no elenco: Rose de Primo, Kate Lyra...
Já
era esposa do Carlinhos Lyra?
Sim. Daí o sobrenome
Lyra. Ela era americana. Kate Lyra. Enfim...
Pedrinho
Aguinaga...
Pedrinho Aguinaga. Na
época ele fazia propaganda de um cigarro chamado Charm, era considerado “o
homem mais bonito do Brasil”. Então, até mesmo os papéis pequenos...Tinha um
personagem menor chamei a Nélia Paula que tinha sido vedete. Zezé Motta que foi
indicada pelo Nelson Xavier, ótima atriz, mas acabou ficando com um papel
menor.
Sim.
O filme era centrado no Imperial tirando sarro.
Pois é. Fizemos e o
filme foi um sucesso. Interessante...
Mas
o título veio do senhor ou dele?
Dele. Ia ser lançado ou foi lançado o Laranja Mecânica. Aí ele aproveitou o embalo da publicidade. Ele tinha essa coisa de visualizar o sucesso. Hoje seria um grande nome no Marketing.
E
você chegou a conviver com o Imperial? Tem alguma história com ele?
Sim. Éramos pessoas bem diferentes. Ele era muito amplo, generoso com tudo e eu era uma pessoa mais na minha. O Imperial era muito engraçado. Por exemplo...Um dia ele me liga de manhã: “Chediak preciso falar com você urgente”. “O que é Imperial?”. “Não, dá um pulo aqui em casa”. Ele dizia que morava na Barra (da Tijuca, bairro do Rio). Pensei: “Poxa vou lá. Ele pode não estar bem”. Cheguei e começamos a conversar. Horas conversando. Lá pelas tantas eu disse: “Imperial até agora você não disse qual o motivo de eu ter sido chamado. Já estamos aqui há três horas”. “Chediak, é o seguinte: eu gosto de chamar determinadas pessoas para desenvolver minha inteligência” (risos). “Pô, você me chamou pra conversar?”. Poxa, ele tinha umas tiradas, era muito engraçado. Na hora do almoço, queixou-se: “Estou num regime alimentar”. Realmente, ele havia engordado...E tinha permutas com os restaurantes porque fazia uma página inteira num jornal muito vendido. Isso fazia ele começar as crônicas assim: “Estava almoçando no restaurante tal”. Tinha um restaurante na Barra muito bom chamado Tarantela. Aí ele me convidou para ir com ele a Tarantela, eu e a filha dele, a Maria Luiza. A Maria Luiza era júri do Flávio Cavalcanti. Chegamos ao restaurante e o Imperial: “Chediak vou te dar uma sugestão você pede esse prato aqui”. Para filha a mesma coisa: “Luiza vou te dar uma sugestão, você pede esse outro...”. “Eu, como estou de regime, vou pedir uma salada de palmito e uma Coca-Cola”. Ele não bebia, não fumava, mas tomava litros de Coca-Cola. Enquanto esperava, eu tomei um chope. No segundo, ele olhou para mim: “Chediak você está bebendo muito”. “Mas eu não estou de regime, cara”. Vieram os pratos. O que ele me indicou era uma bandeja enorme. Ele falou: “Pô, invejo vocês. Eu estou de regime. Só vou fazer uma boquinha...”. Pegou metade do meu e metade da Maria Luiza (risos). E comeu quase tudo (risos). Eu falei: “Imperial, você tem certeza que está de regime?”. “Estou falando para você. Não posso comer”. O Imperial cativava, era uma figura. Agora, veja só: foi ele quem lançou o Roberto Carlos e muita gente boa da música brasileira.
E
ele pagou o senhor certinho na produtora dele?
Tudo. Absolutamente
honesto.
Ele
gostava de ser polêmico? Inventar coisas...
Ele fazia tudo
estudado. O pai dele era banqueiro. A mãe dele era uma senhora com uma
distinção imensa. O pai tinha uma educação...Todo mundo educadíssimo. Depois
morreu a tia e deixou uma herança fantástica para ele. Ele fazia isso...Inscreveu-se
no desfile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Cada um com uma fantasia
(risos). O Clóvis Bornay, que era outra figura fantástica, o Evandro...Aquelas
peças de desfile, o pavão não sei das quantas a cascata de estrelas. O cara
anunciava: “Clóvis Bornay no pavão de esmeraldas”. O Imperial candidatou-se e a
fantasia dele chamava-se “libélula deslumbrada”. No desfile...Ele entra de
fralda com uma asa de borboleta e desmunhecando (risos). Pô...Metade do povo
vaiando, outra metade gritando. Tiraram ele...
Mas
ele queria isso mesmo...
É...Foi uma gritaria.
Tiraram ele do desfile. Aí ele queria processar, tudo para chamar a atenção:
“Vou processar o Teatro Municipal. Desrespeitaram minha fantasia de libélula”
(risos). Publicaram as fotos em todos os jornais. Ele era inteligente, genial.
Um anarquista.
Pegava
mau no meio intelectual o senhor ter uma aproximação com ele? Ter trabalhado
com o Carlos Imperial?
Na realidade eu não
ligava. Porque quando descobri que aquilo era um mito... Era o showbizz. O vale tudo. Na frente das câmeras,
na imprensa, o pessoal falava, brigava. Na intimidade todo mundo tomava um
uísque junto.
Emiliano Queiroz, Jece Valadão e Glauce Rocha em Navalha na Carne de Braz Chediak |
Acho que o Navalha. Há pouco tempo vi uma
reportagem na Internet dizendo que o Navalha na Carne foi quem inventou o
steady-cam. Porque não tem cortes, é o tempo todo aquele tipo de luz que foi
usado pelos alemães no tempo do Murnau. A gente veio e adaptou aquilo para a
América Latina. Depois, o Scorsese usou esse tipo de iluminação nos filmes dele
também, a iluminação refletida. Tivemos uma série de inovações, trabalhei com
um fotógrafo fantástico que era o Hélio Silva. Os atores eram muito bons...
Os
três...
A Glauce (Rocha), o
Jece (Valadão), o Emiliano (Queiroz) e o Ricardo que faz o menino do bar. Ele
foi morto ou suicidou-se. Ou suicidaram ele em seguida.
A
Glauce era excelente atriz, mas não era uma musa como a Leila Diniz. Foi por
isso que o senhor escolheu ela?
Ela não era uma musa. A
Glauce era como a Jeanne Moreau. Ela tinha um charme, uma força. Assim como as
mulheres gregas. As gregas não são assim tão bonitas. Você já notou isso?
Não.
Elas não são. Agora, de
repente você olha assim e ela se torna muito bonita porque ela era muito forte.
Se você pensar bem a Glauce se parece com o Jean-Paul Belmondo, ela mesmo dizia
isso. Mas ela não era feia. Ela não tinha uma beleza comum. Mas era uma mulher
maravilhosa e uma atriz incrível. Vi Electra
com ela, que coisa fantástica. A Glauce era genial.
Como
foi o convívio com o Plínio (Marcos, dramaturgo)? Vocês se deram bem?
Sim. Nos demos muito
bem. Quando ia a São Paulo sempre almoçava na casa dele. Ele era casado com a
Walderez (de Barros, atriz). Sempre ia lá... Quando ele vinha ao Rio a primeira
coisa que fazia era me telefonar. Ia para casa...
Vocês
tinham mais ou menos a mesma idade?
Sim. Até fisicamente a
gente era parecido. Me dei muito bem com ele. Aliás, ele até queria que eu
dirigisse Abajur Lilás, mas eu falei:
“Plínio eles vão prender nós dois”. Ele chegou até a sugerir um elenco:
“Chediak você coloca o Ziembinski para fazer a velha dona do bordel”. O Ziembinski
fazia um personagem na televisão que era uma velha numa novela chamada O Rebu. “Põe ele pra dona do bordel”. O Ziembinski
era genial: ator maravilhoso, diretor maravilhoso. Eu falei: “O problema não é esse.
O problema é que a peça está proibida e vai dar errado”. O que era a peça? Uma
sessão de tortura de uma mulher que roubou um abajur. “Eles vão ligar a tortura
militar, pô. Vai dar problema e eu já estou com problema. Você já é um
problema”.
Sim.
Ele era o autor mais visado, mais censurado.
Sim, muito censurado.
Eu disse: “A Censura já me chamou a Brasília. Não vamos nos enrascar mais. Caramba.
Não vamos fugir da raia, mas não vamos provocar”. Mas foi uma relação boa. Eu
sempre tive uma relação boa com o Plínio. Com o Nelson (Rodrigues) também. Foi
uma relação maravilhosa.
Mas
acho que o Nelson foi mais intensa porque vocês tiveram uma relação mais
intensa.
Eu convivi com a
família toda. Fui muito próximo do Nelsinho (Rodrigues), do Joffre (Rodrigues).
Quando eu fui pra Itália estudar o Joffre foi lá pra Roma: “Vamos alugar um
apartamento”. “Não dá Joffre, não tenho grana!”. Dona Elza, a esposa do
Nelson...Uma pessoa maravilhosa. Ela se preocupava muito comigo, se eu estava
me alimentando direito. Sabe essas coisas de mãe? Nessa época que eu conheci,
eu era rapazinho e o Joffre também. Eles moravam na rua Agostinho Menezes na
Tijuca. Dona Elza fazia uma salada de feijão fradinho deliciosa. Eu ia lá para
comer. Domingo não abria o restaurante Calabouço, eu ia comer lá e a dona Elza
me fez uma proposta incrível: “Chediak você vai estudar Direito”. “Mas dona
Elza eu não vou estudar Direito”. “Não. Você vai. Porque você indo o Joffre
vai”. “Mas eu não tenho como pagar uma faculdade”. Eu tinha passado no
vestibular e bem...Tinha passado na Cândido Mendes. “Você faz o seguinte: eu
vou pagar a sua faculdade. Você come aqui em casa e eu te dou uma mesada. Você
vai estudar pro Joffre estudar” (risos). “Dona Elza: a senhora vai me
desculpar. O Joffre estuda sozinho”. O Nelsinho usava calça curta. E eu ia lá
visitar o Nelson na redação do Correio da
Manhã. Muitas vezes ele tomava doze,
doze comprimidos de Melhoral.
Ele
tomava doze comprimidos de uma vez?
Doze de uma vez. Ele
abria a boca e ficava com eles lá na garganta e depois os engolia com uma
xícara de café. Por isso ele tinha úlcera. A úlcera era até um personagem das
crônicas dele. Hoje a gente sabe que aquilo é um horror para quem tem úlcera.
Então
ele piorava com isso...
Sim. Mas não se sabia
na época...
Ele
não bebia álcool?
Não.
Mas
fumava, né?
Muito (rindo).
Lembro....Era engraçado. Quando foi proibido de fumar, a gente ia sair, ele
entrava no elevador e a primeira coisa que fazia: “Com licença” e tirava o
cigarro do nosso bolso. Aí tirava o filtro...Nós combinamos inclusive, eu,
Joffre, Nelsinho: “Ninguém leva o cigarro no bolso. Nós vamos ficar sem fumar”.
Porque eu fumava muito, era tabagista mesmo, três maços por dia: “Não vamos
levar cigarro pra onde o Nelson estiver”. Mas ele fumava demais e foi
tuberculoso.
Mas
era da geração. Naquela geração as pessoas fumavam demais...
Muito. Ás vezes, ele dizia:
“A vida só não me deu bola de cachorro louco”. Você sabe o que é bola de
cachorro louco?
Não.
Bola de cachorro louco
é uma bola de carne em que colocam veneno para o cachorro comer e morrer. Ele
usou “cachorro louco” para reforçar a frase. Porque um cachorro louco não come
nem bebe principalmente água. Por isso chamam hidrofobia. Não bebe.
Lucélia Santos em Bonitinha, Mas Ordinária de Braz Chediak |
O Bonitinha foi um sucesso de público absoluto. No Brasil não foi bem
de crítica...Aqui só um jornalista gostou do filme que foi o Xico Sá. Ele falou
bem da cena da curra, uma das cenas mais eróticas que já tinha visto. Teve um
jornal na Itália que disse que foi a cena mais erótica do cinema mundial, a
cena da curra da Lucélia (Santos). Na época a crítica esculhambou. Uma grande
revista de nível nacional fez uma matéria, gastou páginas só para falar mal. E
olha que o crítico era diretor de cinema. Mas foi um sucesso estupendo.
Dos
três foi o maior sucesso?
Sim. Depois quando nós
fizemos o Perdoa-me Por Me Traíres
aconteceu a mesma coisa. O mesmo crítico pediu para ver antes do lançamento,
mas não deixei: “Não. Mas se não for antes de todo mundo não sai na minha
coluna”. Eu falei: “Dane-se”. Aí depois ele ligou lá pra casa do Nelson: “Foi o
melhor filme que já vi de Nelson Rodrigues, podia ter saído”. Pois é. Depois
que passou o filme fica muito fácil.
Eu
vi o Perdoa-me a muito tempo. Mas o
elenco do Bonitinha é muito bom. Tem
a Miriam Muniz inclusive...O Wilker. O senhor se deu bem com todo mundo?
Todo mundo meu amigo. O
Wilker a gente praticamente começou junto.
O
Milton Morais está bem também...
Ótimo. O Milton era
fantástico. Um monstro...Carlos Kroeber.
Carlos
Kroeber está ótimo.
Mineiro ele também. É
de Belo Horizonte. O Perdoa-me é um
grande papel da Vera Fischer. Tenho um amigo escritor que se encontrou com a
Vera e comentou com ela: “Foi a melhor coisa que eu vi de trabalho seu como
atriz”. Ela está realmente no nível de Ingrid Bergman, no tempo certo de
interpretação. Perfeita.
E
ela era uma pessoa difícil?
Não, não. Pelo
contrário: a Vera era de uma família humilde, uma mulher muito bonita e muito
inteligente. Só para você ter uma ideia eu tenho por princípio, quando eu estou
filmando, sentar na mesma mesa da equipe. Porque cinema tem isso: restaurante
para os atores e diretor, quentinhas para os técnicos. Eu falava: “Não. Eu vou
comer a mesma coisa que o eletricista come”. Sentava com o pessoal. No primeiro
dia de filmagens com a Vera, a produção falou: “Vera: vocês vão almoçar no
restaurante tal e vamos trazer as quentinhas pra equipe”. Falei com a produção:
“Eu como aqui com a equipe. Pode trazer uma pra mim também”. Sentei na três
tabelas e a Vera na mesma hora: “Não, não. Vou comer aqui com eles. Nada de
restaurante”. Sabe? Ela era de uma...A Lucélia (Santos) a mesma coisa.
A
Lucélia foi uma atriz tranquila?
Demais. Nós fomos
filmar lá em São João del Rey o Álbum de
Família. A Secretaria de Cultura de lá tem uma casa com vários apartamentos
pequenos, com banheiros, para quando apresentarem peças de fora os atores
ficarem. E eles nos ofereceram. Nós nos hospedamos todos lá. Eu chamei a
produção: “A Lucélia, você coloca no hotel”. Ele foi para o melhor hotel da
cidade. Aí, lá pelas oito horas da noite ela chega no alojamento: “Poxa estou
triste”. “Triste por quê? O que está acontecendo?”. “Todo mundo aqui
conversando e eu sozinha lá no hotel. Eu não vou voltar para lá não. Vou ficar
aqui”. “Mas Lucélia aqui a condição é meio precária”. “Não tem importância. Tem
algum colchão sobrando?”. Aí ela falou com o Rubens Correia e o Marcos Alvisi:
“Não tem um canto no apartamento de vocês?”. Eles: “Um canto tem”. Ela: “Põe um
colchão no chão”. Puseram um colchão no chão e durante todo tempo de filmagem ela
ficou lá. Arrumava o colchão dela de manhã e não tinha essa frescura. Nada
isso. Ela nunca teve. Maravilhosa profissional.
O
senhor trabalhou com a Darlene Glória em que filme?
Os
Viciados. Quando eu trabalhei com ela, a Darlene ainda não
tinha explodido. Ela explodiu no filme do (Arnaldo) Jabor (Toda Nudez Será Castigada). Quando a conheci ela era uma moça que,
praticamente, morava na Magnus Filmes porque era muito solitária. Á noite ela
fazia uma peça chamada Pais Abstratos.
Era ela, Jorge Dória e Glauce (Rocha). Ela tinha vindo lá de Cachoeiro do
Itapemirim.
Ela
e o Jece eram amigos?
Sim. O Jece era o dono
da Magnus. Eles eram amigos. Muito boa de trabalhar, era bonita, ótima atriz. A
Darlene veio no lançamento da minha biografia aqui em Varginha. Tinha um
festival de cinema e foram lançar meu livro lá. Ela e a Lucélia (Santos)
vieram. Eu e a Lucélia nos falamos sempre. Com a Darlene é raro...Mas com a
Lucélia fui a São Paulo ver a peça A Falecida,
do Nelson Rodrigues, ela fazendo a Zulmira, direção do Marco Antônio Braz.
Fui lá, assisti, muito boa a peça. Saímos juntos e fomos jantar. Eu, ela, meu
filho, minha nora.
O
que o senhor acha do cinema brasileiro atual? O senhor acompanha?
Não. Tempos atrás um
diretor, Marcelo Laffitte, me mandou um filme...Não conheço ele pessoalmente.
Mas ele me mandou, Elvis e Madona...
Com
a Simone Spoladore?
Isso. Assisti. Achei
ótimo, essa moça (Simone Spoladore) é maravilhosa. Vi um outro infantil que
achei fantástico. Achei tão bom que quando assisti entrei no Facebook, achei o
diretor, Tony Vanzollini e dei os parabéns a ele. Ele me agradeceu de uma
maneira muito agradável: “Que bom. Por causa disso que a gente continua”.
Chama-se Eu e o Meu Guarda-Chuva.
Muito bonito o filme. Os atores bons e o diretor...Achei a direção dele ótima.
Tem aquele cara que não é ator, mas está bem no filme, um cantor que é um tipo
engraçado faz um cara meio burocrático, meio kafkiano, o Arnaldo Antunes. Ficou ótimo.
O
senhor ainda tem muitos projetos em cinema? Não tem vontade nenhuma de voltar?
Não. Quando deixei o
cinema eu tive motivo. Antes existiam estúdios e eu era o diretor. Então, o
estúdio me ligava: “Chediak: a gente está querendo fazer um filme assim esse
ano”. Eu escrevia ou adaptava uma peça...Isso acabou. O diretor tem que pegar
uma pastinha, sentar ali na empresa e ficar esperando porque precisa de
patrocínio...Esse papel eu não sei fazer. Já houve alguns projetos que me
chamaram, mas a ideia ás vezes não me cativou e ás vezes o pessoal que me
procurou não me cativo. Por exemplo, me chamaram para fazer um filme sobre o ET
de Varginha (risos). Não aceitei. Primeiro porque o cara chegou na minha casa
eram duas da manhã. Isso não é horário pra chamar ninguém para dirigir filme.
Depois ele queria ser o ator principal. Eu olhava a cara dele...Me garanto como
diretor mas não senti empatia. Falei: “Não quero”.
O
Joffre chegou a fazer um filme baseado no Nelson com a Simone Spoladore alguns
anos atrás: O Vestido de Noiva. O
senhor chegou a ver? O que achou do filme?
Pois é...O Joffre falou
que o filme era genial, etc. Eu não vi. Até porque o Joffre não admitia
crítica, ficava brabo e triste. Então eu decidi não ver. Quando fui ao Rio, ele
e a Marta, esposa dele me convidaram mas eu não pude ver. Até porque acho a
Marília Pêra maravilhosa, acho ela a melhor atriz brasileira. Acho Pixote o melhor trabalho dele em cinema,
entende? Ela dá um show. Ah, meu filho, Yassir Chediak, faz uma ponta ou
figuração, sei lá, no filme.
O
senhor se considera um diretor injustiçado?
Honestamente? Eu não me
preocupo com essa coisa. De vez em quando vejo pela Internet comentários que me
esculhambam. Mas a maioria, a grande maioria me elogia. Principalmente os
jovens.
Os jovens de hoje são
mais tolerantes, estudam mais...Ficaram cansados com o mau humor dos críticos
velhos. Interessante...Essa semana mesmo eu estava vendo um diálogo. Um cara
estava falando do Dois Perdidos.
Esqueci quem montou...Estavam falando sobre montagem, aí surgiu o assunto do
filme. Uma atriz, uma jovem atriz falou: “Eu vi a versão do Braz Chediak. É
espetacular”. A outra: “Não gostei”. Vejo muito esse tipo de comentário em
relação ás refilmagens tanto do Navalha
como do Bonitinha, Mas Ordinária. Até
brinco: “Estão refazendo os meus filmes porque acham muito ruins ou porque
querem me prestar uma homenagem”. Mas não vi nenhuma refilmagem. Até fui
convidado pra fazer uma, o Boca de Ouro, mas não aceitei: acho que um clássico
não se refilma.
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