O Imaginário da Boca parte I: Introdução
Por Inimá Ferreira
Simões
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Entre edifícios
descuidados do antigo bairro de Santa Efigênia, na animação de algumas ruas
ocupadas por distribuidoras e produtoras, frequentadas por profissionais de
cinema, intelectuais e jornalistas, a Boca tornou-se conhecida como um espaço
de convivência e trabalho e como termo de referência para certas formas de
fazer cinema.
O estudo Imaginário da
Boca vem reconhece-la não como uma entidade, nem como uma organização fechada e
definida por regras determinadas. Verifica que os filmes produzidos na Boca não
configuram um conjunto homogêneo que o trabalho ali realizado não é
conscientemente controlado. Refuta ainda, a possibilidade de explicar o cinema
da Boca simplesmente pelas relações econômicas que o presidem. Nisto reside a
contribuição deste texto, que numa aproximação aos trabalhadores do cinema,
busca esclarecer a relação que estabelecem com aquilo que fazem.
Com toda propriedade, a
Boca ressurge como lugar do paladar, do gosto, de articulação de pronúncia e
fala. O Imaginário da Boca se detém no sabor da produção mais recente, de 1978
a 1980, particularmente no universo da pornochanchada. Evitando o reducionismo,
que encontra neste tipo de filme somente o produto espúrio, procura recuperar a
humanidade das pessoas envolvidas nesta atividade.
E já que gosto se
discute, o texto oferece elementos necessários à reflexão sobre as imagens que
apresentam e representam o universo vivido através do trabalho e do desejo.
Dizia um grande mestre, que só a má apropriação do trabalho nos permite falar
em mau gosto. O estudo do imaginário da Boca deixa entrever que este processo
de elaboração simbólica por meio de fazer cinema, é uma maneira determinada de
apropriação da matéria da vida e uma maneira determinada de apropriação do
trabalho. Esclarece como a Boca ou as preferências do gosto são inequivocamente
históricas. A palavra final cabe aos leitores.
Introdução
Na época de seu
lançamento em 1973, o filme As Mulheres
Amam por Conveniência não despertou maiores atenções. E nem havia motivos.
Tratava-se de um filme brasileiro realizado com recursos limitados e de
intenções inequivocamente comerciais. A referência ao mesmo fica por conta da
historinha contada: um jovem técnico de cinema – interpretado pelo atual
diretor/produtor Tony Vieira – participa das filmagens que se realizam numa
fazenda e se apaixona pela atriz principal. É correspondido até o final dos
trabalhos quando, repentinamente, a moça prefere ficar com o rico fazendeiro. O
rapaz sofre um baque mas sua força de vontade e determinação levam-no a superar
a fase difícil, tanto assim que, algum tempo depois, já consegue dirigir o seu
próprio projeto. Um filme que estreia em noite de gala, sob aplausos e
admiração geral. Por sobre os ombros dos fãs (no Brasil ??), ele percebe a
presença triste e ar de abandono daquela moça que o rejeitara. O “mais recente
ídolo do cinema nacional” escapa dos admiradores, ouve uma confissão de
arrependimento e tudo termina bem.
Como se percebe, é uma história
idêntica a milhares de outras, cuja única peculiaridade é o fato do personagem
principal ser apresentado como profissional de cinema. Justamente aí reside o
interesse pelo fácil. Seria fácil demais justificar a sua existência apenas
como resposta operacional a uma demanda detectada no mercado. A hipótese
levantada na apresentação do projeto “O imaginário da Boca”, sugeria que a
solução – homem esforçado + moça sinceramente arrependida – atendia não só ás
fantasias do público espectador, mas também àquelas dos autores. Ocorreria
então uma identificação ao nível do imaginário que se confirmada ao final da
pesquisa, traria novos elementos para a compreensão do êxito comercial dos
filmes – pornochanchadas em sua maioria – produzidos na Boca de Cinema de São
Paulo.
A Boca, que se tornara
no decorrer da década passada, o maior núcleo de produção cinematográfica do
país, permanecia até o início da pesquisa como um campo praticamente virgem à
investigação. O alheamento demonstrado pela elite cultural revelaria, de
tabela, um mecanismo acionado com assustadora frequência no Brasil: o não
reconhecimento como recurso para anular a importância de um dado fenômeno. A
necessidade de superar o tratamento superficial e generalizante na abordagem
que se fazia dos filmes ali produzidos, onde um fracasso eventual de bilheteria
se transformava em indicador seguro da derrocada de um gênero (no caso
específico, a pornochanchada), orientou os trabalhos da pesquisa no sentido de
ouvir os profissionais, acompanhar de perto suas atividades e observar
paralelamente as reações da crítica e do público, frente aos filmes exibidos no
circuito comercial.
A tarefa de
ouvir/conversar com os profissionais de cinema não ocorreu sem problemas. Logo
de início ficou claro que os entrevistados tomavam posição frente ao
pesquisador, e exercitavam seus mecanismos de defesa com maior ou menor grau de
sofisticação e eficiência. Custódio Gomes, por exemplo, não discutiu a
pertinência das questões, preferindo responder como aluno obediente. Já Oswaldo
Massaini, produtor consagrado e homem com acesso fácil aos meios de comunicação
de massa, se sentiu à vontade para manifestar inúmeros pontos de vista,
questionar as posições do interlocutor e depois de considera-lo a altura,
comentar: “...no decorrer de minha carreira fui granjeando uma conceituação
importante até o ponto de você me procurar para uma entrevista”. O pesquisador
estava aprovado.
Tais constatações
confirmaram a necessidade de ponderar as respostas obtidas, pelo risco latente
de confundir o material de imaginário referente a cinema e universo da Boca,
com a imagem que o entrevistado formava a respeito do pesquisador. De qualquer
forma, o profissional de cinema se via na contingência de se “explicar”,
segundo algumas formas básicas: o desprezo pelo próprio trabalho, numa posição
claramente defensiva; preocupação em evoluir até uma posição harmoniosa com a
visão mais acadêmica de cultura; e finalmente, há os que assumiram a postura de
homens solitários (como os mocinhos do faroeste), em luta constante contra os
obstáculos – dificuldade de conseguir dinheiro, hostilidade dos meios
intelectuais, indiferença a imprensa, etc. Três alternativas do indivíduo e seu
modo de ser em relação à cultura estabelecida.
O período que vai de
1978 até quase a metade de 1980, marcou um relacionamento ininterrupto com a
Boca, que enriqueceu a visão do pesquisador ao mesmo tempo que tornou-se
impossível manter uma postura neutra (ou científica se preferirem), pois o
envolvimento emocional se mostrou inevitável.
Além dos depoimentos,
foram reunidos textos da imprensa diária que focalizavam, ainda que
indiretamente, a produção da Boca, releases de produtores, fotos, relatórios de
exibição, diagnósticos do Sindicato dos Produtores, roteiros e documentos de
época. Não faltou inclusive o comparecimento a algumas filmagens, e presença em
uma ou outra avant-première. Sem falar, naturalmente, da atividade cotidiana de
ver os filmes nas salas do centro da cidade.
O que se tentou nesse
texto final da pesquisa, foi elaborar um perfil – o mais aproximado possível –
deste universo cinematográfico em suas múltiplas instâncias, onde convivem o
grande produtor e os técnicos que trabalham, na maioria das vezes, sem nenhuma
garantia e a troco de ofertas aviltantes; a garota do bairro distante a sonhar
com o estrelato, e a atriz que recebe 200 mil cruzeiros por sua participação
num filme; o diretor estreante com o velho artesão já sem maiores ilusões, e
que faz do cinismo a sua melhor defesa, e daí por diante. Em outras palavras, um
pequeno mundo – aliás, único no país – onde só se respira cinema, e rico em
diferenciações interna e nuançado o suficiente para não atingirmos num primeiro
momento toda a sua complexidade.
Publicado originalmente
em O imaginário da boca, por Inimá
Ferreira Simões. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de
Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre
Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos, 6)
3 comentários:
EU, ANTONIO NAVARRO FIZ PARTE DESTE MELHOR MOMENTO, TRABALHEI COM TONI VIEIRA E TIVE OPORTUNIDADE DE TRABALHAR COM ANSELMO DUARTE NO FILME OS TROMBADINHAS E MUITOS OUTROS ATORES DA BOCA DO LIXO
Matheus vc tbm possui o livro O Olhar Pornô, tbm do Inimà Simões ?
Abç
Rodrigo Alves ( 1176 )
Excelente inventário da Boca,parabéns pelo post.
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