O Imaginário da Boca parte III: a boca
hoje
A
boca hoje
“...Muito forasteiro
entrou no Soberano para comprar cigarro e acabou faturando um cachê numa ponta.
Bastava dobrar a esquina da Boca para ter physique du rôle...” Marcos Rey
“Não adianta eu
fabricar mocassins se o público quer calçar Vulcabrás. Então, eu não faço nem
um, nem outro!”. (Oswaldo Massaini, fundador e diretor-presidente da
Cinedistri).
Por Inimá Ferreira
Simões
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
O jovem executivo
sente-se mal em plena rua movimentada. Para sua sorte está passando um amigo
que resolve tudo com desembaraço. Diagnóstico – stress. Tratamento: “Instituto
de Massagem”. Garças a este arranjo ficcional, o espectador está frente a uma
das técnicas mais utilizadas pelo cinema – e não só nos filmes produzidos na
Boca – para difundir marcas, divulgar nomes ou introduzir inovações. Claro que
só raramente, o mecanismo fica tão exposto como nesse O Segredo das Massagistas, produção de Cassiano Esteves (da
tradicional distribuidora Martes Filmes, dos filmes de Tarzan).
Vemos a fachada, a
portaria, a marca do grupo que mantém o instituto e finalmente a câmera entra
na casa, onde o ambiente é acolhedor e de bom gosto. De repente, a narrativa é
suspensa e entram na tela imagens (de outro filme!) de uma cerimônia, e um
senhor engravatado entrega a Mário Américo, massagista tricampeão pelo futebol
brasileiro e atual vereador na capital, um troféu ou prêmio. Quem faz a
entrega, ficamos sabendo, é o Dr. Newton Ribeiro, por coincidência incrível,
proprietário do Instituto em que se dá a ação do filme.
As massagistas são
simpáticas, alegres, joviais, sensíveis e compenetradas. A um avanço de um
cliente excitado, elas charmosamente e com muita delicadeza tentam dissuadir o
afoito. O jovem executivo está vivamente impressionado e pergunta à moça que
lhe faz companhia: “Você é psicóloga?”. Tanta compreensão...empatia,
sensibilidade...De qualquer forma, a presença da “confidente” parece acelerar
seu processo de recuperação e logo, logo, ele já está à vontade para dizer à
massagista que há muito tempo não via o sol nasceu ou uma rosa desabrochar. A
atração entre os jovens vai num crescendo que obriga um supervisor a pigarrear
seguidamente e até mesmo repreender carinhosamente a funcionária. E a história
termina bem. Mas o que se divulga afinal?
- cuidado com o stress.
Ele pode derrubar qualquer pessoa, mesmo jovem, nessa vida agitada de cidade
grade.
- diagnosticado o
stress, é preciso acabar com a tensão. Um dos métodos mais eficazes é a
massagem.
- as moças que
trabalham nesse Instituto são simpáticas, bonitas, interessantes,
inteligentes...
- uma academia de
massagens não é nada daquilo que alguns jornais andaram comentando em época
anterior ao lançamento do filme. Vê-se que é um ambiente de muito respeito,
asséptico, de cores suaves e elegantes.
- pode-se até encontrar
o amor...
- não esquecer aquele
senhor que entregou os prêmios. É um empresário do ramo, tipo empreendedor...
Vale a pena destacar,
além dos elementos já citados, a presença inevitável de mulheres bonitas
transformadas em “garotas-propaganda” nesse filme assinado por Antonio B.
Thomé. O Segredo das Massagistas não
foi um sucesso excepcional de público mas mesmo assim deu lucro. E daria de
qualquer maneira, pois os custos de produção foram reduzidos – filmagens
rápidas, mão de obra mal remunerada – e já estavam parcialmente amortizadas a
partir de associação entre produtor de cinema e Instituto de Massagem.
Dentre as estratégias
colocadas em prática para reduzir os custos de produção, a mais destacada é a
que incluí a participação de prefeituras do interior – hospedagem, alimentação
e transporte para a equipe como mínimo oferecido – que, em troca, obtém algumas
cenas do filme descrevendo as belezas locais. “Algumas vezes a compensação não
se limita a uma simples citação nos letreiros, e a propaganda que se integra ao
espetáculo: a câmera se demora um pouco mais sobre um produto qualquer, e os
personagens conversam diante de uma agência bancária, de uma loja, de um
hotel”.
Apelar para prefeituras
do interior propicia, para as produtoras menores, um filão inexaurível – tantos
são os municípios desse país. Provoca também atropelos na narrativa, situações
absurdas, onde um corte interrompe o clímax dramático para mostrar uma placa
relacionando os mais recentes feitos da administração local. Ou situações
grotescas, como essa noticiada no jornal “Notícias Populares” de 31 de maio de
1976. Sob o título “Salto desperta com ‘Pesadelo Sexual’...”. Segundo a
reportagem, o filme Pesadelo Sexual de Um
Virgem, dirigido por Roberto Mauro, causou a maior polêmica no município
por causa da participação de atores como o prefeito, o chefe de gabinete e o
pároco local.
Além de obter recursos
em setores alheios à atividade cinematográfica, o produtor pode também ceder
participação ás empresas distribuidoras para tornar viável seu projeto. No
momento em que a taxa inflacionária atinge índices elevados, o produtor se vê
compelido a recuperar com rapidez ainda maior o seu investimento, na tentativa
de evitar a corrosão dos lucros. Se tiver poder de barganha, vai utilizá-lo
para colocar rapidamente seu filme no circuito exibidor. Mas a maioria vê-se
obrigada a enfrentar os tortuosos caminhos da comercialização cinematográfica,
que incluem a obtenção do certificado de censura federal, o acerto das
porcentagens entre produtor/distribuidor/exibidor, preparação do material de
propaganda, marcação de datas para lançamento – outra tragédia: e se o filme
for lançado numa segunda-feira de carnaval? A saída então, para algumas
empresas é uma só: vender a preço fixo. Numa aritmética simplista: se for gasto
1 milhão de cruzeiros, por exemplo, tenta-se vender por 3 milhões para o
exibidor, e isso inclui a renúncia total aos direitos sobre o filme. O exibidor
pode pagar e comercializá-lo durante os cinco anos de validade do certificado
de censura, de acordo com sua política de obtenção de lucros. Mas e o produtor
que vendeu? Consegue fazer outro filme? Pode ser que não.
Um raciocínio corrente
é o seguinte: caso o produtor gaste no início do ano 3 milhões para fazer um
filme que será lançado, se tudo correr normalmente, na segunda metade do
semestre seguinte, o filme vai precisar, de acordo com os índices inflacionários,
obter uma renda bruta de no mínimo 10 milhões de cruzeiros para o investidor
reaver o que foi gasto, o que não é fácil! De acordo com “O desempenho do
cinema brasileiro em 1979”, trabalho desenvolvido por Paulo Neves para o
Sindicato dos Produtores do Rio de Janeiro, a indústria cinematográfica lançou
comercialmente 109 filmes naquele ano. No seu relatório, apenas 14 alcançaram
números superiores a 10 milhões de receita bruta. Vale destacar que pelo menos
6 são produção da Boca, e destes, a metade assinada por Antonio Polo Galante,
filmes dos mais rentáveis da lista, que não custaram mais de 2 milhões de
cruzeiros – valor abaixo do custo médio de um longa-metragem qualquer da mesma
lista. Este raciocínio nos permite também concluir que o fator decisivo não é a
renda bruta em si. A Batalha dos
Guararapes pode ter obtido uma receita duas ou três vezes superior à de um
filme produzido por Antonio Polo Galante, mas a vantagem se esvai se
considerarmos que os custos são dez a quinze vezes maiores. Outro exemplo: Os Sete Gatinhos de Neville de Almeida e
Convite ao Prazer dirigido por W.H.
Khouri, foram lançados no primeiro semestre de 1980, em São Paulo e Rio. Embora
não existam dados oficiais disponíveis, é permitido especular que o filme de
Neville entre produção e promoção tenha resultado três vezes mais caro que o de
Galante. O filme de Galante, antes de encerrar o primeiro semestre, já obtivera
33 milhões de cruzeiros – (4,5 milhões foi seu custo de produção). Está pago e
dá lucro. De Os Sete Gatinhos não se
pode dizer o mesmo.
Antonio Polo Galante
foi e ainda é muito criticado. “Um comerciante” dizem...“um homem de muita
sorte”...Há comentários sobre sua incrível sagacidade ou determinação em
enriquecer. A sorte também não é esquecida na descrição de sua trajetória. Do
seu escritório, pequeno, com duas salas e uma sacada, tem-se o melhor ponto de
observação da rua do Triunfo. É um ambiente em tudo diferente de uma produtora
tradicional como a Cinedistri, a poucos metros de distância. As instalações de
Massaini são espaçosas, veem-se inúmeros funcionários, corredores, sala de
troféus e finalmente ao fundo, a sala do fundador e diretor-presidente, forrada
de comendas, diplomas, medalhas e fotos de atrizes e amigos famosos. O
escritório de Galante poderia perfeitamente alojar uma imobiliária de bairro.
Assistido por um ou dois ajudantes, ele dá ordens, telefona e ri quando se
comenta sobre sua fama.
Antonio Polo Galante
(Galante Produções Cinematográficas) é frequentemente citado como comerciante.
E Galante concorda com isso?
“A minha origem foi
triste e humilde. Eu tinha que ganhar meu dinheiro para manter a família, dar
um padrão de vida e educar meus filhos. Uma das razões de desfazer a sociedade
com o Alfredo Palácios foi que nós tínhamos concepções distintas. Eu era o
comerciante e ele o político, Eu acho que cinema tem que ser comercial, senão
você não aguenta. Veja que todas as produtoras faliram...Menos a Cinedistri que
ganhou muito naquela época da chanchada da Atlântida...Eles montaram uma estrutura
como agora eu montei a minha. Eu faço 2, 3 filmes e dificilmente vou quebrar
por isso, porque tenho estúdios, equipamentos, as minhas fitas foram sempre bem
e hoje eu pago todo mundo no caixa”.
Mas você não cede
participação aos exibidores?
“Normalmente eu começo
com o meu dinheiro. Cinema é uma roleta e você joga sempre no mesmo número, e
se ele falha você vai a pique. O que eu faço e abro o jogo, porque o próprio
exibidor sabe disso, é o seguinte: se um orçamento fica em 3 milhões eu forneço
um de 6, porque ele é obrigado a pagar o meu know-how, que aprendi em mais de
20 anos de profissão. Então eu ofereço a fita para ele, desde que contenha, é
claro, aquela coisa comercial que agrade, e ele aceita na base dos 5 ou 6. Eu
tenho um certo crédito porque eu entrego o filme no prazo marcado, contrato
profissionais responsáveis, pago à altura do que pedem e tenho o filme pronto
para o dia que ele precisa para cumprir o decreto. Esse é o meu sucesso:
50% do exibidor, 50% é Galante; quem
paga a minha produção é o exibidor”.
Ody Fraga e Oswaldo de
Oliveira dirigiram vários filmes dessa produção encomendada. São os profissionais
em quem Galante confia. Terapia do Sexo foi, por exemplo, uma encomenda do
exibidor com prazo marcado, que Ody deveria dirigir em 13 dias. Fez tudo em 14.
O tipo do filme escrachado, com situações boladas na hora da filmagem, tudo em
fundo infinito, acabamento precário, e ainda assim obteve renda bastante
aceitável para a época de seu lançamento, em abril de 1978. Oswaldo de Oliveira
(Carcaça) e Carlos Reichenbach, como Ody Fraga, trabalham para Galante nestas
condições. Convidados para dirigir, veem-se obrigados a adaptar-se às condições
concretamente oferecidas. Não já o que inventar. O roteiro está pronto, elenco
escolhido e o prazo definido. Por isso; Jairo Ferreira chama a Produções
Cinematográficas Galante de a RKO brasileira, epíteto que se torna mais
adequado a partir da construção de três estúdios no bairro de Santana.
As ideias ou argumentos
são extraídos de fontes diversas. No caso do ciclo Presídios (cinco filmes que
realizou num curto intervalo de tempo: Escola
Penal de Mulheres Violentadas; Internato
de Meninas Virgens; Fugitivas
Insaciáveis; Reformatório de
Depravadas; Pensionato de Vigaristas...),
o ponto de partida pode ser até banal: Galante ia ser produtor executivo de uma
produtora alemã quem tencionava filmar no Brasil. Veio o diretor, alemão
especializado em filmes de presídio, que lhe confessou durante um almoço: “o
que dá dinheiro é grade e mulher nua atrás da grade”. Isso foi no Guarujá,
enquanto procuravam locais para locação de um filme que não se realizou, dada a
impossibilidade de trazer as atrizes e o equipamento. Galante não esqueceu o
conselho. Redige, ele mesmo, um roteiro e inicia o ciclo com Presídio de Mulheres Violentadas...“Depois
fiz Internato...Escola Penal...Pensionato
e, já começou a cair a renda...Fugitivas
Insaciáveis terá também um campo de concentração misto e renderá menos.
Estes filmes não entram em grandes cinemas, mas têm carreira longa e garantida.
Um dos filmes, por exemplo, custou mais ou menos 300 mil e rendeu mais de 6
milhões”. Ele diz que geralmente copia filmes estrangeiros. Vai ao cinema e vê
alguma cena e a partir de rápida observação inventa um roteiro.
E o que dá renda hoje
em dia?
“Meninas brincando de
papai e mamãe. O pessoal, a classe C, se excita muito mais com isso do que com
a simples visão de uma mulher nua...”.
Como se chega a essa
conclusão?
“Indo ao cinema. Eu
vejo muito a reação do público. O importante mesmo é a reação do público, do
espectador, porque faço filmes para ele, para a massa. Você pode ver que o
filme que fiz para a classe A – Guerra dos Pelados, por exemplo – só tinha
homem...e eu me estrepei”.
Á maneira de Massaini,
que tem nos filhos Aníbal e Oswaldinho os seus sucessores, Galante prepara o
filho, estudante universitário “mais intelectual que negociante” para
sucede-lo. O rapaz produziu em julho deste ano de 1980, um filme rodado em
Iguape e dirigido por Carlos Reichenbach, e prometeu ao pai ia levar a coisa “a
sério” e fazer uma fita para ganhar dinheiro.
Os problemas de
sucessão já foram, há muito, resolvidos na Cinedistri, desde que Aníbal
Massaini se revelou um produtor duplamente precoce. Eteriamente precoce, pois
na época contava vinte e poucos anos, e cinematograficamente precoce, ao adotar
o gênero erótico quando se associa à Sincro Filmes de Rovai, para rodar Lua de Mel e Amendoim, em 1970. Em
seguida produziu, entre outros, A
Infidelidade Ao Alcance de Todos; A
Superfêmea; Cada Um Dá O Que Tem; Já
Não se Faz Amor Como Antigamente; O
Homem de Itu; Elas São do Baralho
e recentemente Histórias Que As Nossas
Babás Não Contavam.
“Mas o Aníbal vai fazer
o seu Pagador de Promessas”, diz o
pai, referindo-se ao melhor momento de sua carreira como produtor
cinematográfico, ao mesmo tempo que professa alguma restrição ao tipo de cinema
desenvolvido pelo filho. “Mas a culpa não é dele. A culpa é de quem vai ver...O
importante para um produtor é saber o que o público quer ver. Não adianta eu
fabricar mocassins, se o público quer calçar Vulcabrás. Então, eu não faço nem
um nem outro”.
E prefere permanecer no
terreno dos filmes “institucionais”. Primeiro Independência ou Morte, que motivou o presidente da época, General
Médici, a convidar toda a equipe até Brasília para conhecê-la. Apresentados,
Massaini e Médici conversaram o suficiente para o presidente opinar
contrariamente sobre sua decisão de não mais produzir, e até ponderar: “Você
ainda está moço para parar. Eu quero lhe sugerir um filme sobre os
bandeirantes, porque a Transamazônica é uma bandeira do século XX...e eu
gostaria que você filmasse os bandeirantes”. Massaini “ficou com aquilo na
cabeça”, encomendou vários roteiros, e após uma seleção optou por Hernani
Donato. Finalmente, em setembro de 1980, é lançado O Caçador de Esmeraldas.
Na sua definição, o
produtor é um engenheiro: “o engenheiro da obra, que traça a planta do filme e
depois contrata os profissionais para construí-la”. A respeito de sua
hipotética acomodação ou falta de ousadia enquanto produtor, ele é taxativo: “o
cinema é uma indústria caríssima que não tem valor intrínseco”.
Mas a Cinedistri
atravessou bem os anos 70. Além de Independência
ou Morte, que assume na Semana da Pátria a mesma função que Paixão de Cristo na Semana Santa, os
outros projetos da empresa foram todos bem sucedidos comercialmente. Levando a
marca do produto bem acabado, realizado por profissionais competentes, atores e
atrizes de renome, os filmes de Aníbal (destaque para três: Elas São do Baralho, O Bem Dotado e As Histórias Que As Nossas Babás Não Contavam) revelam o cuidado em
atentar para as oscilações de gosto e novidades do mercado. Agora com roupagens
do “erotismo”, a Cinedistri faz valer a tradição conquistadas ainda na década
de 50, quando produziu as comédias popularescas com Dercy Gonçalves, Arrelia,
Costinha, Ankito e outros.
Tony Vieira, cujo nome
verdade é Mauri Queiroz – daí as iniciais de sua produtora MQ: “Marca e
Qualidade” – já fez de tudo na vida. Foi baleiro, trapezista, apresentador de
circo, locutor de parque de diversões, animador dos programas de tele-catch na
TV, e finalmente ator, diretor e produtor na Boca. Atravessou a década de 70 em
atividade ininterrupta com Heitor Gaiotti, que faz sempre o papel de malandro
cheio de ginga e bem humorado, enquanto ele é o eterno mocinho justiceiro.
Um dos primeiros
trabalhos em cinema foi justamente o de ator em As Mulheres Amam por Conveniência, filme dirigido por Roberto Mauro
e citado na introdução deste trabalho. É a história de um técnico de cinema
abandonado pela atriz em favor de um fazendeiro, e que dando a volta por cima,
torna-se diretor consagrado e reconquista a mulher. “Naquela época eu achei o
filme razoável. A ideia do Roberto era fazer um drama em cima de um caso
verídico que aconteceu a um amigo dele. Ainda nem se pensava em
pornochanchada”.
Mas e o final, com o
rapaz carregado em triunfo...?
“Aí acho que deve ter
entrado a fantasia, ele deve ter fantasiado o final. Então o drama foi esse. Eu
também fantasio nos meus filmes. Pego esses casos que acontecem por aí, casos
verídicos, alguns até pego no DEIC e me baseio neles. Agora, tem que fantasiar,
porque o que aconteceu realmente não funciona em cinema”.
E o Lúcio Flávio do Babenco?
“Aquilo está muito
fantasiado...”
O esquema de produção
de Tony Vieira é econômico e rentável o suficiente para continuar suas
atividades. Acompanha de perto as reações do público frente aos filmes, e em
função dela é que procura nortear seu trabalho. Mas por isso garante o sucesso.
“Vou dar um exemplo. A
pior fita, a fita mais ordinária que eu já pude fazer foi Sob o Domínio do Sexo. Nesta fita eu tinha só 25% e foi feita em
duas semanas, com catorze latas de negativo. Todo mundo na pior. Eu não tinha
dinheiro, estava começando e foi tudo no sufoco...e foi a fita que mais rendeu,
que mais deu o que falar. Tem até uma cena em que apareço dizendo “corta” e eu
peguei aquilo e dublei outra coisa: ‘segue em frente’. No fim foi o maior
sucesso, deu muito dinheiro. Então você vê, quando a gente pensa que sabe das
coisas...depois eu melhorei, me aperfeiçoei, mas não fiz o mesmo sucesso de Sob o Domínio do Sexo. Quem pode
explicar isso? Ninguém”.
Em situação mais
sólida, pelo menos financeiramente, está a produtora de David Cardoso (Dacar),
situada a alguns quarteirões da rua do Triunfo. Traz em seu currículo uma série
de filmes bem sucedidos: na primeira fase de sucesso, que incluí A Ilha do Desejo, Amadas e Violentadas, contou com a colaboração decisiva de Jean
Garrett; em junho de 1980 David voltou a bater recorde de renda no cine Marabá,
uma das salas prediletas dos produtores da Boca. Localizada num ponto central
da cidade (Av. Ipiranga quase esquina com São João), é com certeza a sala de
maior renda média em todo país. Ali, A
Noite das Taras atraiu verdadeiras multidões e confirmou definitivamente a
vocação empresarial do “James Bond dos Pantanais”, como alguns o chamam.
Atuando dentro dos limites precariamente demarcados da atual fase de
liberalização da censura, o filme nos apresenta situações explícitas de sexo,
condimentadas com cenas de lesbianismo, “fellatio”, etc...David cursou Direito,
tirou brevê de piloto e encenou peça de muito sucesso junto ao público gay (ele
aparecia praticamente nu). Periodicamente viaja ao exterior para se atualizar.
Exibe ternos bem cortados, num inconfundível estilo ostentatório de quem
precisa – a todo custo – se afirmar. Apoiado por empresários de São Paulo ou
órgãos oficiais do Mato Grosso, exibindo em troca a paisagem do seu Estado,
David tornou-se – interpretando o mocinho puro, forte, solidário e irresistível
para as mulheres – uma marca de inegável sucesso no mercado. Tanto que
frequentemente se confunde o ator/produtor com os personagens que interpreta. E
a própria Dacar trata de misturar tudo.
A sinopse de 19 Mulheres e 1 Homem o demonstra:
“Enquanto David Cardoso
vai lutando com os bandidos, os aviões vão pousando e resgatando as
universitárias que conseguiram escapar daquele pesadelo tão intensamente
vivido”. Vale o registro: o personagem tem o nome de Rubens.
Cláudio Cunha e Jean Garrett são outros nomes na galeria dos bem sucedidos. O primeiro, após um período de hesitação entre os negócios do posto de gasolina e as coisas do cinema, decide-se pela segunda atividade, onde obteve alguns êxitos expressivos de público: Sábado Alucinante, aproveitando a onda discoteque, Amada Amante e Vítimas do Prazer, organizando um esquema de apoio em torno do elenco formado por gente da TV – que lhe garante divulgação na revista “Amiga”. Posteriormente, associa-se a um grupo produtor e distribuidor, a Brasil Internacional Cinematográfica, que lhe garante uma infra-estrutura apreciável para viabilizar seus projetos.
Jean Garrett cumpriu
trajetória extensa. Foi ator, assistente de produção em filmes de José Mojica
Marins (Zé do Caixão), assistente de direção, diretor dos primeiros sucessos de
David Cardoso, até sentir-se seguro para utilizar sua inegável habilidade em
projetos próprios, o lhe rendeu bons resultados. Basta lembrar Excitação, Mulher, Mulher e A Força dos
Sentidos.
Textos utilizados pelas
produtoras para promoção de alguns filmes:
“Mulher, Mulher conta a história de uma viúvas recente que parte
para experiências sexuais as mais variadas, na tentativa de realização total e
plena. Do arquivo de seu falecido marido, um psiquiatra, extrai as neuroses e
fantasias dos relacionamentos mais diversos e dos estímulos sexuais mais diversificados.
O lesbianismo, o masoquismo, o sadismo, a masturbação e até as taras por um
animal de estimação, um cavalo, são vividas por Alice, o personagem central, em
sua plenitude e numa linguagem direta, onde a câmara, despreocupada com a
censura, documenta tudo sem nada encobrir, sem cortes, truques ou artifícios
cinematográficos”.
(Mulher, Mulher – direção: Jean Garrett, MASP Filmes, 1979).
“Ao perpetuarmos e
imagens cinematográficas os feitos heroicos de antepassados, estamos
demonstrando porque nos orgulhamos de ser brasileiros”.
(O Caçador de Esmeraldas – produção: Oswaldo Massaini, Cinedistri,
1979).
“...19 universitárias
após economizarem um ano, tentam alugar um ônibus para uma excursão de férias
ao Paraguai...Auxiliado por dois meninos, David...consegue através de um rádio
transmissor acionar seus amigos pilotos do Aero Clube, ao mesmo tempo que
simula uma fuga para afastar os homens da fazenda, permitindo que os aviões
pousem e salvem as jovens. Desta maneira, temos a mais espetacular sequencia que
o cinema brasileiro conseguiu produzir e colocar nas telas, com a participação
de quase vinte aviões e pilotos...”
(19 Mulheres e 1 Homem – direção: David Cardoso, Dacar, 1977)
“O elenco feminino
deste filme foi formado com estudantes universitárias (sic) que nunca
participaram de filmes, mas desempenharam seus papéis, tão perfeitos como as
grandes atrizes.
Sinopse: Numa noite,
uma discoteca de São Paulo foi atacada por uma quadrilha que tinha planos para
traficar meninas para o exterior. Ameaçando todos os jovens, tirando mais de
uma dezena de garotas, levando-as e aprisionando-as em um casarão abandonado.
Passados alguns dias, foram colocadas em um caminhão-baú tomado rumo da Baixada
Santista. Na Serra do Mar o caminhão foi atacado por uma quadrilha onde
formaram um campo de batalha e durante este tiroteio algumas das meninas foram
feridas mortalmente. Numa tarde a quadrilha juntamente com as meninas estava
para sequestrar um veículo às margens da Via Anchieta para leva-las até o
Paraguai, mas como os homens do Esquadrão já estavam na captura dos
traficantes, onde travaram violento tiroteio, fizeram dos traficantes uns
presuntos (sic) e outros presos. Trazendo as meninas para o Palácio da Justiça
e em seguida devolvidas para seus familiares”.
(Tráfico de Fêmeas – direção: Agenor Alves, Astron Filmes, 1980).
A leitura dos textos é
elucidativa. Ela indica não só a variedade de concepções presentes no conjunto
da produção da Boca, como também traduz o imaginário próprio de cada filme, o
subjacente processo alucinatório, claramente expostos nos press-releases enviados
à imprensa. O primeiro exemplo nos traz o tratamento atualizado, contemporâneo,
a suposta perda de preconceitos em favor daquilo que Foucault chamaria de
positivismo decente. Em seguida vem o cinema-cívico de Oswaldo Massaini, que
não dispensa os ingredientes do velho didatismo ginasiano. David Cardoso marca
presença pela ostentação do novo rico. 19 Mulheres
e 1 Homem se define pelo excesso de mulheres – quase vinte em generosa
exposição anatômica – de lutas, explosões, de sadismo bandidal, etc. O congestionamento
de situações transforma-se em densidade dramática. A caracterização tosca de
personagens – universitárias em viagem de turismo ao Paraguai vivem emoções no
pantanal – se transfigura em elemento de excitação sexual pois, a cada reação
caprichosa das moças, corresponde um castigo exemplar imposto pelos meliantes.
Com total apoio da plateia presente nos cinemas populares.
Tal reducionismo – as
universitárias são mulheres mal acostumadas pela falta de um pulso firme – nem
chega a ocorrer em Tráfico de Fêmeas. Aqui, a total ausência de recursos
financeiros e humanos levou a uma manobra extra-cinematográfica ingênua, hoje
em dia, pelo uso abusivo que se faz dela. Ao afirmas no texto de Tráfico...que o “elenco feminino desse
filme foi formado por estudantes universitárias que nunca participaram de
filmes, mas desempenharam seus papéis tão bem como as grandes atrizes” o que se
pretende, além de insentar as moças pelos tropeços de interpretação, é misturar
personagem como intérprete, no intuito de confundir o espectador. “Aquilo que
se passa na tela ocorreu de verdade”.
As “estudantes
universitárias” a que refere o texto de Tráfico
de Fêmeas, são pessoas atraídas por anúncios convidativos, publicados com
frequência nos jornais da cidade. A Astron Filmes e outras empresas,
apresentam-se aos incautos oferecendo oportunidades para ingresso na carreira
artística através do cinema. O interessado paga a matrícula, as fotos de que
necessita para um estudo pormenizado de seu tipo e finalmente desembolsa mais algum
dinheiro na formação de ator/atriz. Para se transformar, ao invés do artista,
em mão-de-obra gratuita, contribuindo para reduzir ainda mais os custos de uma
produção já barateada pelos acordos já firmados com boates, bares,
transportadoras, hotéis, etc. Concluído o filme, ele é geralmente vendido a
preço fixo, e, com o pequeno lucro obtido, a produtora prepara-se para nova
arremetida em futuro próximo.
Agenor Alves e Tony
Tornado, sócios na Astron Filmes, por ocasião do Tráfico..., não chegam sequer
a lances originais. São inúmeros os exemplos de filmes realizados em passado
segundo o mesmo figurino. Afinal, não mesmo José Mojica Marins (Zé do Caixão)
escapou da síndrome das academias de intepretação. Se existe surpresa hoje em
dia, ela fica por conta do caráter extemporâneo da proposta, numa época em que
as condições de produção na Boca se distanciam cada vez mais do amadorismo,
como argumenta J. Santana em sua coluna diária De Olho na Boca, publicada em Notícias
Populares. Aproveitando a fórmula consagrada pelos colunistas de TV,
Santana criou sua seção em junho de 1979 e nesse espaço, entre uma crônica e
outra, dá notícias sobre a produção, divulga novidades, promove pessoas (ao
falar insistentemente de algumas) e conta algumas fofofcas, estabelecendo uma
comunicação entre os cineastas e o público.
Para ele, além de
outros prejuízos, produções como Tráfico...terminam
por ser nocivas a toda a comunidade cinematográfica, na medida em que ligam o
cinema a situações que resvalam o trambique. “O passado”, diz Santana, “será a
concentração, o número reduzido de empresas realizando filmes bem acabados e
mais empenhados”.
A Boca evoluiu, e seus
porta-vozes procuram, na atualidade, difundir uma imagem de profissionalismo
onde não existiria mais lugar para mocinhas ingênuas e dispostas a tudo por uma
aparição momentânea. O tempo agora seria outro, a era dos profissionais, das
atrizes reconhecidas nacionalmente como Aldine Muller ou Helena Ramos. Atrizes
que durante anos a fio mal abriram a boca para algum diálogo, em razão da
compulsoriedade da exposição anatômica, hoje em dia discutem salários, e exigem
um tratamento à altura de suas famas. Atrizes que conseguem, como afirmou
Galante referindo-se a Convite Ao Prazer,
100 ou 250 mil cruzeiros por filme.
Publicado originalmente
em O imaginário da Boca, por Inimá
Ferreira Simões. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de
Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre
Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos, 6)
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