O Imaginário da Boca parte V:
conclusões
conclusões
“Cinema em Close-Up tem os pés plantados na realidade de nosso
cinema. Sua leitura foi recomendada para os alunos da USP”.
Paulo Emílio Salles
Gomes – professor de cinema brasileiro/USP
“Sua carta, representa
para nós, o reconhecimento oficial de Cinema
em Close-Up. Muito obrigado pelo apoio”.
(Seção “Cartas na mesa”
– Cinema em Close-Up, nº 10/1976).
Por Inimá Ferreira
Simões
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
A resposta da revista à
carta de Paulo Emílio, ultrapassa o mero formalismo para revelar, ainda que
obliquamente, um tema tão irredutível quanto angustiante para a comunidade
cinematográfica da rua do Triunfo e adjacências, e que fica claramente
enunciado através da expressão-chave, reconhecimento oficial.
Que não se exijam
definições, nem contornos exatos para esta expressão. Ao considerar a palavra
de Paulo Emílio uma manifestação de reconhecimento oficial, a revista demonstra
desconhecimento acerca da existência de correntes de pensamento divergentes, e
comete assim o pecado da generalização indevida. Tal viés resulta, na verdade,
de uma postura defensiva, de uma inferioridade em busca ansiosa pela
legimitação oferecida pelo erudito, em detrimento de seu aliado natural, o
grande público.
Como o reconhecimento
oficial é servido em doses homeopáticas e a parcimônia é a condição fundamental
para manter o prestígio de autoridade, de vez em quando, algum profissional é
premiado. É o caso de Jean Garrett, hoje considerado pela crítica um cineasta
confiável. Em função disso, a Boca elabora à sua maneira e para uso interno, a
figura do self-made-man local. Esses personagens paradigmáticos, que se chamam
Antonio Polo Galante, David Cardoso, Jean Garrett ou Cláudio Cunha, constituem
os exemplos vivos para aplacamento das angústias locais, lembrando a todos que
o sucesso financeiro existe, que é confortante e possível. Nesse contexto de
fragilidade, não é de bom tom criticar algum filme produzido ali.
Principalmente – gafe suprema! – se na argumentação forem citados Xica da
Silva, Dona Flor ou Dama da Lotação, como exemplos do bom cinema brasileiro. A
mágoa aflora de imediato e deflagra uma onda agressiva contra o que consideram
tratamento do produto local. Bem feitas ou não, pornochanchadas ou não, o fato
é que as lições desses “bons filmes brasileiros” frutificaram entre os próprios
profissionais da rua do Triunfo. David Cardoso, por exemplo, tratou logo de
rechear seus filmes com atores de renome e toda uma parafernália tecnológica, dentro
dos padrões brasileiros é claro. Jean Garrett, mais recatado, permaneceu ao
nível da encenação, cuidando do acabamento, caprichando na cenografia e
transformando cada ambiente em sala de antiquário. E parece que valeu a pena o
esforço, pois essas iniciativas provocam a admiração entre seus pares, ao mesmo
tempo que têm um efeito psicológico positivo junto ao espectador, que acredita
estar frente a filmes “bem feitos” e “bem acabados”...
Mas é em relação ao
comportamento da crítica especializada que o caráter paradoxal do comportamento
apresentado pelos profissionais da Boca alcança sua expressão mais acabada. É
claro que a imprensa comete seus equívocos, seja por má consciência ou mesmo
por desconhecer a realidade elementar da produção cinematográfica nacional, mas
o que importa aqui é perceber qual o sentido do sentimento de injustiça que
transparece nas ações e palavras dos profissionais de cinema. Um fotógrafo
perguntava: será que eles, da crítica, sabem das nossas condições de trabalho?
Sabem o que significa fazer um filme no prazo de 15 dias? Em geral, o
profissional considera que se a crítica é “contra mim”, ela por extensão é
também “contra a Boca”. Na hipótese do comentário favorável, então a crítica
acertou e por isso “está comigo”, diferenciando-se de meus pares, ajudando a
promover a carreira do filme.
Entre uma e outra
situação, nunca se discute o papel da crítica, o porquê dela existir sob essa
forma, qual a sua pertinência ou qual seria uma formulação mais adequada ás
condições brasileiras.
É o pragmatismo, que
permite superar todos esses “aparentes” paradoxos, que conduz a produção da
Boca pelos caminhos da rentabilidade e da atualização constante com as
“novidades” cinematográficas.
Ainda no primeiro
semestre de 1980, quando surgiram os primeiros indícios da liberação do sexo
explícito no cinema, os sismógrafos mais sensíveis detectaram um movimento
trepidante na Boca, provocado pela reacomodação de suas camadas aos novos
tempos das salas especiais e do sexo escancarado. Essa conduta pragmática
impede que o espaço duramente ocupado no decorrer da década de 70, seja
entregue de bandeja aos bagulhos de origem estrangeira à cata de novos
mercados. Mesmo que a Boca adote as novas premissas do “realismo sexual” – e
isso deverá vir com toda certeza – não ocorrerão alterações substanciais no seu
sistema de relacionamento com o público, cujo contingente mais significativo é
aquele que frequenta as grandes salas do centro tradicional de São Paulo.
A REPÚBLICA DO MARABÁ
Entre a Avenida São João, Largo do
Paissandu, Praça da República e vizinhanças, acotovelaram-se dezenas de salas –
Cines Ouro, Paissandu, Árcades, Rio Branco, Windsor, Art-Palácio, Ipiranga e
outras – onde se destaca o velho Marabá, hoje o campeão nacional de renda
média. Esses cinemas constituem o conduto básico por onde escoa o grosso da produção
da Boca. Marcos Rey, romanista e autor de inúmeros roteiros filmados, na sua
“ficção-memória” publicada na revista Oitenta, observa que “fila no Marabá diz
mais que qualquer borderô. Se ela, no dia da estreia, chegar a vinte metros, a
fita se paga. Se alcançar a praça da República é sucesso”.
O ambiente nesses cinemas – principalmente
nas sessões vespertinas, quando a plateia é composta majoritariamente por
desempregados, office-boys, comerciários, estudantes, soldados e homossexuais
na batalha diária – é extremamente animado e ruidoso, em franca oposição ao
silêncio habitual das salas elegantes da Av. Paulista e zona sul da cidade.
Lembra a atmosfera densa do velho teatro de revista, que após um período
esplendoroso nos anos 50, vive hoje uma fase de inevitável decadência.
Tanto no teatro de revista como nessas
salas centrais da cidade, é possível assistir a dois espetáculos. Um que ocorre
no palco/tela e outro que se desenvolve junto às cadeiras. A cada estímulo
visual apresentado na tela, corresponde imediatamente um comentário – quase
sempre de maneira jocosa. O tom de informalidade que marcava e ainda marca o
nosso teatro de revista, foi o responsável pela comunicação fluente entre
artista e público; aliás tão fluente que em inúmeras oportunidades estabeleciam-se
diálogos inesperados entre uma vedete e o espectador mais afoito, com vantagens
nítidas para a artista. Tal risco, o do espectador se sentir ridicularizado
frente aos outros e eventualmente vem-se compelido a bater em retirada, não
ocorre nas salas de cinema. É fácil entender porque. Além da impossibilidade
física de um confronto verbal e eventualmente ver-se compelido a bater em
retirada, não ocorre nas salas de cinema. É fácil entender porque. Além da
impossibilidade física de um confronto verbal, adiciona-se o “fator sala
escura” decisivo para a descontração e impunidade.
Nesses anos todos, o que se viu foi uma
massa de espectadores que grita, fala, ri, “orienta” o galã empedernido,
debocha da virgem resistente, caçoa do homossexual cheio de salamaleques e
delira quando o garanhão irresistível “derrota” todos os esquemas defensivos da
fêmea. E é fundamental que o herói corresponda ás expectativas, caso contrário,
numa rápida operação, invertem-se os sinais e o garanhão passa a ser desprezado
e merecedor da mais solene vaia. Como depositário de emoções e projeções
individuais, tornadas coletivas no ambiente da sala de cinema, o personagem,
tal qual o jogador de futebol em dia de clássico, não pode falhar. Entre o gol
feito (ou a mulher que se rende incondicionalmente) e o gol perdido (falta de
eficiência ou habilidade para “ganhar” a fêmea e confirmar a sua
superioridade), está a distância que separa o êxito do fracasso.
O aficionado pela pornochanchada (ele
existe sim!) se sensibiliza ao perceber do outro lado, por detrás
daquelas imagens projetadas na tela, alguém que compartilha o mesmo código e
que possui habilidade suficiente para enfiar cada cena no seu “lugar
privilegiado” e no momento exato, evitando frustrações desnecessárias. De maneira
semelhante ao fãzoca do faroeste americano, que preencheu suas fantasias com
imagens na tela, o espectador do Marabá é conivente com a liturgia
desencadeada, cúmplice do garanhão e solidário com as soluções dramáticas.
Como naquele papo de bar, com aquelas
velhas piadas recicladas e relatos de conquistas, atribulações com maridos e
pais enraivecidos, a pornochanchada exige de que se dispõe a assisti-la, uma
adesão incondicional. Adesão liberta de critérios de veracidade (para efeito
dos papos de boteco) ou de verossimilhança (para os filmes).
O fato do desempenho sexual de Lírio –
personagem central de O Bem Dotado – desconsiderar os limites
da fisiologia humana, não tem a menor importância. Da mesma forma que o
revólver de seis tiros, que dispara oito ou nove vezes sem recarregar, nunca
afugentou o “curtidor” do faroeste. Nesse contexto, o desenvolvimento da trama
ou a originalidade da história contada importa pouco. O que vale é
histrionismo, a versão mais rica em detalhes – obtida a partir de uma decupagem,
que frequentemente “esquarteja” os corpos para tratamento fetichista – e o
corpo da mulher nua apoiado na oposição libertinagem/puritanismo, como ilustra Elas
São do Baralho. Desta oposição, do princípio dos contrastes e das
expressões de duplo sentido, é que boa parte dos filmes retira sua pimenta.
O
Bem Dotado (Homem de Itu)
O
Bem Dotado conta a história de um matuto ituano “descoberto”
ao acaso por duas grã-finas da capital que fazem compras na cidade. Numa
butique conhecem Lírio, o bem dotado, e sua condição excepcional, que vai
torna-lo o centro de uma série de peripécias sexuais, envolvendo
preferencialmente mulheres da alta sociedade paulistana. Ainda que se possa
estabelecer algum parentesco com o romance picaresco, a verdade é que a
história apenas se aproveita de um tipo extravagante para desenrolar uma série
de sketches, piadinhas de bar, aquelas que por mais que sejam contadas e
recontadas – em estágio de desgaste total – ainda conseguem obter alto IBOPE
junto à clientela masculina.
O filme, como outros do
gênero erótico, se vale de casuísmos para montar o desenvolvimento da trama.
Não há necessidade de algo concatenado ou que justifique cuidadosamente. O
encontro de Lírio com as madames ocorre ocasionalmente. A descoberta de seu
traço inconfundível, o órgão sexual de dimensões inusitadas, também. Após a sua
idade para a cidade grande, desfilam na tela carros de luxo, casas com piscina
e quadras de tênis, mordomos uniformizados, trajes noturnos sofisticados,
enfim, aquilo considerado pertinente ao universo do milionário paulistano.
O
Homem de Itu é o nosso super-herói. Enquanto na
versão americana op homem-de-aço prefere voar, carregando sua namoradinha, o
bem dotado, malandro brasileiro, “sabedor das coisas”, prefere mostrar seus
poderes no espaço limitado dos lençóis. Nele se manifesta uma potência
ilimitada, acompanhada de uma configuração insólita. De caipirão ingênuo e meio
bobo se transforma num articulado homem da cidade, vestindo roupas bem
cortadas, e portanto uma dose de malícia que lhe assegura bom contato com as
fêmeas, que tanto fazem juz à mística da instituição feminina, que correm
sôfregas atrás dele. Trajetória semelhante à do rapaz, percorreu boa parte do
público que frequenta com regularidade os filmes rotulados de pornochanchada,
formando um contingente razoável de paulistanos de primeira geração. Muitos
tomaram o mesmo, sentido campo-cidade. Eis a identificação. O público – irônico
né? – ri da ingenuidade do caipira e “curte” deliciosamente as peripécias do
urbanoide.
Numa determinada
sequencia, a mulher rica e passional (Marlene França) está com Lírio (Nuno Leal
Maia) quando inesperadamente chega o marido. Ele entra em casa enquanto uma
música sugere suspense. Para no hall, olha para cima onde ficam os quartos
e...desce até a cozinha para beber um copo de água. Volta ao hall, e após uma
breve hesitação começa a subir as escadas. Neste instante há um corte, e vemos
o casal dentro do quarto, lá mesmo onde são surpreendidos com a chegada
inesperada do marido. O público torce pelo herói. Afinal houve uma preparação,
um encaminhamento para o clímax através da música, da montagem que, se tem por
finalidade aumentar a expectativa quanto à solução do episódio, não chega a
diminuir a certeza de que Lírio vai se sair bem da enrascada. Caso contrário, o
filme se “estragaria”. Pois bem, o marido entra, empunha um revólver e diz
seriamente: “vou vender, eu não uso mesmo”. Delírio absoluto na plateia.
Essas imagens e tantas
outras, vistas com alta frequência nos filmes originários da Boca, nos levam a
concluir pela prevalência das soluções mágicas, seja através do prêmio
lotérico, do casamento com viúva rica ou ainda por meio de alguma
característica inequivocamente distintiva em relação ao grupo social. Bem ao
contrário, pelo menos à primeira vista, do que preza a ética do faroeste onde o
que se testemunha é a premiação do esforço individual, o castigo inevitável
para o transgressor das normas, nas imagens que subsidiam o velho sonho
americano. O esforço individual que nos mostra o cinema americano – sem ser o
privilégio do faroeste – é o instrumento básico para a ascensão social,
reservando ao indivíduo médio o papel de herói virtual dentro do sonho
igualitário que não encontra, de maneira alguma, ressonância entre nós.
Se o cinema é o sonho
coletivo, a projeção de toda uma comunidade, o estudo da dramatização e dos
papéis sociais dos personagens da pornochanchada e outros filmes provenientes
da rua do Triunfo, deve ser elucidativo para o entendimento das fantasias e
projeções que compõe a auto-imagem dos próprios cineastas. Da mesma forma que
Lírio em O Bem Dotado, Rubens (David
Cardoso) em 19 Mulheres e 1 Homem, os
tipos gaiatos interpretados por Heitor Gaiotti ou ainda a própria encarnação do
herói “Boca do Lixo” que é Tony Vieira, são personagens muito marcados por
características fortemente arraigadas no imaginário popular, em relação às
quais seus criadores, os cineastas, não possuem a distância que querem
aparentar. Embora, nas entrevistas, valorizem explicitamente o esforço, o trabalho,
o estudo, o comportamento ético, como fatores responsáveis pelo sucesso, os
profissionais de cinema se projetam num tipo bem marcado de herói, cuja atuação
se reduz ao exercício da sagacidade ingênua e à prática da zombaria – em linha
com o mito de Pedro Malazartes, o herói brasileiro por excelência e portador de
imenso carisma para o grande público.
Mas a zombaria e a
sagacidade, de acordo com o padrão malazarteano, são na verdade as armas de
quem não tem pretensões de modificar o mundo social. O que vale é sobreviver da
melhor maneira possível e nisso consiste a grande semelhança estrutural entre o
comportamento dos cineastas e seus personagens.
A maioria dos cineastas
e técnicos formou-se na prática, na “universidade da vida” – como gosta de dizer
um veterano maquinista. Talvez isso explique, ao menos parcialmente, a ausência
de um senso crítico mais acurado e consistente. A compreensão crítica do
próprio trabalho ameaçaria a segurança de cada um. Torna-se então necessário
manter a todo custo uma aparente harmonia, como maneira própria de enfrentar o
mundo exterior, este sim, hostil e a exigir muita atenção e energia. A ocasião
para o enfrentamento pode surgir com a presença de um pesquisador de cinema, de
um jornalista desconhecido ou até mesmo de um recém-formado no curso de cinema
da Universidade. O fechamento dessa comunidade em si mesma – cujo sintoma mais
evidente é a síndrome da orfandade – é defensivo, mas não tático. A Boca não é
uma entidade em busca da formulação de seus próprios códigos e esquemas de
pressão, embora os realize na prática. A atitude defensiva, reconheçamos, não é
muito estremada para quem desconfia que a história do cinema brasileiro vai
passar a muitos quarteirões da rua do Triunfo. Da mesma maneira como evitou as
chanchadas há 30 anos atrás.
A prioridade neste
território é demonstrar, com todos os sinais disponíveis, a competência em
ganhar dinheiro, a única forma entrevista por eles de obter prestígio e
destaque pessoal, deslocando-se do anonimato em direção a uma personalidade
própria e ativa. A “síndrome da orfandade” atinge em cheio o profissional da
Boca que “vê” os cineastas de fora do seu território obtendo as benesses do
Estado, a simpatia da crítica e outras vantagens. Esta constatação orienta a
opinião dos profissionais, de maneira muito clara em relação a alguns temas:
- A questão da cultura
ou do filme cultural: é de responsabilidade do governo ou de profissionais e
empresas que podem se dar ao luxo de mobilizar recursos, investir em projetos
cujo retorno possa ser problemático. Filme cultural (filme histórico,
documentário, ou qualquer trabalho de comercialização problemática) não faz
parte de suas prioridades. O que conta é divertir, oferecer entretenimento e
não levar prejuízo...Assim, numa visão dicotômica, uma noção de cultura aparece
totalmente desvinculada da diversão, da alegria, do lucro, etc.
- O crítico: a crítica
notoriamente hostil é vista como reduto de filhinhos de papai, de gente
despreparada ou cineastas frustrados, que compensam suas amarguras detratando
os outros.
- Subir na vida: sobe
na vida ou tem sucesso na carreira quem se dedica com afinco a tal empresa.
Mesmo que para isso seja preciso associar-se a exibidores e distribuidores para
obter vantagens no mercado, mesmo que pagando mal à equipe e exigindo o máximo
no tempo mais reduzido possível.
O fracasso é também uma
prerrogativa individual e deve-se a fatores como resistência ao aprendizado,
não reconhecimento dos movimentos de gosto, dificuldade em atualizar-se,
descuido na formação pessoal, falta de jeito mesmo, ou até excesso de bebida.
Vitória ou fracasso são expressão de características individuais e o fracassado
reconhece, neste contexto, sua inaptidão.
Para entender melhor
esse universo basta citar o processo de seleção de equipes, cujos critérios informais
favorecem “quem bebe pouco” ou não bebe (e que é mais flexível ás imposições do
produtor), em prejuízo do que cobra mais pelo seu serviço ou tem fama de “bom
copo”.
Nunca se pergunta ou se
tenta entender porque se bebe muito, por exemplo, apesar de algumas explicações
à mão: o técnico que trabalha ás vezes em jornadas superiores a 10, 12 horas
seguidas, em condições frequentemente ruins (chuva, sol inclemente, frio), sem
roupa protetora ou seguro contra acidentes, apela para a bebida.
- A evolução do gosto:
é tida como um processo natural, que não se explica porque é eterno, sempre foi
assim. Galante entende que a fase atual, bem ao gosto do início da década é o
“papai-e-mamãe” entre mulheres. Por isso, o fundamental é estar ligado às
novidades e novas soluções e apenas restringir-se a administrar com eficiência
os novos dados e elementos impostos pelo mercado.
Nesse contingente
formado por ex-malabaristas, ex-balconistas, ex-internos da FEBEM, ex-jóqueis,
ex-demonstradoras de perucas Kanekalon, etc...o caso de Rajá de Aragão é
exemplar. Ele foi jóquei, desenhista, aventurou-se pela África, Europa, Estados
Unidos e México, ficou preso na penitenciária do Estado, escreveu sobre cinema
em jornal de São Paulo e foi, nos últimos anos, um dos roteiristas mais
filmados de São Paulo. Pelo menos 25 roteiros em três anos. É uma pessoa que se
vê além da regulamentação burocrática da vida:
“O personagem no cinema
brasileiro geralmente não tem vida própria. Ele transmite ao espectador a sua
dor, a sua alegria, a sua satisfação enfim. Na cena de espancamento de Chico,
no meu filme O Dia das Profissionais, o lance é tão violento que o espectador
tinha a impressão de estar sendo espancado também. É onde o espectador vive o
drama daquele personagem. Então, é necessário que o diretor coloque a
prostituta com seu problema, e que o sujeito comece a perceber... ‘mas espera
lá’. Agora, quando faço uma fita determinada, o que não admito é personagem
vazio; ele tem que ter alguma razão para fazer aquela coisa. Alguém tem que
pesquisar a mente desse personagem para justificar as razões por que ele faz
aquilo. Também não vai sair defendendo o personagem, fazendo o Lampião sempre
mocinho, porque ele era o grande f.d.p., entende? Porque todo ladrão, toda vez
que vai para o cinema é herói, pombas! Herói o c..., pombas! Vivi no meio
deles. Tinha que ser fuzilados, a maior parte deles, como vários que eu
conheci. Cometem atos que não têm recuperação, e ainda vai dar de comer para um
cara que está gordo, jogando futebol na cadeia? Não, tinha que ser executado
sem processo, sem nada. Então, toda vez que se adapta a vida de um criminoso
para o cinema fazem ele um herói, cheio de justificativas, foi porque a polícia
espancou o pai, não sei o que mais, etc. Uma série de coisas, razões sociais.
Ora pombas! Se razões sociais fizessem de um sujeito um marginal, todo favelado
tinha que ser marginal. E quase todo brasileiro é favelado!
A grande cartada do cinema brasileiro chama-se Brigite Monfort; personagem do livro de bolso mais vendido do Brasil, uma espécie de 007, uma agente da CIA...na capa vem escrito Lou Carrigan, mas é escrito aqui mesmo pelo Hélio do Soveral. Brigite Monfort talvez fosse a grande cacetada do cinema brasileiro; está aí, debaixo dos olhos de todo mundo e o produtor brasileiro não vê, ele prefere fazer O Bem Dotado, Os Depravados, Reformatório das Depravadas e por aí afora. O produtor diz que o que dá dinheiro é mulher nua. Aí você assiste a uma fita do Sam Packimpah (Comboio), com 85 caminhões desfilando entrada à frente e você me diz – o sujeito quer ver mulher nua ou ver caminhão? O público quer ver uma boa fita e não simplesmente mulher nua.
- Eu aprendi a escrever
sozinho; aprendi a fazer roteiro sozinho. Tentei música e foi a mesma coisa,
você vê, sou letrista e faço música intuitivamente, quer dizer, de ouvido. O
que eu aprendi foi por mim, mas eu trago do útero – assim falando pode até
parecer cabotino – um QI alto! Eiu sou lay-out
man por questão de criação, não sou um grande arte finalista porque não
tive burilamento técnico. Mas a criação não me falta! Agora eu pergunto: qual o
ex-marginal do mundo que faz o que eu faço? Eu sou um caso excepcional. Não
sirvo de julgamento. Se eu, que até há quatro anos atrás estava num presídio, e
agora sou um profissional de cinema devidamente registrado, com vários
trabalhos que atestam o meu currículo, eu não posso me tomar por base...”
O indivíduo bem
sucedido, e aqui a história de Antonio Polo Galante é o melhor exemplo (de
garoto que cresceu no recolhimento de menores e chegou à condição de
produtor-símbolo, de homem de prestígio), ilustra a trajetória idealizada por
todos. O movimento de “sair lá de baixo”, sem crédito pessoal algum, e por seu
esforço chegar “lá em cima”, se restringe ao êxito comercial. Dele – do êxito
comercial – decorreriam todas as outras vantagens, como o respeito, a atenção
especial, o reconhecimento dos colegas, a admiração dos fãs, etc; mesmo aquele
que falha que não rejeita a concepção. Apenas introjeta o fracasso, sente-se
incompetente ou despreparado ou ainda sem chances para provar sua capacidade.
Ser bem sucedido na
carreira significa (atenção: As Mulheres
Amam p-or Conveniência) obter uma avant-première com todos se vestindo a
rigor. Ser bem sucedido é ser carregado pelos fãs. Ser bem sucedido não
dispensa – e isso é fundamental – o testemunho de alguém que compartilhou os
tempos difíceis ou que não acreditou nos eu potencial. Caso tenha sido uma
mulher, que o trocou por outro homem mais bem sucedido na ocasião, a “vingança”
torna-se então completa. Uma solução de acordo com a filosofia estampada
naqueles plásticos que se veem em taxis ou asfixiados em padarias e bares, onde
se lê: “Que Deus dê longa vida aos meus inimigos, para que eles possam assistir
de pé à minha vitória”.
Pois é, a vida é uma
guerra, o dia-a-dia uma batalha, e os “outros” os meus inimigos...
Em As Mulheres Amam por Conveniência, a primeira parte corresponde às
filmagens onde o rapaz se vê abandonado pela atriz que preferiu ficar com o
fazendeiro que hospedou a equipe. Aqui temos um material baseado, segundo
depoimento de Tony Vieira, em um fato verídico. A solução final, se dá
fantasiosamente. Quer dizer: as dificuldades, os percalços na carreira, embora
sejam problemas reais, não compõe matéria dramática para os filmes. “É preciso
fantasiar, porque o que aconteceu realmente não funciona em cinema”.
Publicado originalmente
em O Imaginário da Boca, por Inimá
Ferreira Simões. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de
Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre
Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos, 6)
2 comentários:
PARABÉNS! matéria muito bem pesquisada, texto leve, fluido fácil de ler... Abraço
Documento histórico.
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