JULINHA
Por Almirante
Era criatura elegante, de
certa beleza, somente exagerando nos seus cabelos oxigenados. Atuava em
revistas de o interior, especialmente excursionando em circos e pavilhões,
mantendo-se em pensões de péssimas referências.
Em 1932 trabalhava em
dancings na Lapa, onde conheceu Noel, que lhe dedicou intensa amizade. Residia
na Penha, onde Noel inúmeras vezes pernoitou em um barracão, numa favela, sem
rua e sem número.
A paixão de Noel por Julinha
deu motivo à criação, inicialmente, do samba “Feitio de Oração”, aliás a
primeira produção ligada ao inspirado melodista Vadico:
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no
colégio
Sambar é chorar de
alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
Por isso agora
Lá na Penha vou mandar
Minha morena pra cantar
Com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba
Em feitio de oração.
O samba na realidade
Não vem do morro nem lá
da cidade
E quem suportar uma
paixão
Saberá que o samba então
Nasce do coração
A moradia, na Penha, tão
distante e cansativa, fez com que Noel conseguisse nova residência para Julinha
– uma pensão, nas proximidades da rua do Riachuelo. Durante várias semanas o “casal”
viveu em completa harmonia, mas Julinha descontrolava-se devido aos excessos de
bebida. Surgiram, sem demora, rusgas e brigas escandalosas, de que Noel se
apavorava, receoso sempre das notícias maldosas de certos jornais. A maneira
irregular de vida de Julinha, unindo-se a uns e outros, amargurava Noel. Daí a
criação do samba “Vai Para Casa Depressa”, melodia de Francisco Matoso:
Vai para casa depressa
Vai prevenir teu senhor
Que vim cumprir a
promessa
Que fiz, de possuir teu
amor.
Não quero ser um covarde
Volta pra teu barracão
Antes que seja bem tarde
Para salvarmos nossa
reputação
Se a mulher desequilibrada
Dois malandros que têm
fibra
Só há uma solução:
Para que brigar a toa?
Vou tirar cara ou coroa,
Com um níquel de tostão.
Se não bastar tirar a
sorte
E o amor fala mais forte
Sou o dono da questão;
Para o teu antigo dono
Tu vais dar teu abandono
Dando a mim teu coração
Em certa ocasião, sendo
dançarina do Cabaré Flórida, terminada desagradável cena, Julinha completamente
alcoolizada, cismou de afogar-se num pequeno riacho raso, existente no Passeio
Público...De outra vez, após atitudes ridículas, quebrou o violão de Noel, e
numa noite, quando levada à sua pensão, durante o trajeto, no automóvel de Pará,
Julinha discutiu sem cessar, aos berros, sempre irritada e embriagada; ao parar
o carro, saltou dizendo impropérios, batendo a porta com estrondo, sem admitir
explicações de quem quer que fosse. Na noite seguinte, Pará percorreu os pontos
em que Noel poderia ser encontrado; estava justamente no Café Nice,
despreocupado, palestrando com amigos. O motorista chamou-o, com reservas, e
deu-lhe esta informação que tornou Noel pálido e impressionado:
- Julinha foi levada pro
Pronto Socorro. Quis se matar...
Aterrado, Noel pediu-lhe
que o levasse ao Pronto Socorro, a fim de que êle, Pará tomasse todas as
informações possíveis. Lá chegando, Noel, nervoso, sem saltar do veículo,
aguardou a volta do amigo.
- Não houve nada. Ela
tomou um veneno qualquer, mas não morreu com isso. Era bebedeira...- disse Pará.
O resultado desse
episódio deu origem ao samba “Cor de Cinza”, em que Noel escreveu verdadeiro
relatório sobre o triste fato:
Com seu aparecimento
Todo o céu ficou cinzento
E São Pedro, zangado;
Depois um carro de praça
Partiu e fez fumaça
Com destino ignorado
Não durou muito a chuva
E eu achei uma luva
Depois que ela desceu
A luva é um documento
Com que provo o esquecimento
Daquela que me esqueceu.
Ao ver um carro cinzento
Com a cruz do sofrimento
Bem vermelha na porta,
Fugi impressionado
Sem ter perguntado
Se ela estava viva ou
morta.
A poeira cinzenta
De dúvida me atormenta,
Nem sei se ela morreu
A luva é um documento
De pelica e bem cinzento
Que lembra quem me esqueceu.
O amor de Noel por
Julinha foi realmente intenso e inspirou mais dois lindos sambas, de grande
sucesso; o primeiro, “Pra Esquecer”:
Naquele tempo
Em que você era pobre
Eu vivia como um nobre
A gastar meu vil metal
E por minha vontade
Você foi para a cidade
Esquecendo a solidão
E da miséria daquele barracão
Tudo passou tão depressa
Fiquei sem nada de meu
Esquecendo a promessa
Você me esqueceu
E partiu com o primeiro
Que apareceu
Não querendo ser pobre
como eu
E hoje em dia
Quando por mim você passa
Bebo mais uma cachaça
Com meu último tostão
Pra esquecer a desgraça
Tiro mais uma fumaça
Do cigarro que eu filei
De um ex-amigo que
outrora sustentei
O segundo samba marcou de
maneira indiscutível as referências existentes aos nomes de Penha e barracão. A
saudade, assim vincou a memória de Noel, cirando o extraordinário “Meu Barracão”:
Faz hoje quase um ano
Que eu não vou visitar
Meu barracão lá na Penha
Que me faz sofrer e até
mesmo chorar
Por lembrar a alegria
Com que eu sentia
O forte laço de amor
Que nos prendia
Não há quem tenha
Mais saudades lá da Penha
Do que eu, juro que não
Não há quem passa
Me fazer perder a bossa
Só a saudade do barracão.
Mas veio lá da Penha
Hoje uma pessoa
Que trouxe uma notícia do
meu barracão
Que não foi nada boa
Já cansado de esperar
Saiu do lugar
Eu desconfio
Que ele foi me procurar.
Publicado originalmente em ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1963.
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