O Porta-Voz da Abertura
Por Marlene Anna Galeazzi
Fotos de Frederico Mendes
Comparado algumas vezes
com o norte-americano Jody Powel – o porta-voz da Casa Branca -, Alexandre
Garcia esquiva-se dizendo que de concreto ele também se formou em
contabilidade. A verdade é que, sempre cm esse bom humor, Alexandre – desde quando
nasceu em Cachoeira do Sul até chegar ao Palácio de Planalto, onde se tornou um
dos homens do presidente – fez muitas coisas na vida, inclusive vender pastel
na rua e ser sequestrado pelos Motoneros na Argentina.
O mundo desse gaúcho de
1,82 m e 75 quilos tem hoje dois hemisférios: o do Palácio e o deu sua casa –
alugada de um amigo que está na Europa por Cr$ 16.400 -, à beira do lago, em
Brasília, onde ele mora sozinho e recebeu a repórter Marlene Anna Galeazzi, de
ELE ELA. Foi ali que Alexandre apresentou o mobiliário da casa como integrante
e símbolo de seu universo: na parede, uma tapeçaria asteca; na biblioteca,
livros e discos se misturando (algumas capas de discos autografados por artistas
“suas amigas”), livros de estratégia assinados pelo General Golbery; na parede,
uma espada “ganha num certo torneio em Toledo, Espanha, da mais bela morena da
Ilha do Governador já produziu”; um pôster da Plaza de Toros de Madri, com o nome
de Don Alejandro García ao lado de El Cordobés. O quarto é cheio de reproduções
impressionistas, trazidas do Jeu de Paume; uma luminária (um lampião), um
sininho japonês vindo de Quioto; no espelho do toucador, um letreiro: Sem
Censura. O banheiro ao lado é coberto por um tapete vermelho e peludo; a imensa
banheira de mármore foi feita para caber dois, certamente.
Muita coisa se pode dizer
de Alexandre Garcia, inclusive que ele casou três vezes, tem uma linda filha de
17 anos, escreveu um livro, plantou várias árvores e criou a fama que hoje já
se estende pelos quatro cantos do país: a de bom-de-cama, que ele, discreta ou
modestamente, nega no que – segundo a repórter – é desmentida pelas evidências.
Eis, portanto, o diálogo que se travou entre dois colegas de jornalismo.
EE-
Como foi uma grande marcha de Cachoeira ao Planalto?
AG- Você quer desde o
princípio? Vai ser uma chatice. Vou resumir com alguns retalhos de lembrança.
Tudo começou às 11 horas da noite de 11 de novembro, 11 meses depois de meus
pais terem casado. Mas, vamos lá: era o único a tomar mamadeira no jardim de
infância. O resto das crianças já tomava leite em copinho, mas só eu sabia
o que é bom. Meu pai tinha um restaurante, Ao Papito, mas faliu depois de dar
comida, durante 30 dias, a bancários em greve. Foi pioneiro do rádio em
Cachoeira, e depois instalou a Rádio Alto Taquari, em Estrela. Não foi muito fácil
para um locutor faz-tudo sustentar a família. Eu ganhava Cr$ 3,50 todos os
domingos – isso no fim da década de 40 -, para a matinê no Cine Guarani e o
chiclete. Era muito gozado pelos amigos, porque minha mãe me botava a enxugar a
louça e varrer a calçada.
Um dia, resolvi ganhar o
meu dinheiro, e passei a vender pastéis e sonhos da Padaria Diel, sob comissão.
Veja que bonito: vendedor de sonhos! As vizinhas cochichavam, escandalizadas,
quando me viam na rua, chinelinho e o cesto de sonhos. Em 30 dias, consegui
comprar os brinquedos que sonhava, e estavam tão distantes na vitrina do Bazar
Preussler. Fiz ponta em novela da Rádio de Estrela, e trabalhei como locutor da
Rádio Independente, em Lajeado, onde meu pai também trabalhou. Fui cabo no sétimo
Regimento de Infantaria, em Santa Maria – primeiro lugar no curso, ué! Fiz o curso
de contabilidade. Desculpe, primeiro lugar nos três anos do curso, com média 10
em Matemática e Português. Trabalhei como contador do Cine Coliseu, em
Cachoeira, onde meu avô em encaminhou na sua profissão: fui escriturário do Banco
da Província e depois entrei no Banco do Brasil – primeiro lugar no concurso,
sorry! Fui para Porto Alegre, fazer faculdade à noite. Fui presidente da aula
e, em 1969, do Centro Acadêmico.
E
o que conseguiu fazer como líder estudantil?
Consegui reduzir as anuidades
sem greve. Ora, se já estávamos pagando demais, ainda dar esta colher, e
livrá-los de nos dar aula, por quê? Quanto à classificação do vestibular, desculpe
de novo e, durante os quatro anos da faculdade, primeiro lugar. Eu estudava
mesmo! Naquela época, trabalhava de manhã no Banco do Brasil, à tarde estagiava
no Jornal do Brasil e, à noite, faculdade. Resultado acabei com tuberculose.
Posso
escrever isso? Está gravando...
Por que não? Ou só stress
curável na Suíça é chique publicar? Ou prefere o eufemismo idiota fraco dos pulmões?
Há, há, há ! É preciso encarar as coisas como elas são. Imagine o desespero de
você tentar se convencer de que não vai morrer em um dia. Põe aí: tuberculose,
mesmo. E, hoje, vê se aguenta os meus pulmões, em 200 metros, nado livre! Pois
bem, mas não parei. Uma injeção todos os dias, um ano de tratamento, e o mesmo
ritmo de estudo e trabalho. Ferro e ferro! Este corpo estava precisando de um
tempero, mesmo. No primeiro dia de JB, um depósito de explosivos foi aos ares,
com umas 10 pessoas despedaçadas. Meu primeiro trabalho foi contar os pedaços
de pés, fígados, miolos. Uma semana depois, fotografei a queda de um avião. Fui
o primeiro a chegar ao local e assisti à morte chegado e levando o piloto.
Depois, entrei na boleia de um carga-pesada, e acompanhei a soja gaúcha sendo escoada
por 600 quilômetros de estradas, até o porto. Deu um prêmio de reportagem. Aí,
como não havia ninguém por perto, o JB teve de me mandar a Montevidéu, em 17 de
junho de 1973, quando Bordaberry mandou os tanques cercarem o Congresso. Eu mal
tinha dois anos de jornal. E lá fui eu, sem um palmo de perspectiva diante do
nariz. No dia seguinte consegui entrevistar o presidente – e foi exclusiva. Deu
primeira página no JB de domingo, e garanti minha volta ao Prata.
Quando Perón morreu me
mandaram ajudar o Jayme Dantas, veterano e mestre em jornalismo. Como todo
grande homem, Jayme deu uma chance ao jovem que começava: inventou que tinha de
fazer uma matéria sobre safras argentinas e me deixou a sós com o cadáver de
Perón. E lá fui eu, contando para o Brasil que o General Anaya garantiria a posse
de Isabelita, e que as ruas de Buenos Aires choravam a morte do caudilho. A partir
de então, passei a ser enviado frequentemente à Argentina e ao Uruguai. No
Uruguai havia um velho general que me passava as notícias das reuniões secretas,
em coquetéis do Clube Militar. Falava muito rápido o espanhol, sua dicção era má
e o barulho atrapalhava. Lembro-me de quantas vezes saía correndo do Clube
Militar para o telex, com o cuidado de quem carrega um tesouro.
E
nunca lhe aconteceu nada de grave?
Na Argentina, em 1975, um
grupo Motonero me pegou por uma semana. Foi a primeira vez que fiz uma notícia no
primeira pessoa. Não imagina o quanto é desconfortável sentir uma sola na nuca,
com o nariz colado ao chão, sabendo que o sujeito está com uma metralhadora
destravada. Um dia, contei que a polícia rodoviária vinha fazendo com turistas
brasileiros, e fui brindado com a manchete do Última Hora: “Macaco Mentiroso”.
Por causa disso, mais tarde, tive que sair do país. Um dia, o jornal me mandou
entrevistar Isabelita. Ela descansava em Ascochinga, nas montanhas de Córdoba.
Consegui chegar lá driblando as barreiras com um motorista que conhecia a região.
Estranhei ao ser tão bem recebido pelo comandante da guarda: “Ah, usted es el
novio”. “Novoio de quien?” – perguntei. “De la Señora” – esclareceu o oficial.
Pensei, pesei os riscos, e resolvi deixar claro: “No, yo soy periodista,
brasileño”. Ele levou um susto, ficou vermelho e tentou corrigir-me: “Há, es
broma” – mas me fez sair imediatamente. Vi ataques maciços da guerrilha em
Córdoba: a revolta das Forças Aérea em Buenos Aires; conversei com matadores de
ambos os lados; estive nos esconderijos das extremas esquerda e direita, e sei
bem o que é isso. Acho que Saigon era sopa.
Daria
para ficar neurótico, pelo menos...
Por causa disso, quando
vim para Brasília, derrubei uma mesa do Restaurante Tabu, no Hotel Nacional.
Fui abordado por um jovem cabeludo, de tênis, calça Lee, e com uma sacola de
lona. Isso, no Uruguai e Argentina, era uniforme de guerrilheiro. Quando ele
enfiou a mão na sacola, saltei, virando a mesa. Queria me vender uma garrafa de
mel. É que cansei de ver atentados a granadas em Buenos Aires. Como as pessoas
ficam espedaçadas! Depois, o JB me trouxe a Brasília. Cobri a Presidência da
República, viajando com Geisel para o Japão, México e Europa. Depois, passei a
cobrir o candidato à presidência. Agora estou aqui, fazendo do que gosto e
procurando aprender.
Seu
livro João Presidente abriu-lhe as
portas do Planalto?
Não tem nada a ver. Fui
convidado porque o presidente conhecia meu trabalho, isento, de cobertura de
sua campanha, para o JB. Além disso, ele só leu o livro há pouco tempo, quando
voava do Rio para Brasília, depois de assistir a um congresso do Pen Club.
Bonita
sua casa aqui na beira do lago. Muito verde, passara. Você não tem medo de
morar sozinho, não tem medo da solidão?
Eu gosto de viver um
pouco voltado para dentro de mim. Isso até ajuda a me dar bem com o medo. Medo
de intrusos, não tenho. Conheço cada centímetro quadrado desta casa, deste
terreno, e atiro muito bem. O intruso estaria em desvantagem gritante. Morar
sozinho faz bem para quem passa o dia tratando com centenas de pessoas e igual
número de assuntos que, muitas vezes, dizem respeito a 120 milhões de pessoas.
Não há solidão. Vivem comigo – mas não me pertencem – uma coruja, um pica-pau,
vários beija-flores, uma cobra verde, uma lebre, todos selvagens e no mais amistoso
convívio. É o meu castelo inexpugnável dos fins de semana. Calção, pés
descalços, cuido do jardim, cozinho, leio, corro com Sherlock (pastor
alemão)...Epicuro era um cara legal.
E
nesse epicurismo está incluído o sexo? Não adianta negar, você tem fama de conquistar
as mais lindas mulheres.
É só fama, mesmo. Não é
nada disso. Para mim, sexo é algo tão natural como comer ou dormir. Lógico que
nem sempre foi assim. Aprendi alguma coisa nesses últimos 40 anos. Já vivo o
sexo pecado, o sexo mistério, o sexo tabu. Finalmente, cheguei ao sexo natural.
E eu nego essa história de ter mil mulheres. Não faço esse tipo de
contabilidade.
Claro, ás vezes você
prefere um Echart Privado, e não apenas um branco de San Juan; ou um Beaujolais
Nouveau, em lugar de um Reno. Você notou como é útil a invenção da parábola?
E
este seu quarto, janela para a piscina, muito Renoir na parede, som e tudo o
mais. O que um homem e uma mulher podem fazer aqui, quando a porta se fecha?
Em primeiro lugar, não há
necessidade de fechar a porta. É bom que fique aberta. Quem quiser sair, tem liberdade
de fazê-lo. Essa liberdade é essencial. Quanto ao que se faz: faz-se jazz. Há
um tema conhecido, e sobre ele se dançam variações. É preciso talento, criatividade,
inspiração e, é claro, técnica, pois é preciso tocar o instrumento.
Estou
entendendo e começando a justificar a fama. Agora pergunto: não é uma visão unilateral
do sexo, um pouco de machismo que o Alexandre gaúcho traz no sangue?
Epa! Nada de machismo.
Nossas jam-sessions são sempre duetos
– harmônicos em todos os movimentos, do adágio ao prestíssimo. É o piano e o
violino enlaçando sons e cordas até o gran
finale. Quanto ao machismo...O Machista, coitado, é um profundo frustrado.
Seu machismo restringe sua própria vida sexual, já que não deixa a mulher
participar. Ela castra a criatividade – leia-se liberdade – da companheira. O
machista é um tirano, e está perdendo muito. Faz melhor se masturbando e, provavelmente,
é um ejaculador precoce. Só consegue um solo monotônico, não é, Verlaine? Há os
que só querem fazer risquinhos na coronha do revólver, para contar aos amigos,
como prova do feito.
Quer
dizer que o machista não está com nada?
Machismo é atraso
cultural, e não é exclusividade latino-americana. É um vício cultural ultrapassado,
sem apoio sequer biológico. Vai desaparecer, sem dúvida, pois só o sustenta a
tradição histórica. Mas não nos esqueçamos que o machismo não castra as
mulheres apenas na cama, mas também nas folhas de pagamento.
Você
é um homem sensível e de bom gosto. Nota-se isso pela decoração da casa. As
coisas dizem algo. Mas os objetos também incluem as mulheres bonitas? Só elas
podem dizer algo a você? E os troféus de Tóquio, Paris, Hollywood?
Vinícius que me perdoa, apenas, não é fundamental. Outro dia, conheci Sônia Braga, com quem falei rapidamente. Sabe o que mais me impressionou nela? A inteligência, a simpatia, a gente que está dentro dela. Beleza conta na primeira impressão, mas o que vem depois é o que sustenta a primeira impressão. A mulher bela tem, por isso, uma grande responsabilidade, porque se espera que a beleza física seja coerente com sua personalidade, sua classe. A feia pode surpreender e a bonita pode frustrar. Por isso, não confio nesse tipo de avaliação a priori. Quanto aos troféus do mundo, guardei as lembranças num cofre e perdi a chave.
Parece
que existe um amor. Por que, então, viver sozinho?
Fui casado três vezes. O
que atrapalha o relacionamento é o diabo do sentimento de posse que acaba
surgindo entre as pessoas. Os que se amam podem viver separados, estando juntos
quando quiserem. Não há intromissão na individualidade. Não há intromissão na
individualidade. No mundo de hoje, individualidade é um bem precioso.
Depois
do sexo, pode ficar a amizade?
Admiro Jeanne Moreau. É
dela a frase “um ami, um amant”. O sexo talvez seja uma emoção avassaladora,
mas sozinho não aguenta. Na realidade, o que une é a amizade. O sexo é a
oportunidade de pessoas amigas se tornarem mais íntimas e, portanto, mais
amigas.
Como
aconteceu e quem foi a primeira mulher?
Essa eu conto. Mas só essa. Eu tinha 14 anos em foi em Estrela. Tuti era empregada de um professor do Colégio Evangélico. Bota austero professor – fica mais emocionante. Foi no quarto da Tuti, no porão, sob o dormitório do austero. Ela tinha 27 anos, loira, olhos azuis. Eram umas oito da noite e eu voltava do açougue do Anselmo Horn, como sempre, trazendo, um quilo de carne num prato metálico. Deixei a carne ainda morna – escreve aí – ao pé da cama da Tuti. O quilo da carne custava Cr$ 6 em 1955. Os 55 quilos da Tuti foram de graça. Sabe que levei um susto? Pensei que ela tivesse morrido.
Garoto
precoce, quase matou a moça! E a carne foi de graça?
Pagar por carne que não
seja a do açougue é o pior absurdo do mundo. É humilhante. Eu não compro bem
vendo o que não é mercadoria.
Você
acha que, num relacionamento sexual, imaginação e criatividade são importantes?
Meu Deus, claro que sim!
Como você vai tocar jazz sem ter cabeça, sentimento, técnica, inspiração,
maturidade? Há os bemóis e sustenidos; você precisa conhecer todas as notas e
meios-tons. Reconheço que para os casados é mais difícil, pois só podem
aprender entre si. Precisam ter mais imaginação e criatividade, para não caírem
numa rotina tediosa. É evidente que a cada nova pessoa que você conhece, você
vai aprendendo. Você vai adquirindo experiência. Infelizmente, para o mundo, há
pessoas que morrem sem ter desbravado uma parte de sua natureza, que é o sexo.
Vivem uma vida vegetal, investindo contra o mundo, sem saberem por quê. Falta
uma compreensão racional e sadia sobre o sexo, um campo ainda cheio de tabus e
preconceitos e, o que é pior explorado comercialmente, justo por causa disso.
Veja essa coluna de vocês: Fórum. As pessoas ficam aí, exibindo suas
experiências, realizando-se na imaginação fetichista. São pessoas insatisfeitas
– porque todo exibicionista é um insatisfeito. A maioria só toca bem solo. “O
homem que diz sou não, é porque quem é mesmo não diz” – canta a sabedoria de
Vinícius.
Aqui
de sua casa tem-se uma bela vista de Brasília e do lago. Todo mundo diz que
você curte Brasília, e a considera uma das melhores cidades do mundo. É
verdade?
Sei que vão rir os que
não conhecem Brasília, mas, em termos de costumes, acho que ela se assemelha a
Paris. A capital francesa formou sua personalidade com a soma de gentes de todo
o mundo, que para lá foram buscar a vida. Brasília recebe brasileiros de toso
os estados; é o cadinho de todas as culturas, todos os folclores, todos os sotaques
do Brasil. As pessoas que se mudam para Brasília cortam os laços com seu
passado, o que equivale a romper as tradições, os preconceitos. Liberta-se da
proximidade física dos pais, das tias, das avós, os primos, dos irmãos; libertam-se
dos cochichos da comadre da esquina, do presidente do clube, do síndico que
tudo sabe. A pessoa chega aqui só com suas próprias experiências pessoais: só
com sai vivência, já liberta do meio do que fora produto até então. Aí passa a
viver Brasília, “Começar de Novo” -Gonzaguinha. Brasília é o renascimento
cultural, existencial.
Apesar
de você ter telefone, com extensão, em sua casa, estou vendo que o aparelho o irrita
um bocado. É verdade?
O telefone é a única
coisa que me deixa irritado, hoje. É uma invenção diabólica, em certas ocasiões.
O telefone ideal deveria ser aquele em que a gente pudesse chamar, mas não
pudesse atender. O telefone nos converte em seres passivos, pois provoca a
compulsão de atender, fazer calar a campainha. Eu tinha um telefone eletrônico,
pequeninho, com uma chamada suave. Logo a suavidade do zumbido passou a se
confundir com o ruído da água saindo do chuveiro. Então acabou o relax do
banheiro morno, sempre com a impressão de que o telefone estava chamando, como,
aliás, costuma fazer quando estou no banho, depois de 12 horas de trabalho. Felizmente,
ele estragou, e agora é mesmo o de campainha que me tira o banho. No Palácio,
chama 200 vezes por dia. Em casa, é pior. Chego por volta de oito e meia da
noite, e ás vezes só consigo entrar no chuveiro duas horas depois, e acabo
jantando só ás 23 horas, por causa do maldito telefone. Ele só chama quando estou
no banheiro ou preparando minha comida. Aí saio a pingar a casa, ou a sopa
derrama e o ovo fica duro. Mas o pior mesmo é quando estou amando. É o fim. Dá vontade
de esmigalha-lo a machadadas. Um dia, ele chamou e o tirei do gancho. Era um
repórter da Folha de São Paulo. E
continuamos o que começáramos. Ele ficou escutando tudo. Outro dia, era uma velha
amiga, bêbada, ligando de Cabo Frio às cinco da manhã! No último domingo, almoçávamos
– eu e Mlle C, como diria Apicius – uma carne de forno e arroz, ambos de minha
lavra, com um Borgonha chileno, e o telefone insistiu tanto que acabei
atendendo. Era uma amiga de Florianópolis. Expliquei á ela que me interrompera
o almoço. Ela primeiro estranhou almoço às 16 horas; depois, perguntou com quem
eu almoçava. Tive de desligar na cara dela. Vulgaridade é fogo!
Mas atendo, e fico até o
fim dos tempos ao telefone, quando é um amigo ou uma amiga de São Paulo, do
Rio, uma de Los Angeles – use uma narrower
bed, my dear, para não ter saudades -, que estão precisando, em emergência,
de uma voz amiga. Quantas vezes fui dormir feliz, de alma lavada e santificada,
depois de fazer mil ligações, no DDD ou DDI, em plena madrugada, para deixar
alguém tranquilo com o dia de amanhã.
Nesses dias não me
importa com a altura de minha conta na Telebrasília. O que conta é a altura de
amizade.
Vamos
mudar de assunto. O que você pensa de Gabeira, também jornalista?
Gabeira é o mais
brilhante texto do jornalismo brasileiro contemporâneo. Mas se ele tivesse um
telefone em Ouro Preto, não terminaria o livro Entradas e Bandeiras. Ele tem razão quando diz que as mulheres
sabem mais sobre sexo do que os homens.
E
o trabalho?
Trabalho como um louco
durante a semana. Entro às oito e sai lá pelas oito e meia da noite, pois
almoço no Palácio mesmo. Se almoçasse fora, adeus tempo para ler os jornais.
Percorro quilômetros de corredores no Palácio, gravata e sapatos apertados. E
lá dentro é abafado. Através das vidraças, vejo, com inveja, a brisa lá fora,
balançando a bandeira. O ar condicionado só faz gelar os pés. Não dá tempo nem
para urinar. Cheguei a ficar com um traumatismo na bexiga, por isso. São 80
jornalistas para atender; todos os jornais para ler; as audiências do
presidente para acompanhar; as conversas para se manter atualizado, ml coisas.
Moleza era quando eu trabalhava no BB ou no JB, e achava que era duro. Mas
gosto disso. Trabalharia de graça, se preciso. Como diz a canção, é “algo que o
dinheiro não pode pagar”.
Você
é candidato a deputado pelo Rio Grande?
Ainda não, prenda minha,
mas talvez eu me decida.
Vamos
falar um pouco de Figueiredo, o homem de quem você tem sido um eficiente
porta-voz. Como é o homem Figueiredo e como é o presidente?
O Figueiredo-homem é um
pouco de meu pai. Já me surpreendi muitas vezes com isso, mas o diabo é que ele
é mesmo parecido com meu pai. Tanto no temperamento, como no rosto, nos gestos,
na emoção, no coração, no sentimento, na bondade, no altruísmo. Figueiredo é
uma pessoa profundamente humana, com um senso de percepção muito grande. Ele é
capaz de saber perfeitamente quando uma pessoa pede uma audiência simplesmente
para ser fotografado ao lado dele, ou quando a pediu para trabalhar.
Testemunhei mil coisas que comprovam o humanitarismo dele. Já no primeiro dia
de governo, quando saía do Congresso que lhe deu posse, um garoto correu em sua
direção com um mastro sem bandeira na mão. A segurança do Congresso o interceptou,
jogando-o ao solo. Figueiredo mandou parar o carro e observou a cena. O rapaz
se levantou, furioso e, quando limpava a roupa, viu o presidente com o polegar
levantado: “Tudo bem?”. O garoto, surpreso com a solidariedade do presidente,
respondeu que sim, com um largo e recompensado sorriso. Quantas vezes, em
viagens, ele dá todo o dinheiro do bolso a alguém que se queixa de dificuldades
financeiras? E como se toca ao ver uma criança sorrindo, uma velhinha simpática
ou um jovem entusiasmado! Não termina viagem sem antes agradecer a todos os que
trabalharam para ele. Quando está alegre, está mesmo. Triste, deixa
transparecer pelos poros. Quando jogaram a bomba na OAB, não dormiu não montou,
e passou a manhã do dia seguinte na maior depressão. Desabafou em Uberlândia,
pedindo que desviassem as bombas para ele, e não nos inocentes. Hipocrisia e
falsidade ele detesta, mas democracia é com ele mesmo. Brincalhão, tem a
naturalidade de deixar sair um palavrão naquele momento exato. Espontâneo,
simples, tem horror à mentira e ao puxa-saquismo. Aliás, puxa-saco ele saca no
primeiro empuxe. Amigo de todos os que trabalham a sua volta. Amigo de verdade.
Está sempre batizando filhos de funcionários, indo a aniversários de empregados
do Torto, mas não deixa de divulgar isso, com receio de que pensem ser
demagogia. Mas ele sempre fez isso. Nos tempos de general, dava carona a
soldados; como presidente, não perdeu esse hábito. É o tipo do homem que
qualquer pessoa desejaria como amigo. E se quiser saber mais, leia João Presidente.
Publicado originalmente
na revista “Ele Ela” em outubro de 1980
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