quinta-feira, 30 de maio de 2019

Grandes entrevistas de PBY: Fernando Morais em 1994



Playboy entrevista Fernando Morais





Uma conversa franca com o autor de Chatô, o livro do ano, sobre sucesso, sexo, corrupção, Quércia – e, lógico, Cuba e Fidel



No último sábado de agosto, o jornalista Fernando Morais terminou de almoçar, acendeu um charuto e saiu a pé pela Praça Vilaboim, em São Paulo. Quase caiu de costas: ao olhar a banca de revistas onde geralmente se acotovelam alguns notáveis da vizinhança, como o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso e a roqueira Rita Lee, viu o próprio rosto espalhado por todos os lados, em cartazes da banca e na capa da revista VEJA. Depois de ter escrito mais de uma vez a reportagem principal da grande publicação semanal do país, no período de 1976 a 1978, em que varou madrugadas como editor-assistente na redação, ele finalmente virava notícia maior que o fim da inflação, o começo da campanha eleitoral ou a última novela da Globo.



Fernando Morais pode ter se sentido ali ultrapassando a fronteira que separa as celebridades das pessoas comuns – aquelas que só viram famosas de brincadeira, quando um amigo traz da Espanha um pôster com o nosso nome em destaque num cartaz de tourada. Ele pode ter sentido algo assim, mas jamais saberemos. Embora bem falante e caloroso, o autor do fenômeno editorial do ano – a monumental biografia do jornalista e empresário Assis Chateaubriand (1892-1968), que em dois meses vendeu 100.000 exemplares – é um mestre na escola mineira de ilusionismo.



Quer ver? Fernando Morais está aqui, trabalhando numa reportagem para PLAYBOY ou para seu próximo livro. Mas amanhã pode ser candidato a prefeito ou a governador de São Paulo indicado por seu partido, o PMDB, pelo qual foi duas vezes deputado estadual, uma vez secretário da Cultura e outra vez secretário da Educação. Pode ser visto como um esquerdista ortodoxo, dos últimos agarrados ao paraíso ideológico tropical de Cuba. Mas, ao mesmo tempo, segue ligado à figura do, digamos assim, ultrapragmático Orestes Quércia – um político sobre o qual ninguém conseguiu comprovar qualquer acusação de desonestidade, mas que aparentemente também não consegue convencer muita gente de que é inocente. Aliás, nessa entrevista para PLAYBOY, curiosamente por três vezes o gravador apresentou problemas – e nessas três vezes Fernando Morais estava tendo de falar sobre questões delicadas como a origem do patrimônio de Quércia. “Deus existe!”, disse ele na primeira vez em que o gravador desligou sozinho, no meio de uma fita.



Mas, ao contrário do que possa imaginar, nada acontece por mágica na vida desse mineiro nascido há 48 anos em Mariana, cidade histórica ao lado de Ouro Preto. Aos 13 anos de idade, o futuro secretário de Educação de São Paulo levou bomba na escola, por incompatibilidade com os números. O pai, um bancário que chegaria à vice-presidência do Banco Real, obrigou o filho a trabalhar para pagar os próprios estudos. E foi assim, como contínuo na revista interna do então Banco da Lavoura de Belo Horizonte, que Fernando Morais começou simultaneamente duas carreiras: a de jornalista, ao substituir um repórter numa entrevista com uma miss; e a de grande conhecedor dos mistérios femininos, ao honrar seu primeiro salário uma noite de amor no 32, um rendez-vous aberto a todas as idades naquele final dos anos 1950.



“E a Bruna Lombardi?”, perguntamos a ele a certa altura da entrevista. “O que tem ela?”, devolveu, impassível, o hoje bem-casado (pela segunda vez) Fernando. E nós: “Uma pessoa que estava no lançamento de um livro de poesias da Bruna Lombardi, anos atrás, viu quando ela fez a seguinte dedicatória: ‘Fernando, quando você quiser’”. Impávido, ele jurou que não se lembrava disso, mas minutos depois, quando já falávamos de outra coisa, não aguentou de curiosidade: “Quem é que contou aquela história da dedicatória? Eu nunca falei dela para ninguém”.



Nosso entrevistado, que confessa ser um dos raros brasileiros que não conhecem a alegria de marcar um gol, pois jamais jogou uma única partida de futebol, percorreu no entanto como poucos algumas das passagens mais obscuras da vida nacional recente. Seu primeiro livro, Transamazônica, uma série de reportagens escritas em parceria com o jornalista Ricardo Gontijo, mostrou para o país os aspectos humanos e desumanos da inútil cicatriz aberta na selva durante o governo Médici, no começo dos anos 1970. E os direitos autorais já nessa estreia renderam a Fernando Morais sua primeira moto, uma Honda 450. O segundo livro, A Ilha, uma grande reportagem sobre a Cuba de Fidel Castro escrita audaciosamente no auge da repressão política no Brasil, rendeu mais: superou a marca dos 200.000 exemplares vendidos e deve tê-lo ajudado a se eleger deputado estadual pela primeira vez. Olga, a biografia da revolucionária alemã Olga Benário, mulher do líder comunista Luiz Carlos Prestes, entregue pela polícia política de Getúlio Vargas para morrer num campo de concentração nazista, repetiu o sucesso de A Ilha: não só bateu igualmente a marca de 200.000 livros vendidos no Brasil desde seu lançamento, em 1976, como ganhou versões nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia, solidificando o nome de Fernando Morais também no mercado editorial internacional – somadas as edições estrangeiras de Olga e A Ilha, ele já vendeu quase 250.000 livros no exterior.



PLAYBOY, excepcionalmente, mandou uma pequena brigada de entrevistadores para conversas com Fernando Morais, de modo a ter visões distintas do fenômeno em que ele se transformou: participaram da entrevista o editor-contribuinte Guilherme Cunha Pinto, seu colega desde o final dos anos 1960, quando conviveram na redação do Jornal da Tarde de São Paulo; o editor especial Fernando Paiva, que o conheceu em 1978, na companha para deputado; e o editor Ricardo Castilho, que nunca havia falado com ele.



No total, foram nove horas de entrevistas realizadas num estúdio de 45 metros quadrados que Fernando Morais mantém no bairro de Pinheiros, em São Paulo – e que ele comprou com a indenização recebida pelo uso de passagens de Olga na novela Kananga do Japão, que a Rede Manchete exibiu pela primeira vez em 1989. Ali, cercado de fotos, edições estrangeiras de seus livros e dezenas de pastas com documentos que coletou nos sete anos, com largas interrupções, em que pesquisou a vida de Chateaubriand, Fernando Morais passou os seus dias de agosto de 1993 até o mês de julho passado, quando colocou o ponto final em Chatô. Dedilhando seu texto leve e claro num computador 486, ao ritmo de até quatro charutos cubanos fumados por dia, ele esculpiu um volume precioso de 745 páginas e 1,3 quilo, privando-se de muito de sua convivência com a mulher, Marina, e com a filha, Rita, de 14 anos, do primeiro casamento.



Algumas pessoas que queixam de que Chatô é um livro um pesado para ler na cama – mas só porque o braço pode cansar. No mais, é um relato cheio de histórias magníficas, cenas hilariantes e bastidores espantosos do poder que desfilou pelo Brasil ao longo desse século. Mal comparando, é como a entrevista que você vai ler agora: depois que se começa, é difícil parar no meio. Prepare-se para uma leitura agradável, interessante e divertida viagem em torno do personagem Fernando Morais e de outros personagens fascinantes que ele nos traz.



PLAYBOY- Você já fez seu primeiro milhão de dólares?



FERNANDO MORAIS- O que é isso? Bom...Se eu fiz, evaporou. Porque se for vender tudo o que tenho, incluindo esse estúdio aqui e a moto estacionada lá embaixo (uma Harley-Davidson Low Rider de 1300 cilindradas), não dá 30 000 dólares. Onde é que foi parar esse dinheiro? Não sei. Vai ver que eu fumei esse dinheiro, comprei motocicleta, charuto. Eu gosto de viajar...



PLAYBOY- Nem se somar o que está entrando e ainda vai entrar com o Chatô, não faz 1 milhão?



FERNANDO MORAIS- Não acredito. Mas espero que faça o mais breve possível...



PLAYBOY- Antigamente dizia-se que Jorge Amado era o único brasileiro que podia viver bem com os direitos autorais de literatura. Mas ele contou com apoio organizado, se considerarmos a máquina socialista internacional que editou, divulgou e distribuiu os livros dele lá fora...



FERNANDO- Não sei se foi assim. O Jorge Amado faz um tremendo sucesso nos Estados Unidos, por exemplo. Tanto que ele recebeu 500.000 dólares de royalties pelo Tocaia Grande, cinco anos atrás.



PLAYBOY- É um prêmio pelo mérito dele, que ninguém discute. Só estávamos lembrando um esquema que todo mundo sabe que houve nas décadas de 1940 e 1950, principalmente, quando o nome de Jorge Amado se internalizou. E você? Contou com alguma máquina, algum apoio desse tipo nos livros que editou no exterior?



FERNANDO- Ao contrário, eu tive a máquina contra mim. Tive um monumental problema com os comunistas ortodoxos de vários países quando lancei o Olga.



PLAYBOY- Por quê?



FERNANDO- Porque, entre outras coisas, eu revelo que a primeira pessoas para a contar para a polícia que o Luiz Carlos Prestes estava clandestino no Rio, com uma mulher chamada Olga, foi o Rodolfo Ghioldi, que era uma espécie de Prestes argentino, um mito na Argentina até a morte dele, em 1985. A polícia brasileira ainda não tinha ouvido falar no nome de Olga até esse momento. E o Ghioldi disse sem que tivesse tomado uma única porrada.



PLAYBOY- Por que ele teria feito isso?



FERNANDO- Porque ele era um ser humano, e os seres humanos são passíveis de misérias e de grandezas. Eu não sei, por exemplo, qual o seu grau de resistência sob pressão.



PLAYBOY- No dentista, nenhum (risos).



FERNANDO- Pois é, no dentista tem gente para quem basta mostrar o boticário. Então, eu fui a Buenos Aires exclusivamente para ir na casa do Ghioldi, e perguntar se ele tinha sido torturado, como tanta gente naquela época do Estado Novo. Se ele tivesse confessado sob tortura, eu queria incluir isso no livro. Mas ele disse que não, que não tinha sofrido nenhum tipo de violência, além da violência inerente...



PLAYBOY- Psicológica.



FERNANDO- Isso. Tive sorte de ainda conseguir entrevistar o Ghioldi, porque ele morreu poucos meses depois. Então, quando o livro foi lançado aqui, o secretário-geral do Partido Comunista argentino, Athos Fava, veio ao Brasil e me procurou perguntando se eu queria vender os direitos do livro para a editora do partido. Obviamente para não publicar. Tanto é que ele desistiu quando eu disse que vendia, mas o contrato tinha de prever um prazo para ele publicar – se não publicasse dentro daquele período, o contrato caducava. Desistiu, saiu correndo no mundo e conseguiu convencer os cubanos, por exemplo, a não editar o livro. O livro já estava pronto, traduzido e composto em Cuba.



PLAYBOY- E não foi mesmo publicado lá?



FERNANDO- Não foi publicado em Cuba, nem na Alemanha Oriental, na época. Só foi na Chin, espontaneamente. Os chineses publicam o que querem e não pagam direitos, porque a China não é signatária de acordos internacionais de direitos autorais. Eles consideram que qualquer obra realizada por um ser humano faz parte do patrimônio da humanidade.



PLAYBOY- E o autor não pode fazer nada.



FERNANDO- Eles disseram que, se eu quisesse, poderia publicar aqui no Brasil qualquer obra do presidente Mao Tsé-tung também sem pagar nada (risos). Que puta concorrência!



PLAYBOY- Foi só esse episódio no livro que irritou o pessoal linha-dura do socialismo ou teve mais?



FERNANDO- Tem a passagem dramática, trágica, de uma menina assassinada por ordem da direção do partido, na suposição de que fosse informante da polícia – a Elvira Apolônia, uma adolescente, que na minha opinião era completamente inocente, não sabia nada de comunismo, nada de nada. E ela é assassinada de uma maneira brutal: eles quebram o cadáver ao meio, partem o cadáver ao meio, partem o cadáver em dois pedaços, para enterrar no quintal de um sujeito chamado “Tampinha” e de um outro militante chamado “Abóbora”. Não dá para simplesmente atalhar um episódio desse, em nome de proteger o Partido Comunista. Mesmo escrevendo um livro sobre uma heroína socialista. Sabe? Não tem sentido. Depois que o livro saiu, eu discutia com dirigentes do PC e dizia: “Acho que para a história do PC é melhor contar isso do que esconder. Vocês não podem ficar eternamente cobrindo isso com uma pedra”. O (recém-eleito) senador pernambucano Roberto Freire, especialmente, já tinha na época uma visão mais aberta que os outros dirigentes comunistas, e chegou a dar um esporro no Athos Fava, quando ele voltou aqui pedindo para o Partidão me colocar na lista negra – entre outras coisas, o Roberto Freire lembrou que eu não era militante do partido. Muita gente ficou ressentida comigo, também, quando eu contei no Olga que o Prestes tinha ido para a cama com uma mulher, pela primeira vez, aos 37 anos de idade. Como se isso fosse algo que...



PLAYBOY- Um momento: isso foi verdade mesmo? (risos)



FERNANDO- Verdade.



PLAYBOY- E qual foi a reação do próprio Prestes, quando você publicou isso no livro?



FERNANDO- Bom, eu vou revelar uma coisa inacreditável: sabe quem me contou isso? Ele mesmo. Está gravado em fita, a fita está comigo. Ele me contou espontaneamente. No meio de um depoimento, ele me disse – eu não sei se vou reproduzir as palavras com absoluta fidelidade, mas se não for isso é muito parecido: “Como o senhor sabe, ela foi a minha primeira mulher”. E continuou o que estava dizendo. Falou isso de raspão, de passagem. Aquilo bateu em algum lugar da minha cabeça, eu fiz as contas e pensei: “Se ele nasceu em 1898, em 1935 tinha 37 anos. Porra, não pode ver”. Aí voltei e falei: “Capitão, só um momento. O senhor disse que ela foi sua primeira mulher oficial? A primeira mulher com quem o senhor viveu?”. Ele falou: “Não, foi minha primeira mulher. Eu nunca tinha estado com uma mulher antes”.



PLAYBOY- Chocante.



FERNANDO- Para um historiador acadêmico, uma informação como esse provavelmente não teria nenhuma importância. Porque isso não tem relevância para a História oficial – não é o fato de ter sido virgem até os 37 anos que faz Prestes caminhar para este ou para aquele lado. Mas ajuda a compor o retrato humano do personagem.



PLAYBOY- Esse é o ponto. Em Olga, e agora mais ainda no Chatô, a história parece viva, o leitor se envolve nas tramas. Por isso deve ficar muito mais na memória de que a história que se aprende na escola.



FERNANDO- Eu acho o seguinte: existem os bons e maus historiadores, assim como existem bons e maus jornalistas. Mas o que acontece é que o olho do jornalista sempre será diferente. Se você pegar todos os livros sobre Simón Bolívar publicados na América Latina, nenhum vai reproduzir a cena que o Gabriel García Márquez conta na abertura de O General em seu Labirinto, que é o Bolívar tendo uma crise de hemoptise (cuspindo sangue) dentro de uma banheira – um Bolívar frágil, moribundo, ao contrário do Bolívar de bronze, monumental, com todos muques dessa história oficial. Acho que aquele livro do Gabriel García Márquez é muito mais obra de um jornalista do que um literato, de um ficcionista, e eu acho que o olho do jornalista está muito mais interessado em revelar o personagem, com as grandezas e misérias do ser humano, do que escrever história sobre a estátua do personagem.



PLAYBOY- No Brasil isso vem de longe. Aqui, quando aboliram a escravidão, o Ruy Barbosa mandou queimar os arquivos para que se apagasse aquela página triste da nossa História. E ele era considerado o homem mais inteligente do Brasil.



FERNANDO- Foi, para tentar apagar a escravidão...



PLAYBOY- Quando você procura um personagem, existe uma preocupação com a ideologia dele? Tipo: depois de Olga, que era de esquerda, estava na hora de procurar um personagem de direita, como o Assis Chateaubriand?



FERNANDO- Não. Não obrigatoriamente. Muita gente se surpreendeu quando eu disse que estava fazendo o Chateaubriand: “Porra, mas como é que você faz um livro sobre Cuba, depois de uma revolucionária, e agora vai fazer um livro sobre um entreguista, um cara da Light e tal?”. Mas o que conta para mim é o personagem, a sua riqueza pessoal. Procuro alguém que exerça uma sedução sobre mim, portanto, eu pressuponho que vá exercer sobre o leitor. Tanto o Chatô quanto a Olga me encantaram muito apesar de serem dois personagens completamente opostos do ponto de vista ideológico e filosófico, porque por meio deles foi possível recontar um pouco da nossa História.



PLAYBOY- Você chegou a cobrir o velório do Chateaubriand como jornalista, não foi? Na época, já imaginou que poderia fazer um livro assim, mais tarde?



FERNANDO- Não, não. Eu trabalhava para o Jornal da Tarde e fui destacado para cobrir o funeral. O Chateaubriand ficou três dias exposto à visitação pública no prédio dos Diários Associados da Rua Sete de Abril, em São Paulo. Não lembro nem se escrevi a matéria, talvez tenha feito apenas um relatório para incluir alguma coisa no texto final da cobertura. Certamente quando eu vi morto ali aquele catatauzinho – porque ele era baixinho com menos de 1,60 metro -, jamais poderia imaginar que iria dedicar não sei quantos anos da minha vida a ele. Porque ele era um personagem do qual para nós, de esquerda, da nossa geração de jornalistas, só se ressaltava o lado obscuro, o lado negativo. Era o testa-de-ferro da Light, o defensor intransigente do capital estrangeiro, da internacionalização da economia brasileira. Um cara que sonhava com o Brasil á sombra das grandes metrópoles internacionais. E ele diz isso claramente: achava que o Brasil deveria eternamente produtor de matéria-prima, não deveria ser uma nação industrializada.



PLAYBOY- Antes de se decidir a fazer a biografia do Chateaubriand, você pensou em escrever um livro sobre o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que comandou repressão política em São Paulo. Por que acabou não fazendo?



FERNANDO- Eu achei que o defunto estava muito fresco. Ele tinha morrido havia pouco tempo e as paixões de todos os lados ainda eram recentes, as feridas ainda estavam abertas. Eu tinha medo de ouvir o pessoal ligado à repressão, ou o pessoal que foi torturado por ele, e fazer um trabalho muito emocionado, desfigurando o personagem. Porque o risco da biografia é esse, não é? Você se deixar levar ou por quem é amigo ou por quem é inimigo do personagem. É preciso esquecer as palavras “bem” e “mal”, não pode ter preconceito de nenhuma natureza, senão o escritor está perdido. Eu passei esse tempo todo (sete anos, da pesquisa e apuração até o ponto final do livro) trabalhando no Chatô com um sinal vermelho aceso, permanentemente, para não me deixar cair na tentação de julgar o personagem. Você vai dizer que ele era um gângster? Mas como um gângster deixa um museu como esse na Avenida Paulista, o Masp? E não deixou para os filhos, nem para as empresas: deixou para todos nós, para a sociedade. Então você vai dizer que ele era um santo? Como é que um santo manda castrar, dar dois tiros no saco de um sujeito que cometei a imprudência de lhe cobrar uma dívida? O leitor é que tem que fazer o julgamento. Diante de um personagem assim, a respeito de quem não existe indiferença – as pessoas amam ou odeiam -, o escritor não pode se deixar levar pela emoção. Porque senão se arrebenta. Senão vai tirar da sepultura e pôr para andar ou o Chateaubriand dos inimigos ou o Chateaubriand dos puxa-sacos. É um cuidado necessário não só para escrever, mas também na hora de pesquisar.



PLAYBOY- Você tem paciência de pesquisar documentos ou prefere entrevistar pessoas?



FERNANDO- Eu adoro. Devo ter alguma coisa de historiador frustrado, adoro pesquisar. Tanto que, ao fazer o Chatô, um dos momentos mais emocionantes foi a localização da célebre Lei Teresoca. Todo mundo falava da lei, todo mundo. Mas ninguém se lembrava do número, lembravam mais ou menos da época, e eu não conseguia localizar de jeito nenhum.



PLAYBOY- Explique o que era a Lei Teresoca.



FERNANDO- O Chateaubriand tinha tido uma filha, que está viva, dona Teresa Chateaubriand Alkmin, com uma atriz argentina chamada Corita, uma mulher belíssima – aliás, em chegava a ser exatamente uma mulher, no sentido lato da palavra: tinha 14 anos quando o Chateaubriand casou com ela. Quando Corita tinha 15 anos, nasceu a Teresa, apelidada “Teresoca”. E aí a Corita se apaixona por outro homem, acontecem histórias rocambolescas, troca de tiros, sequestro, o diabo. Eles se separam e Chateaubriand quer ter o pátrio poder sobre a menina, mas não pode, porque não tinha sequer reconhecido a menina e o pátrio poder, pela lei, era da mãe. Então ele coage Getúlio Vargas a mudar o Código Civil Brasileiro, só para tomar a menina da mãe. Essa lei ficou conhecida nos meios jurídicos como Lei Teresoca, que na verdade foram duas leis feitas sob encomenda.



PLAYBOY- Feitas só para resolver um problema pessoal dele.



FERNANDO- Exatamente. Todo mundo que eu entrevistei falava na Lei Teresoca, e eu não achava a bendita lei. Chegou um momento em que comecei a pensar que era mitomania. Essas coisas de brasileiro: alguém inventa uma história, que vai sendo repetida e recontada e...



PLAYBOY- Vira verdade.



FERNANDO- Só que quando você vai puxar a ponta do barbante não tem história nenhuma. Na verdade, era muito difícil que acontecesse nesse caso, porque a própria filha, a Teresoca, tinha me contado. Mas eu não encontrava. Aí procurei um amigo meu, o advogado, que é um rato de arquivo, o Sérgio Ribeiro. Chorei as mágoas: “Porra, faz mais de um ano que estou atrás dessa lei”. Ele perguntou: “Em que período foi?”. Eu falei: “Parece que foi em 1942”. Ele riu e disse: “O Nelson Rodrigues é que tinha razão. Brasileiro vê tudo, só não consegue ver o óbvio”.



PLAYBOY- Diário Oficial?



FERNANDO- Diário Oficial. Ele foi no Diário Oficial da União e encontrou as duas Leis Teresocas. Estavam lá impressionadas. Era importante documentar esse episódio porque demonstra a força do personagem. Você mexer duas vezes no Código Civil por puro capricho...E olha que não estava lidando com um presidente banana, não era um Itamar Franco. Era o Getúlio Vargas, no auge do Estado Novo. Na época do Getúlio, metade da oposição estava no exílio e a outra metade estava na cadeia. Quando o Getúlio fez a Lei Teresoca, o Prestes estava preso e o Júlio de Mesquita Filho (diretor do jornal O Estado de S. Paulo) estava no exílio. Era um presidente poderosíssimo, inclusive já tinha tomado, confiscado um jornal do próprio Chateaubriand. Não era um cachorro morto que você chegasse lá e chutasse o rabo dele. Então, acho que isso também mostra, dá uma medida do poder que o Chateaubriand teve nas mãos, né?



PLAYBOY- Mas como é que ele fazia aquelas coisas? Juntava um monte de milionários num clube e avisava que eles tinham de colaborar com não sei quantos milhões, porque ele precisava arrecadar dinheiro para comprar aviões, ou para comprar um cólar de águas-marinhas para a rainha da Inglaterra, ou para comprar um quadro para o Masp? E os milionários davam?



FERNANDO- Davam. Morriam de medo do Chateaubriand, não só pelo poder que ele tinha, como pela forma como exercia esse poder, sem absolutamente nenhuma censura. Tinha pânico, e se pelavam, porque sabiam que podia acontecer com qualquer um deles algo semelhante ao que tinha ocorrido com o industrial José Ermírio de Moraes, por exemplo, aqui em São Paulo. Depois de trinta dias de uma campanha devastadora, Chateaubriand não tem mais o que fazer, então vai para a televisão no horário nobre, interrompe um teleteatro (espécie de novela da época, feita ao vivo) e diz o seguinte: “Esse sujeito roubou isso, roubou aquilo, roubou até o sobrenome, porque ele não é Moraes, ele é filho bastardo de um cangaceiro chamado Antônio Silvino (risos), que emprenhou a mãe dele, nasceu esse macaco pernambucano...” Agora, você imagina o Roberto Martinho interromper a novela Pátria Minha para falar do Brizola, para dizer que o Brizola é filho bastardo de não sei quem? (risos) É inimaginável  você pensar em qualquer um dos barões da comunicação de hoje exercendo o poder do jeito que o Chateaubriand exercia.



PLAYBOY- Fora as vezes em que acionava um jagunço e chegava ás vias de fato.



FERNANDO- Ele podia chegar de revólver, de caneta ou de microfone na mão. Por isso o medo que infligia – e não só nas pessoas físicas, não, mas pessoas jurídicas, nos governos também. O curioso é que, mesmo sem escrúpulos, o Chateaubriand conseguiu algumas coisas formidáveis, como dar praticamente toda a base para a aviação civil brasileira, a partir de uma iniciativa pessoal dele.



PLAYBOY- E você? Com que lado do personagem de identificou?



FERNANDO- Para falar a verdade, eu talvez só tenha me identificado com um traço do Chateaubriand: o fascínio que ele tinha pela reportagem. Ele sempre se considerou repórter. Mesmo quando já era um imperador, um megaempresário, quando já era senador, embaixador, ele se registrava em portaria de hotéis como repórter – nem jornalista: repórter. Quando se apresenta à rainha Elizabeth, levando as credenciais de embaixador, diz a ela que não está lá como diplomata, mas como repórter a serviço do presidente Juscelino Kubitscheck.



PLAYBOY- Não seria um pouco de gênero?



FERNANDO- Pode ser. Mas olhe a vida dele, para ver como isso tinha consistência. Nas redações, mais do que qualquer outra função, ele valorizava o repórter, o que explica a paixão que teve por Samuel Wainer – que depois se transformou em ódio doentio -, a paixão por David Nasser, Jean Manzon (jornalistas). O sucesso de O Cruzeiro o que é? É o sucesso da reportagem. Teve uma passagem que me chamou muito a atenção em 1930, quando o país fervilha, às vésperas da revolução: Chateaubriand arma aquela situação para fazer coincidir a chegada de dois navios no porto do Rio – um trazendo o corpo de João Pessoa (então governador da Paraíba), assassinado por razões passionais que os jornais de Chateaubriand conseguem transformar em políticas, e outro trazendo seu inimigo Júlio Prestes (na época, candidato à Presidência). A população está emocionadíssima com a morte, com a violência. Vai toda para as ruas.



PLAYBOY- Deve ter sido como a chegada do corpo de Ayrton Senna.



FERNANDO- Exatamente, uma comoção assim. O Chateaubriand não resiste e também vai à rua, só que como repórter, tomando depoimentos. Ele já era um grande empresário. Era como se o Roberto Marinho saísse fazendo entrevistas na rua durante o funeral do Senna. Em outra ocasião, o Chateubriant vai aos EUA como convidado do governo americano e, em vez de mandar artigos empolados, escreve contando quanto custa um bife em Nova York. Ou informa, escandalizado, que um sapato nos Estados Unidos está custando cinco vezes mais barato que o sapato que ele tinha comprado a Cine Guarany, em São Paulo – e que já tinha precisado de uma meia-sola. Ele era assim. Carregava sempre um toco de lápis no bolso do paletó, provavelmente para poder escrever em qualquer tipo de papel, a qualquer hora – era muito comum ele redigir artigo em guardanapo.



PLAYBOY- Chatô foi o livro que te deu mais prazer de escrever?



FERNANDO- Não se é o que me deu mais prazer, mas certamente é o personagem mais surpreendente em que eu já tropiquei – e olha que sou jornalista há mais de trinta anos e já entrevistei muita gente, de Fernando Collor a Yasser Arafat. Mas, prazer...Porque escrever é um sofrimento, entende? Outro dia eu vi uma entrevista da Rachel de Queiroz ao Jô Soares que reflete bem o que eu sinto. O Jô perguntou: “Rachel, você gosta de escrever?” E ela respondeu: “Não, Jô, eu detesto escrever”. Eu entendi muito bem o que ela estava querendo dizer. Escrever 735 páginas (total de páginas do Chatô) é um trabalho de estivador, é um trabalho braçal. E também um trabalho de relojoeiro, a ourivesaria do texto. Você publica um texto e ás vezes encontra uma palavra repetida, aquilo é uma punhalada no coração.



PLAYBOY- Dá trabalho escrever simples, não é? Porque escrever complicado é fácil, sai na hora.



FERNANDO- Assim como Washington Luiz dizia que governar é abrir estradas, o Machado de Assis dizia que escrever é cortar palavras. Quando eu sentei aqui para escrever o Chatô, fiz um livro de 3000 páginas. Mas fui capando, capando. Por sorte, eu sou casado com uma leitora impiedosa. A Marina, minha mulher, gostou muito do livro, me estimulou muito, mas não tinha nenhum constrangimento em apontar trechos que achava ruins, obscuros. Dou um exemplo de uma passagem que mudei a conselho dela. Depois de consultar neurologistas e de ouvir pessoas que conviviam com o Chateaubriand na fase em que já estava tetraplégico, deduzi que quando ele recebia uma mulher e mandava fechar a porta do quarto, eles deviam fazer sexo oral recíproco. E pus um travessão – “conhecido vulgarmente como 69”. Minha mulher leu aquilo e disse: “Isso está muito grosseiro. Isso salta. Tira isso. Quando você diz ‘sexo oral recíproco’ já está dizendo tudo. Não precisa reiterar”.



PLAYBOY- O Chateaubriand teve uma vida amorosa mais animada que a do Prestes, não é?



FERNANDO- Daria um livro, só com isso. Se bem que eu tive muita dificuldade para reconstituir esse lado, porque a maioria das mulheres se recusou a reconhecer que tinha tido um romance com ele. Houve um caso até mais eloquente, uma atriz que fui entrevistar com muito cuidado, com muito respeito – porque afinal não é um crime ela ter tido um romance com qualquer pessoa. Mas na hora em que ela percebeu aonde eu estava querendo chegar, disse assim: “Um momento, vamos deixar as coisas claras. Eu nunca tive nada com o Chateaubriand, além de relação profissional. A minha relação com ele não era nem um pouco diferente da relação que a Regina Duarte tem com o Roberto Marinho”.



PLAYBOY- Quem é ela?



FERNANDO- Não posso dizer.



PLAYBOY- Era do Teatro Brasileiro de Comédia?



FERNANDO- Não lembro.



PLAYBOY- Usa leite de aveia?



FERNANDO- Não sei, não lembro. Não posso falar, porque ela negou. Só que os filhos do Chateaubriand me contaram que várias vezes chegaram à casa do pai e encontraram essa senhora bonita, de baby-doll às 8 horas da manhã, saindo do quarto dele, depois de ter dormido na mesma cama que ele. Mulher nenhuma dormia com o Chateaubriand impunemente. Isso acabou não entrando, foi uma das histórias que cortei na hora de enxugar o livro.



PLAYBOY- Houve outras passagens desse tipo que você teve de cortar?



FERNANDO- Uma vez, ele estava de olho numa senhora hospedada no Copacabana Palace e, para impressiona-la, resolve promover uma revoada de vagalumes na calçada em frente ao hotel. Manda um grupo de empregados a Santa Teresa, no Espírito Santo, para conseguir com seu velho amigo (o naturalista) Alberto Ruschi milhares e milhares de vagalumes, levados em garrafões ao Rio. Á noite, conseguiu que o major McCrimmon, diretor da Light, desligasse as luzes da rua para que ele pudesse soltar os vagalumes que iluminaram a noite da amada. O produtor Luiz Carlos Barreto me disse que, se alguém filmar Chatô, esta cena tem de ser reincluída no livro só para justificar o título do filme: A Noite dos Vagalumes.



PLAYBOY- Dá para imaginar como acabou essa noite. É difícil encontrar mulher que resista a uma produção e uma imaginação dessas.



FERNANDO- O Chateaubriand fazia um sucesso inacreditável com as mulheres. Pode ser que fosse um pouco pelo poder, mas ele tinha um charme indiscutível. Era um homem inteligentíssimo, que discutia tudo e mergulhava fundo. Era, sem dúvida, um homem encantador. E tinha um apetite sexual fora do comum. Uma secretária dele em São Paulo me contou que não era raro o Chateaubriand chegar do Rio ou da Europa. De qualquer lugar do planeta, à noite no Aeroporto de Congonhas e telefonar avisando que estava indo para o apartamento da Rua Ana Cintra, por exemplo. Ele tinha dois apartamentos pequenos para encontros furtivos, embora fosse solteiro e desimpedido. Quando avisava que estava indo para um desses apartamentos, era sinal que estava com alguma mulher. Aí a secretária dizia: “Mas, dr. Assis, fulana de tal está aqui esperando o senhor”. E ele: “Fala para ele esperar, que eu vou aí daqui a pouco”. Uma hora depois ele de fato passava lá, ia até a redação ver o que teria o jornal no dia seguinte, levava a mulher para o outro apartamento e de novo cumpria suas obrigações cívicas (risos).



PLAYBOY- Mulheres solteiras, casadas...



FERNANDO- Ao mesmo tempo em que tinha um apetite sexual absolutamente incontrolável, era um homem com enorme dificuldade para lidar com uma instituição chamada família. Isso talvez explique a predileção especial de Chateaubriand por mulher casada. Porque mulher casada já está casada, não é? Não vai querer formar outra família. Não digo isso no livro, porque lá eu não faço interpretação nenhuma, mas fiquei pessoalmente com a impressão de que aconteceria isso.



PLAYBOY- Você reforçou várias vezes esse ponto de não interpretar os fatos em seus livros, mas talvez seja uma coisa que valha mais para Chatô e Olga. Relendo A Ilha, hoje, não lhe parece uma visão meio ingênua de Cuba?



FERNANDO- Eu não releio nada do que escrevo. Então nunca mais li A Ilha, mas não acho que seja ingênuo, acho que é um livro objetivo. Muita gente talvez o considere ingênuo, já me disseram até que A Ilha seria comparável ao Mundo da Paz, que o Jorge Amado fez em 1945 sobre a União Soviética, um livro apologético não sei se por encomenda ou não, feito quando ele era militante do Partido Comunista. Mas eu não concordo com isso, não. Se você se der ao trabalho de ler A Ilha, vai ver que nele falo da fila para conseguir comida, falo da falta de liberdade de imprensa. Claro que é um livro superado, datado, porque é um retrato de um país naquele momento, e isso já tem quase vinte anos. Agora, também não é um livro de alguém contra Cuba. Eu sou solidário com a revolução cubana por tudo o que eles fizeram, por tudo o que Cuba significou para várias gerações, no mundo inteiro.



PLAYBOY- Quantas vezes você esteve em Cuba?



FERNANDO- Umas vinte. A última vez foi há dois anos e meio, naquele polêmico Voo da Solidariedade. Eu já estava decidido a não participar da caravana, porque era um charter que saía numa sexta-feira e voltava na outra, e nesse meio tempo começaram as aulas em São Paulo, onde eu era Secretário de Educação. Havia um acúmulo aqui e não era legal o secretário estar fora. Mas a imprensa tratou aquele voo de uma forma tão preconceituosa que eu fui de pirraça, de raiva.



PLAYBOY- Fica difícil falar sobre Cuba, porque quando essa entrevista aqui for publicada, mesmo sendo dentro de poucos dias, a situação lá pode estar de cabeça para baixo. De um dia para o outro pode mudar tudo.



FERNANDO- Olha, a tendência natural das pessoas foi imaginar que, depois que caiu o murro, depois que a União Soviética acabou, iria acontecer com Cuba a mesma coisa que aconteceu com a Polônia, a Bulgária, a Tchecoslováquia e toda a Europa Ocidental. Mas não é bem assim, porque embora houvesse em comum entre esses países toda uma dependência econômica da União Soviética, eram realidades bem diferentes. A partilha da Europa foi uma espécie de Tratado de Tordesilhas entre as duas grandes potências que venceram a II Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética. Então teve polonês ou tcheco que dormiu capitalista e acordou socialista, sem que nunca ninguém tivesse batido na porta da casa dele e perguntando se ele estava a fim, se ele concordava com aquilo. E isso foi na Europa Ocidental praticamente toda. Agora você pense em Cuba, pense no Vietnã também: por que o Vietnã não acabou com o regime socialista? Porque é uma situação, historicamente, muito parecida com a de Cuba: o socialismo foi fruto de uma revolução feita pela população de arma na mão. Isso é indiscutível, não precisa você ser a favor ou contra o regime para concordar – é uma conceituação histórica. Aquilo foi uma revolução feita pela população cubana de trabuco na mão.



PLAYBOY- Sim, mas em 1959.



FERNANDO- Em 1959, mas reiterando várias vezes essa vontade. Inclusive se você considerar uma coisa: em Cuba a maioridade se atinge aos 16 anos. Nessa idade, todo mundo, homem ou mulher, faz serviço militar, aprende a atirar e passa a ser depositário de uma arma de fogo. Então, o potencial de insurreição civil é incomum. Uma vez eu li numa revista britânica que os dois povos do mundo com maior e mais rápida capacidade de mobilização bélica de sua população eram Israel e Cuba. Se um dia tentarem fazer lá o que fizeram no Haiti...Agora, é claro que existem problemas gravíssimos em Cuba, dramáticos, mas não insolúveis. É evidente que eles próprios se deram conta de que precisam rever muitas coisas, que o mundo está mudando, a sociedade está mudando. Só que eles continuam com uma particularidade: estão a 150 quilômetros da maior potência bélica do planeta, que quer destruí-los, segundo as declarações reiteradas de sucessivos governos americanos. Falam do regime socialista – mas existe algo anacrônico do que bloqueio econômico? É isso que os Estados Unidos estão fazendo contra os cubanos.



PLAYBOY- Você não acha que as pessoas lá não aguentam mais? O povo se atirando ao mar naquelas boias...



FERNANDO- Eu pergunto o seguinte: se o Cid Moreira, hoje à noite, anunciar no Jornal Nacional que o governo americano está dando visto permanente, com direito a trabalhar, para todos os brasileiros que quiserem ir para lá – quantas pessoas você acha que saem daqui?



PLAYBOY- Bom, se você fizer essa pergunta em Governador Valadares...(risos).



FERNANDO- E mais: imagine que o seu país é aqui em São Paulo e os Estados Unidos ficam mais ou menos em Piracicaba, logo ali. Então, eu acho compreensível que uma pequena parcela...



PLAYBOY- Pequena parcela? O pessoal está lotando barcos, os atletas que saem para competir no exterior pedem asilo.



FERNANDO- Neste ano saíram 15.000 pessoas, muito menos que em 1980, quando 150 000 cubanos foram embora.



PLAYBOY- Mas se Cuba não tivesse Fidel Castro ainda vivo o regime já teria caído, você não acha?



FERNANDO- (Irritado) Se, se, se...É difícil dizer. Mas seguramente o peso do carisma dele, a relação da população com ele contribuem muito para a permanência do regime.



PLAYBOY- Já que vocês se conhecem há tantos anos, como é que o presidente Fidel Castro trata você, pessoalmente? Ele é uma pessoa fácil? Aliás, existe alguém que possa dizer assim para ele, como o Chateaubriand dizia para o presidente Getúlio Vargas: “Mas então, ditador, como vamos?”.



FERNANDO- Não.



PLAYBOY- De jeito nenhum?



FERNANDO- Não. Ele é uma pessoa muito austera, impõe muito respeito. Não tem disso, não. Apesar de ser um sujeito bem-humorado. Numa das primeiras conversas que eu tive com Fidel, ele perguntou o que eu tinha achado de Cuba. Eu falei que estava impressionado com a educação, com a saúde e com o fato de a revolução ter acabado com os bohyos. Ele disse: “Como? A revolução não acabou com os bohyos”.



PLAYBOY- O que é bohyo?



FERNANDO- É favela, barraco de favela. Eu disse: “Acabou, sim. Estou aqui há um mês e meio, rodei o país inteiro e não encontrei nem um único bohyo”. Ele falou: “Olha, sei lá, pode ser alguma inibição sua...Nós acabamos com um monte de coisa aqui, mas se um dia a revolução acabar com os bohyos o povo me derruba, acaba a revolução”. Aí um rapaz cubano que estava junto, meio sem jeito, me perguntou: “O que é que você está querendo falar?” Eu disse: “bohyo, caiapa”. Ele falou: “Não, isso é bohio. Bohyo é xoxota” (risos). Era tudo uma questão de pronúncia.



PLAYBOY- Nessa época, quando você foi para Cuba pela primeira vez, os passaportes brasileiros tinham esse carimbo: “Válido para todos os países, exceto Cuba”.



FERNANDO- Exatamente. Eu fiz questão que os cubanos carimbassem meu passaporte, apesar da advertência expressa. Eu não queria que parecesse que eu tinha ido lá clandestinamente.



PLAYBOY- Como é que você conseguiu ir para á?



FERNANDO- Eu estava pedindo um visto para os cubanos desde o início dos anos 1970, quando ainda trabalhava no Jornal da Tarde. Um dia, quando eu estava em Portugal fazendo uma reportagem já para a revista Visão, me avisaram que o visto tinha saído. Viajei no começo de 1975. A única exigência que fizeram foi que eu cortasse a barba, para que na volta não tivesse problemas com o pessoal mais linha-dura, que poderia achar provocação. Cortei em Buenos Aires, no caminho de volta.



PLAYBOY- E chegou a ser preso?



FERNANDO- Não, dessa vez, não. Acabei sendo preso numa outra volta de Cuba, em 1978, pelo dr. Romeu Tuma (então diretor da polícia política paulista, o Dops, hoje senador eleito pelo PL), com quem hoje tenho relações cordiais. Eu e minha mulher na época, a Rúbia, fomos presos no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, e o Chico Buarque e o (escritor)) Antônio Callado foram presos no Galeão, também com suas mulheres, a Marieta e a Ana. Estávamos voltando de um concurso da (entendida cultural) Casa das Américas, em que tínhamos sido jurados. O Chico e a Marieta ainda estavam trazendo um bebê, filho de um baterista, e foram presos pela Marinha, eles e a criança. Abriram a bagagem da gente. A única coisa perigosa que encontraram nas minhas malas foi charuto. Caixas e caixas de charuto que, aliás, apreenderam. Um dia ainda vou processar o Dops, processar o Estado de São Paulo por não devolver minhas caixas de charuto.



PLAYBOY- Que não custa barato, nem em Cuba.



FERNANDO- Que era meu pô! Independentemente do preço, paguei do meu bolso. O meu medo era que o Chico tinha feito show para os exilados que estavam em Cuba e eu tinha gravado o show com meu gravadorzinho. Uma coisa amadora: eu pus o gravador no palco só para ter o registro, e estava com a fita no bolso da calça. Por sorte não mexeram no meu bolso, porque isso poderia comprometer o Chico. Cantar para exilado naquela época, pô, isso era um delito. Especialmente exilados em Cuba, que eles consideravam mais perigosos do que o pessoal que estava exilado em Paris, porque supostamente estariam se preparando para a guerrilha.



PLAYBOY- E o pessoal de Paris se preparando para ser presidente da República (risos).



FERNANDO- É, era uma visão equivocada da repressão, porque muita gente que estava na luta armada se exilou em Paris, ou não? E em outros lugares, na Itália, em outros países da Europa.



PLAYBOY- Você sempre foi ligado em política, desde pequeno?



FERNANDO- Sempre. Com 12 anos de idade já distribuía santinho para o Tancredo Neves em Belo Horizonte, naquela eleição para governador que ele disputou com o Magalhães Pinto. Fiz campanha para um deputado que já morreu, Jorge Ferraz, que acabaria sendo dirigente do MDB – ele era meu vizinho e eu era amigo dos filhos deles, então eu ia junto pelo interior de Minas, pedindo voto, acompanhando comício. Sempre gostei de política e continuo gostando. Há pouco saí da campanha (presidencial) do (ex-governador de São Paulo Orestes) Quércia. Ajudei o Quércia modestamente, até porque primeiro eu ainda estava escrevendo o Chatô, depois estava lançando o livro, mas, enfim, estava lá na campanha. Fiquei com ele até o fim.



PLAYBOY- O que você quer dizer com “fim”?



FERNANDO- Fiquei com o Quércia até o dia das eleições. Muita gente caiu antes.



PLAYBOY- Quem, por exemplo? O governador Fleury?



FERNANDO- Não sei.



PLAYBOY- Foi o que saiu em vários jornais.



FERNANDO- Não sei. Eu fiquei. Passamos o dia da eleição reunidos no sitia da minha mulher perto de Campinas, as famílias e um grupo de amigos, e ele estava muito bem – já sabia, obviamente, que ia perder, mas estava bem-humorado, com o espírito muito alegre. Não falou em nenhum momento o que ia fazer dali para a frente, nem perguntei.



PLAYBOY- Você já perdeu muitas amizades por causa dessa sua ligação com Quércia, não é?



FERNANDO- Uma porrada.



PLAYBOY- Você não acha que pode estar levando a extremos o agradecimento por ter iniciado a vida pública ao lado dele, depois por ter sido secretário do governo dele...



FERNANDO- Não, espera aí. O que me aproxima do Quércia não é uma gratidão por ter sido secretário dele, nem é uma fidelidade à pessoa dele. É uma convicção der que ele tem mesmo um compromisso com os mais pobres, com a tigrada do Brasil, mesmo. Além disso, assim como o Brizola, o Quércia é um político que construiu toda a carreira dele nas urnas, nunca foi biônico, nunca se comprometeu com a ditadura, com a tortura, numa época em que muita gente que hoje posa de democrata, sabe, estava do lado de lá do rio. Eu mesmo vi, testemunhei nas greves do ABC, em 1979, muito antes de ele ser governador e eu ser secretário dele, o nosso carro cercado pelo DOI-Codi. Jogaram bomba de gás dentro e ele não permitiu que prendessem o (sindicalista) Alemãozinho – o mesmo Alemãozinho que não o apoiou agora, apoiou o Fernando Henrique...



PLAYBOY- Desde quando você conhece o Quércia?



FERNANDO- Eu já tinha feito uma reportagem com ele, em 1974, quando ele se elegeu senador. No ano seguinte teve um episódio que nos aproximou mais, justamente quando eu tinha voltado daquela minha primeira viagem a Cuba e estava escrevendo A Ilha. Não me prenderam no aeroporto mas, meses depois, numa sexta-feira, dois oficiais do DOI-Codi foram me procurar no meu emprego. Eu já não estava mais na Visão, estava na Editora Três, fazendo o jornal Aqui São Paulo com o Samuel Wainer. Ficava no 14º andar de um prédio na Avenida Paulista. Lembro que o Domingos Alzugaray e o Luiz Carta, donos da editora, ficaram enrolando os dois policiais lá, enquanto eu escapava pelas escadas. No dia seguinte, mataram o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, no DOI-Codi. O Quércia, já senador, foi ao enterro do Vlado, e agora não me lembro se foi o George Duque Estrada, se foi o Rodolfo Konder ou o Paulo Markun – um dos jornalistas que estavam presos e puderam ir escoltados ao velório, a pretexto de dar um abraço no Quércia cochichou no ouvido dele: “Tenta achar alguém da família do Fernando Morais e conta para ele que na hora do pau, da tortura, eles querem saber o que é que ele foi fazer em Cuba”. Então o Quércia se deu ao trabalho de procurar o Carlinhos Wagner, meu irmão, hoje falecido, para dar o recado.



PLAYBOY- Aí você fez o quê?



FERNANDO- Assim que escapei do prédio na Avenida Paulista eu sumi por alguns dias, junto com minha mulher na época, a Rúbia. Um amigo me emprestou uma garçonnière que tinha ao lado do La Licorne, uma boate famosa na Boca do Luxo da época. Não deixa de ser engraçado você ir a uma garçonnière com a própria mulher. Aliás, tinha uma coisa lá que me chamou muito a atenção: um garrafão de 3 litros daquele líquido para limpar lente de contato (risos). Devia ser alguma tara de alguns dos usuários da garçonnière, porque esse líquido você encontra em frascos minúsculos, você usa gotas. E tinha um garrafão daquilo. Devia ser alguma perversão que até hoje não consegui decifrar. Depois, como bom mineiro, fui me exilar em Minas Gerais, na cidade de Guaranésia, onde o avô da Rúbia era o coronel político. Não tinha nenhuma televisão lá, a gente ficou uns quinze dias sem notícia nenhuma, sem nada para fazer. O engraçado é que os parentes da Rúbia, os tios e as tias, viam a gente ali, nós completamente deslocados, em pleno meio do ano enfiados na cidadezinha, sem nada que justificasse a nossa presença – e não perguntavam nada, silenciosamente solidários conosco. Aquela coisa de mineiro. Guimarães Rosa: “Você viu jacaré na lagoa?” “Não, eu não vi. Mas também ninguém viu” (risos). Até que o deputado Airton Soares, que era o meu advogado, descobriu com um oficial da Justiça Militar que o meu nome tinha saído da lista de capturas. Além do que eu já estava mais tranquilo, depois que meu irmão me passou o recado do Quércia. O problema era só a viagem para Cuba. Resolvi voltar a São Paulo, depois de uma longa conversa com minha mulher, em que eu disse mais ou menos o seguinte: “Eu nunca dei um tiro, nunca assaltei um carrinho de picolé, não sou militante de nenhuma organização clandestina. Se a gente for embora, corre o risco de assumir uma culpa que não tem e a gente não sabe quando vai acabar essa ditadura...”.



PLAYBOY- Voltando então à questão do Quércia. Ele fez esse favor a você.



FERNANDO- Sabe, tem passagens da vida do Quércia...O primeiro pedido de CPI do Congresso para esclarecer o destino dos chamados “desaparecidos” foi ele que fez. A primeira emenda constitucional de uma Constituinte foi o Quércia que apresentou. Então, é um cara que tem uma história do lado do bem.



PLAYBOY- Se fosse escrever a biografia do Quércia, como é que você explicaria o patrimônio dele? Como é que alguém que não é rico entra na política, se dedica integralmente à política e fica rico?



FERNANDO- Deixa eu dizer uma coisa para você. Em 1978, o Quércia ainda não tinha sido governador, nem vice-governador. Não havia uma única denúncia a respeito dessas supostas irregularidades dele. Em 1978, então, eu era candidato a deputado estadual pela primeira vez e um dia precisava fazer um comício em Jales, a 600 quilômetros de São Paulo. Eu tinha uma Brasília velha, o fundo dela já estava soltando, não dava para pegar estrada com ela. Quando liguei para Jales e avise que não podia ir ao comício, me disseram para arrumar uma carona com o Quércia, que ele também estava indo ao comício. Telefonei ao Quércia e perguntei se ele poderia me dar uma carona. Ele respondeu que tudo bem, só que precisaria ir a Campinas, porque ele sairia de lá. Cheguei no apartamento dele e vi que era luxuoso – para os meus padrões, pelo menos, era um apartamento de gente rica. Achei que iríamos de Opala, mas fomos no avião dele, aliás, o próprio Quércia pilotando. Ele já tinha avião naquela época. Então, essa pergunta que você está fazendo eu já fiz para ele. E o Quércia me disse o seguinte: “Eu sou um homem de negócios desde os meus 18 anos. Eu compro e vendo terrenos, faço empreendimentos, faço incorporação.” Ele contou que quando tinha 14 anos comprava restos de tomates de um agricultor japonês perto da chácara do pai dele em Pedregulho, e ia vender em Franca, para ganhar dinheiro.



PLAYBOY- Mas ele ter avião em 1978 não prova muita coisa. A crítica a ele começa muito antes, quando ele foi prefeito de Campinas e justamente teria enriquecido fazendo incorporações, compra e venda de terrenos com o futuro Plano Diretor da cidade na cabeça.



FERNANDO- Eu vou dizer com toda a honestidade: se eu tivesse dúvida sobre a honorabilidade do Quércia, eu não teria feito a campanha dele. De maneira nenhuma. Agora, eu acho que a gente precisa tomar um cuidado muito grande, nós, jornalistas, para evitar os casos como o do (ex-ministro da Saúde) Alceni Guerra. O Alceni foi linchado, a reputação dele foi destruída, e ele foi absolvido de todas as acusações. Destruído, por uma campanha de imprensa. E não há mais nada, rigorosamente nada, contra ele.



PLAYBOY- Você investigou o passado do Quércia com o rigor com que pesquisou a vida do Chateaubriand?



FERNANDO- Sim...Não, evidente que não. Eu não fui em cartório ver, mas tenho convicção, pelo que sei, pelas informações que tenho, pelo que ele me disse e pelo que leio também. Porque não se provou nada contra ele.



PLAYBOY- Você acha que ele foi injustiçado na eleição para presidente?



FERNANDO- Não sei se ele foi injustiçado, se a expressão é essa. Acho que essas eleições tiveram um componente absolutamente atípico – acho que o próprio Fernando Henrique honestamente há de reconhecer que quem foi eleito foi o Plano Real, foi a moeda. Aqui entre nós, se dois anos atrás você falasse que o Fernando Henrique seria presidente da República, ninguém acreditava. Isso não significa um julgamento depreciativo da figura do Fernando Henrique, não, eu gosto muito dele, acho que ele tem uma biografia impecável. Seguramente é um dos intelectuais mais bem preparados do Brasil, embora tenha uma experiência política relativamente pequena. Mas a eleição dele foi atípica.



PLAYBOY- Você já foi duas vezes deputado e duas vezes secretário de Estado. O curioso é que, como jornalista, você nunca revelou nenhuma sede de poder dentro das relações. Nunca foi editor-chefe, diretor...



FERNANDO- Pelo contrário. Mas na política também. Eu sou uma pessoa sem o menor apetite pelo poder.



PLAYBOY- Mas ninguém chega a secretário de Estado sem ambições.



FERNANDO- O poder só me interessa na medida em que você pode usar aquilo como instrumento para realizar suas utopias. Exclusivamente. Não tenho vaidade pessoal, sabe? Bater continência, me chamar de excelência...Qual é? Sabe, a reverência do poder, o carro oficial...Para que carro oficial? Eu ia de moto para a secretaria, pô.



PLAYBOY- Secretário de Estado tem direito a guarda costas?



FERNANDO- Se quiser, tem. Na Secretaria da Cultura, durante o governo Quércia, eu acabei completamente, não fazia sentido. Ficou só um assistente militar que ás vezes resolvia problemas muito engraçados. A polícia prendia algum ator com maconha, então ligavam para mim: “Secretário, prenderam fulano de tal, que estava com fumo”. Aì eu ligava para esse assistente militar: “Olha, tem um probleminha aí e tal, relaxa o elemento” (risos). Na Secretaria da Educação, que eu assumi em 1990 no governo Fleury, eu tive de manter um esquema de segurança, por causa das passeatas, das discussões ás vezes ásperas com a militância da Apeoesp (a Associação dos Professores em São Paulo). Uma vez invadiram o meu gabinete e eu tive de dizer: “Aqui não, é meu lugar de trabalho, tem minhas coisas aqui”.



PLAYBOY- Como é sair do jornalismo e passar para o outro lado da trincheira? Quando você se elegeu deputado, por exemplo. A nossa imagem da Assembleia Legislativa é que aquilo lá é uma festa. Como é a sua visão, você que passou oito anos lá dentro?



FERNANDO- Foram dois mandatos diferentes. O primeiro, de 1978 a 1982, foi extremamente gratificante. Foi um mandato de oposição, exercido 90% fora da Assembleia, em porta de fábrica, em porta de cadeia. Em 1982, o PMDB ganhou a eleição em boa parte do Estado e os deputados do PMDB viraram despachantes de prefeitos. O prefeito precisa de uma verba da Secretaria da Educação para construir uma escola? O deputado vai lá e pressiona o secretariado. E eu não estava a fim de fazer isso, passar a vida em gabinete de secretario pedindo para ele cumprir a obrigação dele, que é construir escolas, delegacias, posto de saúde, não tem sentido um troço desses. E não deu outra. Acabou o segundo mandato e eu perdi a eleição para a Constituinte por não me ter sujeitado, como deputado estadual, a isso. E por falta de dinheiro também. Eu não ia tomar dinheiro de empreiteiro, chegar para ele e dizer: “Olha, o senhor me dá 1 milhão de dólares, que eu defendo seus interesses lá”.



PLAYBOY- Quanto custa em média uma eleição para deputado federal?



FERNANDO- Essa última, eu ouvi dizer aqui em São Paulo que teve candidato que gastou 20 milhões de dólares para se eleger.



PLAYBOY- Mas, com oito anos de Assembleia, você ganhou aposentadoria.



FERNANDO- Ganhei.



PLAYBOY- Quanto?



FERNANDO- É uma aposentadoria de 25% da parte fica dos vencimentos de um deputado. Dá uma bobagem...Uns 600 ou 700 dólares.



PLAYBOY- Essa aposentadoria precoce é uma das coisas que mais deixam a população indignada.



FERNANDO- Mas sabe que não tem como abrir mão? Eles depositam na sua conta, dá mais trabalho abrir mão do que receber. Todo mês você precisaria dar um cheque, depositar na conta da Secretaria da Fazenda...



PLAYBOY- Isso acabou em 1990 em São Paulo?



FERNANDO- Acabou, mas só dali para a frente. Quem já tinha, continuou com o direito adquirido. A lei que acabou com essa aposentadoria dos deputados foi apresentada pelo PT, mas sabe quem sancionou? O Quércia, que poderia ter vetado. Foi um dos últimos atos dele como governador.



PLAYBOY- Como secretário de Estado você ganhava quanto?



FERNANDO- Perto de 1 200 dólares.



PLAYBOY- Não acha pouco?



FERNANDO- Mas eu passei dois governos reclamando, do Quércia e do Fleury, que eu ganhava uma merda. Eles riam. Riam de mim, diziam que não podiam porque tinha a lei, o teto, isso e aquilo. Tinha gente nos dois governos com grana. No governo do Fleury, por exemplo, tinha um secretário, meu colega – inclusive meu advogado -, Manoel Alceu Alfonso Ferreira (ex-secretário de Justiça de São Paulo). O Manoel é milionário, todo mundo sabe. Então ele podia pegar aqueles 1 200 dólares ali e doar para uma instituição de caridade. Eu não. Eu precisava daquilo para pagar BNH, para pagar pensão da minha filha. Por casualidade, tinha dinheiro de direito autoral, mas acho isso uma hipocrisia, uma doença que vem de Brasília e vai até a prefeitura do município: o Estado sempre paga mal e muitas vezes fecha os olhos para o sujeito que rouba.



PLAYBOY- Algum esquema de corrupção bateu a sua porta?



FERNANDO- Nunca. Eles sabem em que porta bater. Ninguém nunca insinuou, nem milhões de dólares nem pequenos nem milhões de dólares nem pequenos favores. Nunca aconteceu de o sujeito dizer...Aliás, para não dizer que não teve nem pequenos favores, quando eu assumi a Secretaria da Educação me telefonou um amigo de infância de Belo Horizonte. A Secretaria de Educação de São Paulo, você sabe, é um negócio monstruoso – controla um orçamento de 2 bilhões e 700 milhões de dólares por ano. Mexe com montanhas de dinheiro, é um universo do tamanho da Dinamarca. Aí me ligou o amigo de infância de Belo Horizonte, que eu não via há muito tempo: “Aqui é fulano de tal”. Para falar a verdade, eu nem lembrava direito dele. “Olha, eu sou relações públicas de uma empreiteira mineira e estou te telefonando para dizer o seguinte: nós temos uma casa em Angra dos Reis, uma casa de veraneio, temos um jatinho e um helicóptero à sua disposição, quando você quiser”. Ele me convidou para passar um final de semana lá e respondi que não precisava, que minha mulher tem um sítio aqui em Campinas, aonde a gente vai sempre nos fins-de-semana. E ele: “Ah, você casou?”.



PLAYBOY- Aí ele perguntou qual é o número de anel de esmeraldas que ela usa (risos).



FERNANDO- Não, aí ele disse: “Tudo bem. Se você quiser ir sem a patroa, nós temos umas cunhadas lá e tal” (risos). Achei engraçada a expressão que ele usou. Acabei levando no bom humor e ele nunca mais ligou.



PLAYBOY- Comparando as duas experiências e olhando para a frente, você acha que tem mais futuro como político ou como escritor?



FERNANDO- O futuro a Deus pertence. Mas o que eu sei é que não tenho planos de disputar mais eleição.



PLAYBOY- Nenhuma?



FERNANDO- Eleição parlamentar, seguramente não. Não tenho dinheiro para isso – e, mesmo que tivesse, não poria nisso. Eleição majoritária é diferente: não só o partido banca, como você tem horário na TV para difundir sua candidatura.



PLAYBOY- Quando você fala isso, está pensando em candidatura para a prefeitura ou para o governo do Estado?



FERNANDO- Em nenhuma das duas. Eu não gostaria de disputar uma eleição, em princípio.



PLAYBOY- E o novo projeto de livro? Que personagens estão crescendo na sua cabeça?



FERNANDO- Tenho vários projetos, alguns novos, outros antigos. Um personagem que continua me interessando é um anarquista italiano chamado Oreste Ristori, que veio para o Brasil no começo do século junto com outros anarquistas que ajudaram a fundar o Partido Comunista aqui. Foi expulso do Brasil umas quatro ou cinco vezes, e sempre arrumava um jeito de voltar clandestino, até ser morto na Guerra Civil Espanhola. Eu descobri esse personagem em Milão, onde existe um arquivo histórico do movimento operário brasileiro, durante a pesquisa para o Olga. Tem a famosa história do padre Hosana, do Nordeste, que mata o bispo que tenta força-lo a deixar a mulher. Ele tinha um romance clandestino e o bispo vai fazendo pressão, ameaça excomunga-lo, retirar os votos. Ele mata o bispo a tiros. É uma história fascinante, dá uma peça de teatro.



PLAYBOY- Onde foi isso?



FERNANDO- Não sei se é Caruaru, Garanhuns... (Levanta-se para apanhar um recorte de jornal) Olha que maravilha: “Eu mataria o bispo de novo”.



PLAYBOY- Que outro personagem?



FERNANDO- Tem o general Setembrino de Carvalho, conhecido como “Mata Cachorro”, que era o general que as Forças Armadas destacavam para reprimir todos os movimentos sociais, desde o final do século passado até a Coluna Prestes. É uma figura muito interessante. Mas, sabe, não preciso partir obrigatoriamente de um personagem. Pode ser um episódio, um crime. Por exemplo, esse caso do menino que matou a família toda em São José dos Campos (SP), eu estou com a boca cheia d´água – com todo respeito à memória dos falecidos. É muito melhor que a história de A Sangue Frio. Se você põe o Truman Capote para contar esse crime aí, dá de dez no A Sangue Frio.



PLAYBOY- E a história do personagem Fernando Morais?



FERNANDO- Eu vivi em Mariana, cidade histórica mineira, profundamente religiosa, até meus 4 anos. Meu pai era bancário, gerente do Banco da Lavoura, e era ateu. Alguns dos meus oito irmãos minha mãe conseguiu batizar na surdina, mas a maioria não foi batizada, eu inclusive. Quando os meus dois irmãos mais velhos – o Carlinhos Wagner e a Gilda – chegaram na idade de ir para o colégio, meu pai não quis coloca-los no seminário nem no colégio de freiras. E foi a Belo Horizonte procurar um internato. Entre o que ele podia pagar e a qualidade que pretendia para a escola dos filhos, o meio-termo acabou determinando a escolha do Colégio Batista Brasileiro de Belo Horizonte. Naquela época as figuras mais importantes de Mariana eram o prefeito, o bispo, o delegado de polícia e o gerente do único banco da cidade. Quando o bispo dom Helvécio Gomes de Oliveira soube que o gerente do banco tinha feito, veio até nossa casa paramentado, vestido de bispo. E começou a dar um sermão no meu pai, de dedo em riste na cara dele. Disse que não permitia que o gerente do banco onde a Cúria depositava o dinheiro educasse suas crianças num colégio batista, num colégio protestante. Meu pai, primeiro educadamente, disse para ele que não admitia ser tratado daquela maneira, na casa dele, na frente da mulher dele, na frente dos filhos. E o bispo continuou muito agressivo, insultando meu pai, e aí não teve outra alternativa senão encher o bispo de porrada (risos).



PLAYBOY- Daí sua fascinação pelo padre de Caruaru!



FERNANDO- Acho que o meu pai tinha toda a razão. Só que o bispo baixou uma sentença de excomunhão vitanda, o que significa que só pode ser revertida por uma decisão do papa. E meu pai teve de sair de Mariana e foi para Belo Horizonte. O que, por essas ironias do destino, talvez tenha determinado nossa vida – meu pai chegou a vice-presidente do banco e eu estou aqui. Um pouco por essa casualidade, pela mão de Deus (risos).



Publicado originalmente na revista Playboy em dezembro de 1994

Nenhum comentário: