sexta-feira, 14 de junho de 2019

Grandes entrevistas de PBY: Nelson Gonçalves em 1998


Playboy entrevista Nelson Gonçalves


Uma conversa franca com o cantor de A Volta do Boêmio sobre sexo, drogas e rock´n´roll, assuntos que, nessa ordem, apimentaram sua agitada vida.

O senhor espigado que vem de um dos cômodos do apartamento, aparecendo logo depois de anunciado pela simpática empregada, não é nem de longe o que se espera dele – uma espécie de sócio fundador da noite e dos seus pecados mais graves. Tem uma expressão descansada nos olhos miúdos, exalta a lavanda do banho recém-tomado e, para quem quiser conferir, exibe enorme dosagem de vitalidade comprimida num corpo que o boxe ainda classificaria como peso-médio. Ele, aliás, lutou mesmo a vida inteira – inclusive nos ringues, como profissional. Mas a classificação pugilística não condiz, absolutamente, com o homem. Nelson Gonçalves não é meio nem médio. É excessivo, na arte e em tudo o que faz, alternando golpes de violência e ternura, como se encarnasse o drama de suas canções. Então, percebe-se: a grande diferença é que ele não está interpretando nada. Ele é mesmo aquilo tudo que canta – e muito, muito mais do que se possa supor.

Como se sabe, Nelson já cheirou a morte em carreirinhas, foi preso, bateu bastante e apanhou um tanto, foi subestimado como artista, humilhado em gravadoras, ameaçado por bandidos e policiais, cometeu pequenos e grandes deslizes. Mas nunca jogou a toalha.

Da varanda do apartamento da filha mais nova, Margareth, também sua empresária, Nelson contempla os prédios em volta, volumosos pedaços de morro que cercam o bairro da Gávea, no Rio, e boa parte de seu próprio passado. Mudou-se provisoriamente para cá no ano passado, após separa-se da terceira mulher, Maria Luiza, com quem vivia desde os anos 60. Já o passado...Bem está ganhando os novos contornos do presente, construídos, como sempre, sob forte conteúdo emocional. No momento, o trabalho consiste em divulgar nacionalmente um CD que incluí no repertório Cazuza, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Lobão, Marina Lima e Lulu Santos, entre outros porta-vozes do pop nacional. Em resumo, um Nelson da pesada, só que cantando um rock adaptado ao seu estilo e à personalidade de sua voz.

A ideia não surgiu do acaso. Já há um bom tempo ele vinha notando, surpreso, que o público dos seus shows estava mudando de cara. As normalistas de outrora – hoje senhoras sobreviventes de um tempo em que o mundo chegava pelo rádio e a música vinha em forma de pesadas “bolachas” negras de 78 rotações por minuto – foram sendo substituídas por gente na faixa dos 25 anos para baixo. “Eles é que estão me acompanhando mais”, constata. “Acho que se cansaram de ouvir bobagens”.

O novo disco, portanto, seria uma forma de retribuição a esse pessoal mais novo. Não deixa de ser também uma oportunidade de chamar a atenção da geração mais jovem para o lado saudável da vida, uma preocupação que Nelson passou a ter desde que, um dia, após amargar sua ruína física, moral e financeira, entre os anos de 1958 e 1966, compreendeu com clareza o longo rastro de destruição que estava deixando para trás. O dinheiro, as propriedades, os amigos e o sucesso – tudo tinha se perdido. As mucosas nasais também foram corroídas. Por um milagre, salvou-se sua voz. O ré grave e profundo que aproxima o seu timbre ao de um barítono continuava claro e cristalino.

Acrescente-se a isso o fato de que, depois de 57 anos de carreira, a voz de Nelson não baixou um tom, como acontece com os cantores entre os 45 e 50 anos. Ao contrário: subiu um tom e meio. “Acho que Deus queria mesmo que eu continuasse a cantar”, avalia. E, historicamente, essa é outra ironia. Nos anos 40, Nelson não conseguiu ser aprovado em nenhum concurso ou teste de que participou, tendo passado por todas as grandes emissoras da época. Em sua defesa, diz que enfrentou dois problemas: a gagueira, penosamente agravada pelo nervosismo, e uma insuperável pinimba que, no Rio, então capital federal e cultural do país, se refletia em desdém dos cariocas em relação aos paulistas. O preconceito acabaria atingindo Nelson que, apesar de gaúcho, se criou em São Paulo.

“Na verdade, não sou gago”, protege Nelson sempre que se toca no assunto. “Sou taquilárico, que é o sujeito que pensa mais rápido do que consegue falar”. O fato é que a voz, falada, vinha entrecortada, em disparos. Quanto ao bairrismo, Nelson também pouco podia fazer. Nem entrar nos bares frequentados pelos artistas da época ele conseguia. Só algum tempo depois de gravar a primeira música – Sinto-me Bem, de Ataulfo Alves, grande sucesso em 1941 – e ganhar reconhecimento nacional, pôde tomar ali uma cachacinha.

Mas até aí o “Lado A” da vida de Nelson já rodara, e também não tinha sido fácil. Filho de seu Manoel e dona Libânia, cantores mambembes portugueses, ele nasceu pobre em Santana do Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, e continuou nos calcanhares da necessidade por muito tempo em São Paulo, para onde a família se mudou quando o menino tinha 2 anos de idade. Aos 6 ou 7, não se lembra ao centro, Nelson abandonou os estudos e passou a acompanhar o pai cantando nas feiras livres.

Só que o dinheiro, mais curto que as calças do garoto, levou Nelson a buscar algo mais rentável. Foi, na sequencia, engraxate, carregador de troncos de madeira, polidos de metais, garçom e, afinal, encantou-se com o boxe.

A reputação de valente e macho, consolidada no Rio, foi também reforçada pelas mulheres com quem se casou e viveu de fato – Elvira Molla, Lourdinha Bittencourt e Maria Luiza Gonçalves – e aquelas com quem dividiu a vida artística. Foram muitas e de todos os tipos e matizes.

Nelson tem sete filhos – cinco adotivos – e treze netos. Seu patrimônio, compreende, entre outros bens, 26 imóveis. Parece muito bem, apesar do enfarto sofrido em outubro do ano passado e de uma infecção pulmonar que o apanhou logo depois. Ainda tosse de vez em quando, entre um cigarrinho e outro. “Tenho 78 anos e me sinto como um rapaz de 25”, exagera feliz. “Posso transar todo dia”. Recondicionado por uma prótese peniana e apoiado numa copiosa discografia, Nelson não deixa margens a dúvidas.

Para ficar numa contabilidade rasteira, coisa só de Guinness: já vendeu cerca de 78 milhões de CDs, LPs, cassetes, discos de 78 rotações e compactos duplos e simples, pelos quais recebeu quinze discos de platina e 41 de ouro; até prova em contrário, é o artista com maior permanência numa mesma gravadora – 59 anos na BMG Brasil, antiga RCA. Foi também o ganhador do Prêmio Nipper, só concedido pela gravadora a uma outra pessoa até hoje, pela vendagem de discos: Elvis Presley.

Não é de estranhar que, numa rara incursão pelos Estados Unidos, tenha tido entre seus entusiasmados ouvintes uma legenda chamada Frank Sinatra, que segundo conta foi cumprimenta-lo e com que saiu dali para uma boa farra nos inferninhos do Greenwich Village. O vozeirão limpo e sem floreios bateu fundo até em gente como o menino Caetano Veloso, em Santo Amaro da Purificação (BA), que ao ouvi-lo cantar Maria Bethânia, do compositor pernambucano Capiba, teria recomendado à mãe, dona Canô, dar à irmã esse nome.

Para conferir essas e outras histórias com o próprio Nelson e entender por que é impossível riscar o seu nome dos nossos cadernos, PLAYBOY envio ao Rio de Janeiro o jornalista Bob Jungmann que teve um total de 12 horas de conversas de pura franqueza e emoção. Eis o que ele achou de tudo:

“Nelson não é de meias palavras e todo jornalista gosta disso. A entrevista rende. Mas, no caso, a sinceridade chega a ser incômoda, áspera. Isso até que a gente perceba que essa honestidade e despudor ao falar de si são tão próprios dele como a voz, o jeito simples de ser e a maneira de comentar as coisas que o incomodam sem nenhuma preocupação com tratos ou refinamentos, que poderiam pôr tudo a perder”.

“Ele não se conforma, por exemplo, com os brilhos das roupas, os requebros, os trejeitos e maneirices de muitos cantores e compositores que admira e com quem gravou. Nisso, não faz concessões nem a óculos escuros, acessório que figura no seu rol de objetos suspeitos e que eu trazia no bolso do paletó no dia em que fizemos a primeira entrevista. ‘Você não usa, né’, perguntou. Disse que sim, mas ele não se constrangeu: ‘É coisa de bicha, sinceramente’.

“Ele é uma pessoa tão rude quanto doce”, diz Leninha, 50 anos, a filha mais velha, astróloga, que já alguns anos prepara um livro sobre sua vida. ‘E na verdade ele não tem nem ideia do tamanho do cantor que é’, assegura. Por isso, ela vem recolhendo os muitos fiapos da história do pai, fragmentos de um todo que tenta montar com o auxílio de sua própria memória e pegando caronas em gravações de entrevistas que ele dá – incluindo esta.

“A melhor definição de Nelson Gonçalves, no entanto, colhi num táxi entre o Aeroporto Santos Dumont e a Gávea. O motorista, entrado nos 60 anos, fino no gosto musical, resolveu me agradar colocando uma gravação de Betty Carter no toca-fitas. Perguntou se eu gostava e eu disse que a achava muito boa. ‘E de Nelson Gonçalves, você gosta?”, provoquei. Ele apertou um botão que cuspiu a fita para fora, vasculhou as lembranças por alguns instantes e batucou no painel, numa entonação quase correta: ‘...Eu quero esse corpo / que a plebe deseja / embora ele seja / prenúncio do mal’. Feliz ao descobrir o contrário, passou a contar casos que tinha vivido embalado ‘pelas músicas do homem’, entremeando as passagens mais picantes com trechos antológicos da famosíssima parceria Nelson- Adelino Moreira, que se arrastou por mais de quarenta anos.

“Cantarolei também alguns pedaços de música, sem me dar conta do quase ridículo da situação – passageiro e motorista soltando a voz num trânsito pesado e modorrento. Já na Rua do Horto, próximo às majestosas palmeiras imperiais do Jardim Botânico, ele lembrou uma passagem de uma música que só me recordava vagamente (Meu Triste Long Play), e que mais tarde tive que pesquisar para reproduzir aqui, em alta fidelidade: ‘Ligue a sua eletrola/ vista o seu néglige / deite-se, acabe o cigarro / que eu no cinzeiro deixei / quero sentir que você / na maciez do seu ninho / dormiu ouvindo baixinho / meu triste long play”.

“Virou-se então para trás, com aquela cara de quem carrega uma certeza absoluta, e sentenciou: ‘O homem é foda!’

“Tem toda razão: é”

PLAYBOY- Uma das advertências que se faz a quem vai entrevista-lo é não ir de óculos escuros, que você considera um objeto suspeito. Por quê?

NELSON GONÇALVES- Não, eu não acho suspeito, eu considero coisa de veado mesmo (risos). E não é? Acho muito engraçado que esse pessoal, quando começa a fazer sucesso, faz o que pode para ser entrevistado, sair nos jornais e revistas, ir para a televisão, etc. Mas depois que ganha um pouco de fama, bota óculos escuros, tampando a cara para ninguém ver.

PLAYBOY- Você também implica com as roupas do pessoal e...

NELSON- (interrompendo) Há pouco tempo eu vi um grande cantor – não vou dizer o nome, quem quiser que adivinhe – num show em São Paulo, com uma roupa que parecia de um príncipe das Mil e Uma Noites. Fiquei reparando coisas douradas, cheio de balangandãs e pensei: “Que porra é essa?” Não é preconceito, entende? É que na minha época o sujeito era cantor porque tinha voz e não porque usava fantasia. Hoje, tem cantor que só canta emplumado e vira a bunda para as câmeras, pra mostrar. (Enfático) Ah, tenha paciência!

PLAYBOY- Consta que você também faz sérias ressalvas a certos gêneros de música, como a Bossa Nova.

NELSON- Gravei alguma coisa de bossa nova, mas confesso que não gosta muito daquela divisão de música. Sempre digo que bossa nova é música de apartamento, e eu sou cantor do terceiro uísque. O João Gilberto, por exemplo, não tem voz nenhuma... (Imitando, bem baixinho) “Se você disser que eu desafino, amor...” Não dá para ouvir, você tem que fazer assim (aproximando o ouvido). Bossa nova é um ritmo que cantei por causa do Tom Jobim e do Vinícius de Moraes.

PLAYBOY- Como era o seu relacionamento com o Tom Jobim?

NELSON- Pessoalmente ele era um chato.

PLAYBOY- Um chato? O Tom?

NELSON- Um chato. Era enjoado, cheio de coisas. Além disso, ele tinha uma rusga com o Ary Barroso – e o Ary Barroso era o Ary Barroso. Fez Aquarela do Brasil que estourou no mundo todo. E o Tom Jobim queria ser mais do que ele. Foi a Nova York, gravou com Sinatra, mas não adiantou, não passou o Ary. A música brasileira mais tocada no mundo até hoje é Aquarela do Brasil. Agora, o Tom era um grande compositor.  Em termos de música, era sensacional – mas não de letras. Fazia umas letras muito bobas.

PLAYBOY- E com o Vinícius, como era a convivência?

NELSON- Muito legal. Até os primeiros uísques. Depois de alguns, complicava porque ele ficava grogue. Vinícius, sim, esse era um tremendo letrista, um sujeito extremamente inteligente. Mais ou menos como é hoje o Chico Buarque. O Chico faz mal música, mas é um ótimo letrista.

PLAYBOY- E o Caetano e o Gil?

NELSON- Gosto muito do Caetano e do Gil, gravei músicas deles. Mas tenho minhas reservas pra algumas “frescalhadas” que eles adotaram, aquelas túnicas, aquelas coisas de Filhos de Ghandi, Filhos de Oxóssi e filhos de não sei mais quem...Aqueles turbantes...É como esse negócio de timbalada. É bum-pá-pá-pá, bum-pá-pá-pá. Não tem nada a ver. Música é outra coisa. Não é a toa que esse pessoal se emociona quando acompanha minhas gravações no estúdio. Tem uns até que choram de emoção. Eles ouvem a música deles cantada por mim e falam: “Meu Deus, eu fiz isso mesmo?”.

PLAYBOY- Dos cantores atuais, quais os que mais o entusiasmam?

NELSON- Poucos. Aprecio o (Agnaldo) Timóteo, que tem uma voz boa, forte, e está cantando com mais alma e coração, agora. Do Roberto Carlos eu gosto, mas como cantor é difícil falar, ele praticamente recita. Só que tem muito valor como artista, lógico. E...não sei, assim, quem mais apontaria.

PLAYBOY- E as mulheres? Ângela Maria?

NELSON- Ângela Maria já cantou melhor, mas ainda está cantando muito bem. Mas como a Elis Regina não tem ninguém. Era muito versátil. Foi a melhor de todas. Na minha época, tinha outra de quem eu gostava, a Dircinha Batista, que era muito boa mesmo. Acho que fico por aqui, sabe? Tenho pra mim que é determinado tipo de cantor, ou cantora, só aparece uma vez por século. É como no futebol: teve o Pelé, que foi o maior, e teve gente como o Zico, que foi bom mas não foi um Pelé. Na música, você tem o Frank Sinatra. É uma marca. Se acabar, acabou.

PLAYBOY- Por falar nele: você já gravou em inglês?

NELSON- Não gravei, mas já cantei em inglês, no Rádio City Music Hall, em Nova York. O Frank Sinatra foi lá me ouvir, e depois veio falar comigo. Disse: “Wonderful, Wonderful! Your voice is the best of the world”. Imagine o Frank Sinatra me dizer que minha voz era a melhor do mundo. E arrematou: “It´s impossible for me to sing like you, so simple”. (É impossível para mim cantar como você, de modo tão simples).

PLAYBOY- Vocês se conheceram melhor ou ficou nisso?

NELSON- Fomos para umas boatezinhas que ele conhecia, uns lugares fechados, inclusive com muita puta e veado. Mais tarde apareceu lá a (cantora) Maysa Matarazzo, que veio me cumprimentar e se sentou no meu colo. Sinatra quis saber quem era, eu disse que era uma cantora brasileira. Ele olhou pra ela sentada na minha perna e perguntou: “Ela é louca?”. Falei pra ela: “Ô Maysa, se ajeita aí que você não está agradando o homem” (risos).

PLAYBOY- Os fatos de sua fita transparecem nas letras de suas músicas. A propósito: você ainda escreve?

NELSON- Claro. Tenho muitas letras inéditas.

PLAYBOY- Opa! Queremos ouvir uma, pelo menos. Pode ser?

NELSON- Bem, vou recitar o trecho de uma, que se chama O Mais. (Dando explicações preliminares). Quando eu falo O Mais estou me referindo ao momento maior do amor, o beijo, da saudade. É assim: “Tu és o insensível mais de toda a emoção / Tu és, de todo o céu, o quente e o mais inferno / Tu és, de todo o frio, o mais verão / Tu és, do mais verão, o inverno onde me hiberno”. Mas eu acho que tem que me levar junto para explicar o que quer dizer (risos). O Chico Buarque me disse: “É linda, mas eu não entendi porra nenhuma” (risos).

PLAYBOY- Mas o pior problema não seria a indigência das letras das músicas que alguns desses cantores que você descreve cantam?

NELSON- Bem, se você for ver, realmente tem pouquíssima gente fazendo alguma coisa que se aproveite. Veja isso (recitando): “Menti, e como consequência perdi teu amor e tua inocência / Sou agora uma saudade esquecida / uma lembrança perdida / Eu sou o vazio que fica depois do amor / Sou o tédio, o ódio /  Sou o despeito / Sou tudo o que não é direito / Eu sou o esquerdo do amor”. É minha, essa. Chama-se O Esquerdo do Amor. Vê se fazem alguma coisa assim hoje em dia!

PLAYBOY- Lembra Lupicínio (Rodrigues, compositor gaúcho). A propósito, pouca gente sabe que você é gaúcho. Como foi nascer na fronteira com o Uruguai?

NELSON- Sou filho de portugueses, cantores ambulantes. Eles cantavam nas feiras livres, praças. Meu pai tocava violão, minha mãe cantava e depois eles corriam aquele célebre pires. Meu velho também fazia umas poesias e eles vendiam por uns 500 réis. Por isso nasci em Santana do Livramento. Fui para São Paulo quando tinha 2 anos.

PLAYBOY- Como foi a chegada à Paulicéia?

NELSON- Foi uma barra. Ficamos uns dois anos no Canindé, mas aquilo, nos anos 20, não era brincadeira ficava inundado a cada chuva. Em 1929 fomos para o Brás. Meu pai comprou uma casa na Rua Almirante Barroso, 928, custou se não me engano 9 contos de réis. Foi nessa casa que me criei.

PLAYBOY- Muita dureza?

NELSON- Demais. Comecei a trabalhar muito cedo. Mas como sempre cantei, desde pequenininho, era sempre chamado para cantar na escola também. No recreio os moleques me gozavam: “Olha o tenorzinho”. Um dia, quando a professora me escalou para cantar, falei que não ia. Ela insistiu. Naquele vai-não-vai, joguei o tinteiro nela. Veio a diretora, aquele forrobodó (risos). Naquele tempo o castigo era duro! Me botaram num quarto escuro com uma caveira, um lugar para assustar a molecada (risos). E o chão era cheio de milho, para a gente se ajoelhar em cima. Fiquei ali um tempo, mas achei aquilo demais. Aproveitei para quebrar o esqueleto. Arrebentei aquela coisa toda, arrombei a porta e fui embora pra casa. Cheguei e minha mãe estranhou (imitando sotaque lusitano): “Já vieste? O que aconteceu para chegar tão cedo?” Ela ficou uma fera. Aí chegou meu pai (voltando a carregar o sotaque): “O quê? Não quiseste cantar o hino da tua pátria? Tu é muito safado!”. Aí pegou o cinto e mandou ver pra cima de mim.

PLAYBOY- Apanhou muito?

NELSON- Já viu, né? No dia seguinte, ás 6 horas da manhã, ele me acordou. Me enfiou um calção, uma blusa, pegou um caixote de cerveja vazio, os livrinhos de poesia dele, uma bolsa que naquele tempo a gente chamava de bornal, e fomos atrás de um ceguinho, o Toninho, que tocava bandolim. Seguimos para a feira do Pari (bairro da zona norte de São Paulo). “Chegando lá” – ele disse – “tu sobes no caixão, eu faço a introdução no violão e tu começas a cantar A Malandrinha. (Batucando na mesa): “És malandrinha, não precisas trabalhar”. Não tive como escapar. Subi e cantei.

PLAYBOY- Gostaram da sua estreia?

NELSON- Quando acabei, todo mundo bateu palma, foi aquele negócio. Mas eu era muito pequeno. Estava assustado como aquela gente toda em volta. Aí meu pai falou: “Agora vai correr a bolsa, anda”. Eu pedia: “Dá aí alguma coisa para ajudar o ceguinho”. Comovia mais o pessoal, entende? Mais adiante, parava na frente de um botequim e cantava de novo. E assim ia.

PLAYBOY- O dinheiro era suficiente?

NELSON- Menos para o ceguinho.

PLAYBOY- Como assim?

NELSON- Meu pai, que sempre foi malandro, pegava o dinheiro e dizia, sumulando a divisão: “Para ti, ceguinho, 1 mil réis. Para mim, outro mil réis. Para meu filho que é menorzinho 500”. Só que ele botava 500 réis pro ceguinho, 1 mil pra mim e 1 mil pra ele. Era um roubo desgraçado (risos).

PLAYBOY- Quanto tempo durou a embromação?

NELSON- Um ano a um ano e meio. Até que eu cansei e disse que não queria mais cantar. Arranjei um emprego na Tamancaria Campos, no Brás. Minha função era carregar troncos de madeira para fazer os tamancos. Rapaz, carregava tanta madeira que criei um calo aqui nas costas!

PLAYBOY- Como carregador de troncos, então, você era pau pra toda obra? (Risos.)

NELSON- Era, tanto que fui promovido para a seção de serragem dos tamancos (risos). Estava com uns 12 anos. Trabalhei lá até que meu irmão me arranjou um emprego na Wolff Metais. Fui ser polidor. Sabe o que é isso? Você tem que pegar umas cinco ou seis facas de uma vez numa mão e polir no esmeril. Fica pretinho com a fagulhada que sai. Saía da fábrica umas 5 horas e ás vezes ia bater uma bolinha perto da Estação Bresser.

PLAYBOY- Futebol? Não consta isso em nenhuma reportagem sobre você.

NELSON- Mas eu jogava. Foi jogando bola, inclusive, que um dia eu conheci um tal de Venâncio Fernandes, que mais tarde se tornou campeão brasileiro de boxe na categoria peso leve. No meio de uma pelada, ele um dia me deu uma porretada. Fui achar ruim e ele me embolachou todo. Cheguei em casa todo ensanguentado. Meu irmão perguntou o que tinha acontecido e fomos atrás dele. Não achamos mais. Mas aquilo ficou na minha cabeça. Pensava: “Que merda! Ainda vou à forra”. E aí, quando fiz 16 anos, disse para mim mesmo: “Vou jogar boxe”.

PLAYBOY- Uma decisão tomada de sangue quente, então?

NELSON- Foi. Larguei o emprego. Nem terminei o curso primário – vim terminar os estudos muito tempo depois, no Rio. Fui lutar na Academia Guarani, no Tatuapé. Mas não estava pensando no boxe como profissão. Jogava boxe para pegar o tal Venâncio.

PLAYBOY- E como foi o confronto?

NELSON- Não houve, porque quando eu estava pronto ele estava encerrando a carreira. De qualquer forma, resolvi continuar lutando. Fiz de umas trinta a quarenta lutas em São Paulo. E só perdi duas: a primeira e a última.

PLAYBOY- Como era possível conciliar o boxe e a música?

NELSON- É que, mesmo lutando, eu vivia cantando. Com os amigos, sozinho. Por isso me chamaram de “pugilista-cantor” e o apelido pegou.

PLAYBOY- Por que desistiu do boxe?

NELSON- Acontece que fui lutar em Santos com um uruguaio chamado Acosta. Era campeão no Uruguai, muito melhor que eu. Mas me anunciaram como “pugilista-cantor e fui pra cima. O sujeito ia lá e –plaft! – na minha cara. A torcida gritava: “Dá-lhe cantor” e o sujeito – plaft! – me batia. No segundo round eu já tinha levado uns quatro a cinco sopapos, daqueles feios mesmo. Aí, pensei: “Se eu ficar aqui, nem cantor eu vou ser mais”. Fui me aguentando o quanto pude mas o sujeito me pegou. Caí. O juiz começou a contar. Eu disse: “Por mim, o senhor pode contar até mil, que vou ficar aqui mesmo” (risos). Quando me levantei, decidi: vou parar com o boxe.

PLAYBOY- Você chegou a lutar com Éder Jofre, no Ibirapuera, não foi? Como foi o combate?

NELSON- Empatei com ele.

PLAYBOY- Um empate com Éder Jofre é a glória para qualquer um. Você não parou precipitadamente?

NELSON- Não sei, mas o fato é que depois daquela luta com o Acosta eu não queria mais.

PLAYBOY- Bom, depois que o Nelson Gonçalves boxeur saiu de cena...

NELSON- (Cortando)...Nelson Gonçalves, não, Antônio Sobral.

PLAYBOY- Era o seu nome de guerra – ou melhor de luta?

NELSON- (risos) Era. Acontece que meus pais não podiam saber que eu lutava. E se usasse meu nome verdadeiro – Antônio Gonçalves -, minha mãe ia descobrir na hora.

PLAYBOY- Mas por que seus pais não podiam saber?

NELSON- Primeiro, porque não gostavam de boxe. Segundo, porque não dava para viver do boxe. Sabe o que eu ganhava? Um cestinho de laranja e um bife desse tamanhinho. Não estou brincando: lutava em troca de comida. Daí porque naquela luta, em Santos, eu fiquei pensando: “Puxa, não ganho nada e ainda estou apanhando como uma besta...Vou é cantar no rádio”.

PLAYBOY- É sempre melhor um Nelson Gonçalves cantando do que um Antônio Sobral apanhando (risos). Mas onde foi que você começou?

NELSON- Bem, fui procurar uma prima da minha mulher, Tânia Carvalho, que foi cantora da Rádio nacional. Disse que queria fazer um teste. Ele me ouviu cantar e disse: “Puxa, você canta bem mesmo”. Aí me fez um bilhetinho para eu levar para o maestro Gabriel Migliori, na Rádio São Paulo. Isso foi em 1938. Entreguei o bilhete para ele e fiz um teste. Quando terminei, ele disse: “Taí, gostei de você. Vai ser contratado. Quanto quer ganhar?”. Eu não sabia o que dizer. Disse: “Não sei, o senhor vê aí”. Ele perguntou: “300 mil-réis por mês está bom?”

PLAYBOY- Pra você estava, lógico.

NELSON- Se estava? Aquilo era uma fortuna pra mim. Eu só disse baixinho: “Está bom”. Mas estava quase berrando de alegria por dentro. Quase que desmaio. E a estreia ficou para o programa de rádio Teatro Alegre, do Tom Bill. O apresentador era o Aurélio Campos que mais tarde foi deputado federal.

PLAYBOY- Você já se sentia seguro?

NELSON- Mais ou menos. Mas tinha ensaiado bastante. (Batucando na mesa: “Meu primeiro amor / Vem ouvir meus ais / São lamentos d´alma...”). Fomos para o estúdio e o Aurélio Campos me anunciou como Nelson Gonçalves. Era a primeira vez que me chamavam assim. Eles chegaram à conclusão que Antônio parecia nome de dono de botequim. Concordei. Quando veio a introdução da música, o violonista, sem-vergonha, em vez de tocar em dó menos, como a gente tinha ensaiado, começou em ré. Aí, quando eu tinha que entrar cantando, não entrei.

PLAYBOY- Desistiu?

NELSON- Pois é, não entrei. Fiquei mudo. Com habilidade, o Aurélio Campos falou qualquer coisa como: “Amados ouvintes, o cantor lamentavelmente está muito nervoso com a estreia. Assim, hoje não deu para fazer esta apresentação, mas na semana que vem ele volta”. Agradeci e saí do estúdio. Fui pra cima do violonista. “Como é que você faz um negócio desse?” Fiquei louco. Na semana seguinte, avisei a ele: “Vá lá se não erra de novo, hein? Te quebro esse violão lá no estúdio”. Ele disse: “Pode deixar”. Tocou direito, eu entrei certinho, foi uma beleza. Cantei três músicas. Fiquei então me apresentando na Rádio São Paulo.

PLAYBOY- Então o seu início de carreira não foi tão ruim quanto dizem?

NELSON- Ah, rapaz, teria sido bom se não tivesse acontecido a Segunda Guerra Mundial. Quando ela estourou, em 1939, a rádio mandou todo mundo embora, por medida de economia. Inclusive eu. Na verdade, não entendia o que a porra da guerra tinha a ver com a rádio...Fui então trabalhar na Rádio Cultura. Lá, inclusive, abri um barzinho para continuar a viver. Depois veio a Rádio Sul, onde voltei a ganhar 300 mil-réis por mês. Mas o fato é que São Paulo não tinha a mesma expressão que o Rio tinha. Eu ouvia a Rádio Mayrink Veiga, a Rádio Nacional, e pensava: “Tenho de ir para o Rio”.

PLAYBOY- Se você há era bom, já cantava...

NELSON- ...Eu tinha de arriscar. Criei coragem e peguei um trem, na segunda classe, com 20 mil-réis no bolso. Não conhecia ninguém. Fui parar numa pensão na Rua da Alfândega. Para dormir, num quarto com vários beliches, eram 5 mil-réis. Fiquei lá com o Zé Bambo, Deoclides e Zé Fechado – todos artistas de circo. E já no dia seguinte fui fazer um teste na Rádio Mayrink Veiga, com o César Ladeira.

PLAYBOY- Que música escolheu?

NELSON- (Cantarolando) “Se eu pudesse um dia / aos teus pés poria / toda a natureza...” Cantei bem, mas o César Ladeira disse: “Olha, meu filho, lamento, mas não gostei”. Saí amargurado. Fui para a Rádio Ipanema, fazer teste com o Carlos Frias. Ensaiei, cantei, e a mesma coisa: “Não é nada disso. Pode voltar para São Paulo”.

PLAYBOY- Como se explica uma coisa dessas?

NELSON- Havia uma rixa muito grande entre São Paulo e Rio. Quem vinha para o Rio era chamado de italianinho. E não tinha conversa o sujeito que não fosse daqui não tinha vez.

PLAYBOY- A coisa chegava a esse ponto de se vetar um artista de talento?

NELSON- Chegava. Era impressionante. Quer ver uma coisa? Fui procurar o Ary Barroso, na Rádio Transmissora. Me apresentei, expliquei que era cantor profissional, trabalhava etc. Ele topou me incluir entre os calouros, mas não cheguei nem à metade da música. “Pode parar. O que é que você faz em São Paulo?” Respondi que era cantor. “E o que você faz?”. Disse que antes lutava boxe. Ele então falou, na minha cara: “Pois volte para São Paulo e para o boxe, que você não canta nada”. Fiquei puto. E o pior é que eu sabia que era bom. Mas caía naquela briga entre São Paulo e Rio e ficava bloqueado por uma panelinha.

PLAYBOY- Era assim mesmo?

NELSON- Do jeito que estou falando. Sem dinheiro, voltei para São Paulo de caminhão. Fui ser garçom de um botequim que meu irmão abriu na Avenida São João. Fiquei lá uns dois anos. Até um dia conheci os compositores Rosano Monello e Oswaldo França. Eles me disseram que o Cássio Muniz, que tinha uma casa de eletrodomésticos na Praça da República, compraria 10.000 discos se eu gravasse na RCA. Pô, levei um choque.

PLAYBOY- Seria o primeiro disco, não é?

NELSON- Seria. Teria que gravar na Rádio Record, pegar uma carta do Cássio Muniz, vir para a RCA, aqui no Rio e estava feito. Não tive dúvidas. Fui para a Record, gravei duas músicas em cera. Quando ouvi, não acreditei. Tinha ficado lindo. Levei para o Cássio, que me fez a carta, confirmando a compra de 10.000 cópias. O problema era arranjar dinheiro para comprar roupas decentes e me segurar no Rio.

PLAYBOY- Você não tinha grana?

NELSON- Nada, estava duro. Sabe o que eu fiz? Fui para o caixa do botequim do meu irmão e comecei a aumentar os preços, na hora da conta. Um tiquinho aqui, outro acolá, no fim de alguns dias eu tinha 70 mil-réis no bolso. Me mandei e vim de novo para a pensão da Rua da Alfândega, onde reencontrei os rapazes do circo. Fui para a RCA, na Rua 1º de Março. O diretor de apresentação e fomos ouvir a gravação. “Muito bom, muito bom. Você canta muito bem. Onde fez essa gravação?”. Aí desgraçou tudo.

PLAYBOY- Ele não tinha gostado?

NELSON- Tinha. Mas naquela época eu era muito gago. Bastava dizer que tinha sido na Rádio Record, em São Paulo. Mas na hora, naquele entusiasmo, nervoso, comecei a gaguejar. Ele então olhou pra mim e disse: “Epa! Peraí! Saí daqui, seu gago sem-vergonha. Você não é cantor porra nenhuma!” Fui posto pra fora da RCA como ladrão de disco, acredita? (Risos.)

PLAYBOY- É difícil acreditar.

NELSON- Mas foi assim mesmo. Voltei pra pensão, contei o caso pro pessoal e eles se solidarizaram comigo. Eu queria bater no seu Vitório. Fiquei num estado de nervos desgraçado. No dia seguinte, ás 9 da manhã, eu já estava lá. Ele me viu e perguntou: “De novo aqui, gaguinho?” Já ia partir pra cima dele, mas nesse dia estavam gravando lá o Benedito Lacerda e seu Regional. Benedito viu a confusão e veio apartar. Quis saber o que estava acontecendo e o Vitório contou a história. Benedito quis ouvir o disco e depois perguntou: “É você mesmo?” Garanti que era. “Você cantaria agora para provar?” Topei. Fomos pra o estúdio. Ele puxou em si menos e eu ataquei. Aí ele gritou: “Chega”. Pensei: “Porra, mais um que vai dizer que eu não presto”. Virou-se para o Vitorio Lattari e disse: “Contrata esse rapaz que ele vai ser o maior cantor do Brasil” Ah, foi aquele alívio!

PLAYBOY- Quantos anos você tinha?

NELSON- Dezenove. Foram providenciar o contrato. Fui ler e vi que, no fim, eu ganharia 1 tostão por disco. Um tostão seria quanto, hoje? Acho que 1 centavo. Fiz as contas e vi que daria 1.300 mil-réis por trimestre. Mas marcamos a gravação assim mesmo.

PLAYBOY- Quem vê o Nelson de hoje não imagina esse aperto todo.

NELSON- Pois é. Mas aí, saindo do estúdio, na Rua da Carioca, encontro por acaso o Ataulfo Alves. Me apresentei, disse que queria gravar músicas de compositores consagrados, etc. Ele ficou intrigado, mas me mostrou um samba inédito. (Cantarolando: “Sinto-me bem quando estou na solidão...) Aprendi a música ali, na hora. Tenho essa felicidade, esse dom. Ele não acreditou e eu cantei. Ganhei a música.

PLAYBOY- Sinto-me Bem foi a sua primeira gravação em disco, não foi?

NELSON- Foi. Era um samba sincopado – o primeiro desse tipo gravado no Brasil. Quando o disco saiu, fui ver o movimento daquelas máquinas em que você botava um níquel e a vitrola tocava. Lembro até hoje que a minha música era a de número 21. Em uma semana a música tomou conta do Rio.

LENINHA- (Filha de Nelson, entrando). Posso gravar também? Sabe, é que estou fazendo um livro sobre papai.

PLAYBOY- Fique à vontade.

NELSON- (Retomando o assunto). Mas o problema é que eu não cantava nas rádios. E rádio era tudo, naquele tempo. Foi o Carlos Galhardo, inconformado, quem me levou para a Mayrink Veiga. Fomos falar com o Cidmar Machado, que era o diretor. Carlos Galhardo disse: “Esse é o homem que eu falei para você que vai fazer o maior sucesso no Brasil”. Cidmar mandou vir o contrato. “Seiscentos mil-réis está bom?”, ele propôs. Fechei na hora. Pra quem estava passando fome...

PLAYBOY- Foi aí que você começou a ganhar dinheiro?

NELSON- Ainda não. Estava numa merda de fazer gosto. Dormia na Praia do Flamengo, porque não tinha onde ficar. Mas quando começou a entrar o dinheiro da gravação do disco, em vez dos 1.300 que eu imaginava ganhar por trimestre entraram 17.300 mil-réis. Porra, era uma fortuna. Logo depois gravei Renúncia, que estourou no Brasil inteiro. Vendeu mais de 100.000 discos, um recorde absoluto. Daí, fiz mais de sete sucessos seguidos. E assim gravei o primeiro LP do país, em 1955. Fiz em 3 horas o disco todo.

PLAYBOY- Mas você não errava? A voz pode falhar, isso é normal.

NELSON- Vou dizer uma coisa: nunca repeti uma música na hora de gravar. Não erro e a minha voz não falha. Pelo menos, nunca falhei. E       olha que já gravei 127 LPs, umas 200 fitas cassetes, uns 200 compactos, 183 discos em 78 rotações e mais 26 CDs. Fora os álbuns, que são vendidos em caixas. É recorde mundial.

PLAYBOY- Você tem todos os seus discos?

NELSON- Tenho tudo, inclusive os de 78 rotações. Agora, a BMG está remasterizando o meu repertório, mas é muita coisa. Algumas músicas eu não me lembro mais. Outro dia, durante um show, um sujeito pediu: “Nadir! Nadir!” Eu perguntei: “Quem é Nadir?” Era uma música que eu tinha gravado e nem me lembrava (Cantando: ‘Nadir, oh Nadir / boneca encantadora...”) Pedi para ele ir falando a letra na frente e ia cantando depois (risos).

PLAYBOY- Quem era os bons cantores e compositores da época?

NELSON- Francisco Alves era o melhor. (Exagerando.) Ele cantava aqui na Gávea sem microfone e você escutava no Largo da Carioca. Era voz mesmo. Depois tinha o Orlando Silva, o Sílvio Caldas, o Vicente Celestino, o Ciro Monteiro cantando samba...

PLAYBOY- Como você escolhia o compositor? Era uma coisa intuitiva?

NELSON- Eu gravava as músicas que gostava, mas fiz muitas músicas também. (Cantando.) “Fica comigo esta noite / e não te arrependerás / Lá fora o frio é um açoite / Calor aqui tu terás...”. Escultura também é minha. Compus Ingrata, Olhos Negros...Tenho 104 músicas minhas gravadas. Já gravei tudo o que você já ouviu e nem imagina. Acabei de gravar rock. É um disco pra vender mais de 500.000 cópias. Só que é um rock romântico, à minha maneira.

PLAYBOY- Nelson Gonçalves cantando rock não parece meio esquisito?

NELSON- Vai causar um impacto desgraçado, rapaz. Aliás, a Polygram, quando soube, quis comprar 500.000 cópias na hora. E há pouco tempo, quando fui falar sobre o fim do contrato com a BMG, não quiseram nem conversa. Me ofereceram um (automóvel) BMW do ano e mais dois anos de contrato. Eu disse: “Desse jeito eu não aguento”. Não me deixam parar.

PLAYBOY- Vamos voltar um pouco no tempo. Como era a sua vida no Rio, no começo da carreira? Por exemplo: com quem saía nas noitadas naquela época? Saía com o Chico Alves, que era o cantor mais popular?

NELSON- É claro que saía. O Chico Alves era um grande amigo meu. Ele passava em casa de madrugada e gritava: “Ô, Metralha, vamos lá pro Jockey (Club do Rio de Janeiro)”. Eu descia, entrava no carro e íamos ver o cavalo dele, que era o King Salmon. Ele pegava uns torrões de açúcar, botava na mão e ia pra cocheira. Fazia assim (imitando o chamamento): tchui, tchui, tchui. O cavalo vinha, pegava o açúcar, ele apanhava o violão e começava a cantar: “Boa noite amor /; meu grande amor / contigo sonharei...” (Risos).

PLAYBOU- Isso é piada.

NELSON- Não, é verdade! Imagina a cena: Jockey Club, ás 5 da manhã, e o Chico Alves cantando para um cavalo.

PLAYBOY- Com tantas histórias assim, no meio da atividade artística, como é que você dividira a sua vida?

NELSON- A vida foi me acontecendo, entende? Teve a vinda para o Rio, o tempo que vivi na Lapa, a minha prisão em São Paulo...Mas a época da prisão foi a mais dura, mais complicada.

PLAYBOY- Não teve privilégios na prisão, já que você era famoso?

NELSON- Não, porque acabei sendo preso por tráfico, e não por consumo, o que foi um absurdo. Eu era viciado e não escondia isso, mas traficante, não, pô! Tanto que os promotores e os juízes reconheceram isso depois. Mas até aí eu tive que encarar o Presídio Tiradentes, e só quem esteve lá sabe o que é aquilo. Pra começo de conversa: ou você mostra que é homem, ou entra como veado e tá fodido.

PLAYBOY- Mas você chegar a ter problemas na cadeia?

NELSON- Tive muitos problemas. Logo que cheguei, percebi que teria que me impor ou estaria perdido. Então, perguntei a um sujeito lá quem era que mandava na nossa ala. Deram o nome dele. “Pois então diga a ele que eu falei que ele é um veado. Pode dizer” Dia seguinte, no pátio, pedi que me apontassem quem era ele. Fui até lá e confirmei com o próprio. “Sou eu mesmo, por quê?” Ele veio me peitar e dei lhe um soco. Quando caiu, dei-lhe uns pontapés, machuquei ele bastante. Saiu dali para o hospital. Quando voltou, fui visitar o homem, que estava todo enfaixado. Ele quis saber por que eu tinha feito aquilo. “Vamos dividir as ordens aqui, está bem?”. Ele topou e ficamos nós dois como xerifes.

PLAYBOY- Fazia tanta diferença ser xerife ou não?

NELSON- Claro! Por exemplo: pertinho da nossa cela ficava uma área onde os carcereiros batiam no pessoal e depois jogavam uns jatos de água fria na turma. Eu não conseguia dormir ouvindo aqueles gritos: “Pelo amor de Deus, não faz isso” Uma noite não aguentei e chamei o camarada que organizava as surras. Propus a ele pagar 200 réis para cada preso com quem ele não batesse. Fechamos o acordo e pude dormir. A partir daí ninguém mais foi espancado na nossa ala.

PLAYBOY- Dá para entender por que você diz que esse foi o período mais duro de sua história (risos). Mas teve muitos outros, não?

NELSON- Minha história tem um lado grosso e um fino. O lado fino é o da música.

PLAYBOY- Vamos mudar de disco e falar um pouco do Nelson político. Por que você foi candidato a deputado federal por Minas, se lançando por Caxambu? E por que não se elegeu?

NELSON- Tenho uma fazenda em Caxambu, recebi o título de cidadão de lá. Quer dizer, sou querido lá. Fiz comício com o Itamar Franco, com o Aureliano Chaves, com esse pessoal todo. Mas sabe quantos votos eu tive? Quinze mil. Dá para acreditar? E na verdade, no primeiro dia, quando começaram a abrir as urnas, soube que tinha mais de 160.000 votos. No segundo dia, 90.000. Algum tempo depois, 40.000. No fim, fiquei com 15.000. Pensei: “Como é que pode?” Um dia, andando na cidade, vieram dois camaradas falar comigo. “Nelson, desculpe vir falar com você assim, mas sabe como é, tinha um candidato precisando mais do que você, eu peguei aí uns noventa votos”. Aí o outro falou: “Olha, Nelson, eu também peguei 110 votos”. E então eu entendi o que tinha acontecido (Risos). Fazer o quê?

PLAYBOY- Falaram assim na lata?

NELSON- Na lata. Nem reclamei mais. Aquilo me deixou tão chateado que deixei que deixei a política de lado.

PLAYBOY- Quem eram eles? Você pode dizer?

NELSON- Não sei o nome deles. Eram do PMDB. Mas que roubaram, roubaram. Fiquei tão chateado que nem voltei mais a Caxambu até hoje. Preferiria mudar de assunto.

PLAYBOY- Só mais umas coisinhas. Por exemplo: em quem você votou para presidente nas últimas eleições?

NELSON- Não votei.

PLAYBOY- O que você acha do Fernando Henrique?

NELSON- Eu votaria nele. Acho que é muito bem intencionado e deve ser reeleito.

PLAYBOY- E Paulo Maluf?

NELSON- É muito empreendedor. Fala que faz e faz mesmo. São Paulo cresceu mais de 50% nos últimos anos. Eu votaria nele.

PLAYBOY- E Brizola?

NELSON- Brizola, não. Fez os Cieps e ficou naquilo.

PLAYBOY- Ok, vamos explorar um pouco alguns detalhes da sua vida pessoal. Você é religioso?

NELSON- Sou, sempre fui. Tenho muita fé. Rezo um terço todos os dias ás 6 da tarde.

PLAYBOY- Tem algum hobby?

NELSON- Gosto de jogaer pif-paf com uns amigos e meus filhos, pra me distrair. Acompanho futebol, também. No boxe, não perco as grandes lutas, as grandes mordidas (referindo-se ao ataque de Mike Tyson a Evander Hollyfield, no último confronto entre os dois pelo título mundial dos pesos pesados, em julho de 1997). E quando era moço gostava de cavalos de corrida.

PLAYBOY- Cavalos também?

NELSON- Cheguei a ter onze cavalos no Jockey. Dei nos onze de presente para um amigo. Um ano depois, ele me deu cinco tiros. Um dos tiros me pegou de raspão na cabeça e levei alguns pontos. Esse sujeito tinha uma gráfica, tinha dinheiro, mas era louco por um páreo. Como eu já estava de saco cheio dos cavalos, dei os animais para ele. Começou a apostar e perdeu tudo. E meio doido. Aí veio pra cima de mim: “Seu filho da puta, você aprontou com os cavalos”. Achou que a culpa era minha e me mandou chumbo. E pra me vingar, sabe o que fiz? Taquei fogo no carro dele. Peguei gasolina, joguei em cima e incendiei. Quando ele apareceu, gritei: “Estamos quites”.

PLAYBOY- História assim, só na Lapa carioca. Vamos falar um pouco sobre esse período? Queríamos saber suas relações com Madame Satã, por exemplo, já que você um dia disse que ele era um homossexual mais homem do que todos os que você já viu?

NELSON- E é verdade. Batia em doze policiais de uma vez, e brigava na mão. Parava uma viatura e ele chamava. “Podem vir!”. Em questão de segundos tinha uma meia dúzia de soldados no chão. A bicha era fogo. Como eu era cafetão e vivia ali, eu assistia isso.

PLAYBOY- Cafetão? Até isso?

NELSON- Já fiz quase tudo nessa vida, rapaz.

PLAYBOY- Como era ser cafetão na Lapa, naquele tempo?

NELSON- Eu tinha que me virar, né? Estava numa miséria desgraçada. Aí comecei com umas meninas, e o grupo foi crescendo. Tive umas dez, no total. Como briguei com o Miguelzinho Camisa Preta, criei fama de machão. E as mulheres passaram a pagar pra mim, entende? Elas me davam 5 mil-réis por semana, cada uma.

PLAYBOY- Quem era esse Miguelzinho Camisa Preta?

NELSON- Era o valente da Lapa, naquela época. O xerife era ele. Um dia, de tardezinha, eu estava com o ator Rodolfo Arena, já falecido, na Rua Mem de Sá, no Café Mantiqueira, tomando uma cachaça, quando entra um mulato forte. Entrou e me deu uma trombada assim (imitando o gesto) que derramou minha cachaça. Virei pra ele e disse: “Que é que já, rapaz?” Ele virou-se e respondeu: “Que é que há o quê?” Só de olhar, vi que ele tinha a intenção de me enfiar a mão. Então, dei-lhe um direto que botou o cara no chão. Fez um barulho – tóin! – e ele ficou no chão estendido. Me apavorei. Pensei: “Matei o homem”.

PLAYBOY- E como saiu dessa?

NELSON- Saí dali e desci a Mem de Sá. Por sorte me encontrei com o Madame Satã. Expliquei: “Olha, acho que apaguei um cara lá no Mantiqueira. Vai até lá confirmar e me avisa, porque nesse caso vou ter que me mandar”. Ele foi. Daí a algum tempo vejo que ele vem vindo junto com o Miguelzinho. Ele disse: “Você sabe em quem você bateu?” Respondi que não. “No Miguelzinho, rapaz. É ele quem manda aqui na Lapa”. Olhei para o sujeito e falei: “Me desculpe, não sabia que era o senhor”. Para minha surpresa, Miguelzinho me encarou e disse: “Não precisa pedir desculpa, não”. Gostei de você porque foi homem. Depois que eu caí, você não me bateu, não me chutou a cara, não me pisou, não fez comigo nenhuma covardia”. Fizemos as pazes. Mas aí correu na Lapa essa notícia e virei uma espécie de leão-de-chácara, apartando brigas. Só que fiquei pensando: “Não sou valente, não sou malandro e não sou otário, então estou fazendo o que aqui?” Não podia ficar me arriscando a morrer diariamente. Resolvi então me mudar da Lapa. Definitivamente.

PLAYBOY- Ou seja, a mudança encerrou um período tumultuado de sua vida, não foi? A sua dupla com Adelino Moreira é dessa ocasião?

NELSON- Não. Estamos falando de 1947 a 1950. Só fui encontrar o Adelino em 1952. Até lá eu gravava músicas do Herivelto Martins, Antônio Mesquita, Ary Barroso, Pixinguinha...

PLAYBOY- Dizem que Pixinguinha era uma das pessoas mais formidáveis de se conhecer. Você foi amigo dele?

NELSON- Muito amigo. Aliás, uma vez eu estava na Mayrink Veiga e soube que o Pixinguinha, o João da Baiana e mais alguém que não me lembro estavam abrindo um botequim em frente. A inauguração foi aquela festa. O pessoal, claro, encheu a cara. No dia seguinte, o bar estava com as portas fechadas e nunca mais reabriu: eles tinham acabado com o estoque. Beberam o bar todinho (risos).

PLAYBOY- Vamos tentar manter uma certa cronologia nesta entrevista. Quando você voltou para São Paulo? E por que isso aconteceu, já que você irradiou seu sucesso daqui do Rio?

NELSON- Bem, em 1956, quando ainda cantava na Rádio Nacional, uma vez estava voltando de Belo Horizonte, depois de uma temporada de shows por Minas. Muito cansado. Cheguei e fui dar uma volta para espairecer. Nisso, aparece uma pessoa, não vou dizer quem era. Me olhou e perguntou: “O que é que você tem? Está parecendo cansado”. Expliquei que estava mesmo esgotado. Ele me chamou para irmos ao bar El Greco. Fomos ao mictório e ele tirou lá um pó, bateu com a carteira, fez uma fileirinha, cheirou e disse: “Experimenta”. Cheirei também. Logo me passou o cansaço. Fomos tomar um uísque e quando o cansaço voltava, a gente ia dar uma cheiradinha. Naquela noite cheiramos umas seis vezes. Fui dormir ás 9 da manhã.

PLAYBOY- E daí em diante...

NELSON- Achei que aquele troço tinha me feito bem, e quando acordei fui procurar o sujeito. Cheirei mais e isso foi se arrastando a semana inteira. Sempre que eu queria, ia procurar o cara. Um belo dia, quando fui buscar mais pó, ele disse: “Não tenho mais, mas tem um sujeito aí que vende”. Aí é que está o negócio. Funciona assim: no começo, é de graça. Depois que você está viciado, tem que pagar. E não para mais. Você só quer cheirar, cheirar e cheirar. Comecei a não querer ir aos shows, a não querer a cantar. Passado algum tempo cheguei à conclusão de que não podia ficar mais no Rio, porque aqui não conseguiria me livrar da droga. Tinha uma turma de umas cinquenta pessoas que estava metida na coisa e com elas conseguia alimentar o meu vício. Resolvi ir para São Paulo.

PLAYBOY- Mas foi em São Paulo que você foi preso.

NELSON- Foi, mas a intenção era parar. Fui, primeiro, para um hotel. Depois, comprei uma casa no Parque Continental, em Osasco (município da zona oeste, na área metropolitana da Capital). Em seguida, comprei uma casa no (bairro do) Brooklyn. Fui preso nessa casa, em 1965.

PLAYBOY- Como aconteceu?

NELSON- A pessoa de quem eu comprava o pó me denunciou. Deixei de comprar dele e ele então foi à polícia, dizendo que eu tinha 1 quilo de cocaína em casa e que estava vendendo, o que era mentira. Os policiais arrombaram minha porta e me algemaram. Fiquei uma noite na delegacia e no dia seguinte fui para o Presídio Tiradentes. Um ou dois meses depois fui julgamento e ficou esclarecida a história. Pude provar que não traficante. De lá fui fazer tratamento numa casa de saúde e depois fui para cara, onde fiquei me recuperando.

LENINHA- (Interferindo) É importante destacar que papai teve uma coragem extraordinária, uma força de vontade extraordinária, uma força de vontade impressionante para continuar afastado das drogas. Sofreu demais.

NELSON- É verdade. Aluguei uma casa na Rua João Moura, em Pinheiros, me tranquei no quarto e joguei a chave pra minha mulher. Recebia a comida por baixo da porta. Se não fosse assim, ia cheirar de novo. Com acompanhamento médico, ficava o tempo todo dopado, para o meu organismo reagir à abstinência da droga. Amarguei o inferno durante seis meses. Dormia, no máximo, uns 20 minutos por noite, e ainda assim sentado. Até que um dia comecei a melhorar. Cheguei a dormir 3 horas seguidas. Comuniquei ao médico, que veio em casa e me receitou outros calmantes. Aí dormi bem, pela primeira vez em muito tempo. Acordei umas 6 da manhã, fui até o quintal e vi um padeiro entregando o leite, uma mulher varrendo a calçada. Foi a visão mais linda que eu já tive. Comecei a chorar. Pensei: “A vida está aqui”. Ganhei uma alma nova. Passei a fazer uns vinte shows por mês. A música foi minha terapia.

PLAYBOY- Mas como foi a volta do boêmio às paradas de sucesso?

NELSON- Quando estava na casa de saúde fui visitado por um diretor da RCA, o Paulo Rocco. Queria que eu gravasse uns fados. Expliquei que ainda estava em tratamento, mas ele conseguiu me tirar de lá para fazer essas gravações. (Cantando) “Não queiras gostar de mim sem que eu te peça...” (Nem às Paredes Confesso). Saí de madrugada, fui até a Avenida São João, gravei e voltei algumas horas depois para a casa de saúde. Só esse disco vendeu, num mês 60.000 cópias.

PLAYBOY- O que prova que você continuava cantando bem, apesar do tempo em que esteve viciado.

NELSON- Mas o fato de ter sido preso e internado para tratamento pesou demais. A partir dali ninguém queria saber mais de mim. Lembro que tinha uma apresentação já contratada no extinto canal 9, TV Excelsior, e o dono do programa, de quem também não vou falar o nome, vetou, dizendo: “No meu programa, não entra viciado nem ex-presidiário”. Minha mulher saiu de lá chorando. Fomos então à Tupi e ela contou o que tinha acontecido para o (Luciano) Calegari. Ele levou a história para o Sílvio Santos, que mandou me contratar por um mês e me apresentar uma vez por semana num programa aos domingos. Foi daí que meu nome entrou de novo em evidência.

PLAYBOY- Em resumo, você foi ficando raízes de novo em São Paulo.

NELSON- Juntei algum dinheiro. Já tinha aquela casa no Parque Continental, com piscina, aquela casa do Brooklin...Comprei um carro, contratei motorista. Mas os traficantes e a própria polícia não me deixavam em paz. Eles não acreditavam que eu tinha parado com tudo. Por isso fui pedir a bênção ao dom Agnelo Rossi, que era o cardeal-arcebispo de São Paulo. Me comprometi com ele a ajudar a construir o Hospital Infantil do Ipiranga, vendendo simbolicamente uns tijolinhos, nos meus shows. Nesse dia, por coincidência, foi lá o (marechal Arthur da) Costa e Silva (então presidente da República). Fui falar com ele sobre essa perseguição dos traficantes e da polícia. A televisão estava filmando. Ele então me abraçou, virou-se para as câmaras e disse: “Este homem aqui é um patrimônio nacional e meu amigo. Deixem ele em paz”. Pronto. A pressão acabou e voltei a cantar normalmente...

PLAYBOY- Qual foi o lugar mais esquisito em que você cantou?

NELSON- Ih, já cantei em cada lugar...Uma vez, voltando de Manaus, tive que cantar no avião. O embarque era ás 4 e meia da manhã. Quando me sentei, meio escondidinho, um sujeito me viu e gritou: “É ele!” Virou aquela balbúrdia a bordo e fizeram um coro: “Canta! Canta! Canta!” O comandante mandou me chamar e falou: “Acho melhor você pegar esse microfone e mandar ver, senão o avião cai” (risos).

PLAYBOY- Essas coisas acontecem com frequência?

NELSON- Acontecem. Estou me lembrando agora de uma viagem que fiz de São Paulo para Curitiba, de ônibus. Ia dar um show lá e voltar. Na divisa com o Paraná, tinha uma barreira policial. Entraram uns guardas pedindo documento pra todo mundo. Eu não tinha levado nada. Expliquei: “Sou o cantor Nelson Gonçalves, mas não trouxe nenhum documento”. O guarda achou que eu estava mentindo e começou a engrossar. E eu, que já sou gago, fiquei nervoso. Quando fico nervoso e tento falar, ninguém entende nada – só eu (risos). Discute daqui, discute dali, ele propôs: “Canta aí pra gente ver se é o Nelson mesmo; se for, você passa; se não for, fica em cana aqui e vamos te dar um cacete”. Cantei Renúncia. Quando acabei, o sujeito ainda não estava convencido: “Escuta aqui, gaguinho, tu não és o Nelson mas imitou ele muito bem. Só por isso vou deixar passar” (risos).

PLAYBOY- E a perseguição feminina? Todo mundo sabe que você foi muito assediado.

NELSON- É, não nego. Algumas não conseguia evitar mesmo. Dava uma ou duas com elas e caía fora. Vou lhe dizer uma coisa: tenho 78 anos e me sinto com 25. Está dito tudo, certo?

LENINHA- Papai, já que estamos lembrando essas histórias, conta aquela da mulher do coronel (Em tom de confidência.) Ele se encontrava com um coronel e a mulher dele e depois alguém tinha que ficar tapeando o coronel enquanto ele transava com ela (risos).

NELSON- É, era engraçado, porque ás vezes eu ficava lá, na boa, e aquilo virava um sufoco pra quem ficava enrolando o homem, sem assunto (risos).

PLAYBOY- As mulheres ainda o assediam muito nos shows?

NELSON- Durante os shows e depois também, no camarim. Outro dia uma mulher pediu a alguém pra fotografar enquanto ela me agarrava e tascava um tremendo beijo. Quando vi, o marido estava lá olhando. Pensei: “Puta merda, ainda vou me dar mal...” (Risos).

LENINHA- A verdade é que o papai era muito assediado. Eu tinha uns 15 anos e ficava impressionada com aquilo. Algumas moças vinham oferecer a virgindade para ele, lembra, papai?

NELSON- (Encabulado) Lembro. É que infelizmente se espalhou o boato...

LENINHA- (Visivelmente preocupada com o rumo da conversa) Quer que eu saia, papai?

NELSON- É, acho melhor. (Retomando, em tom de confidência, enquanto Leninha vai para a cozinha.) Contaram por aí que eu tenho o membro muito grande. E tenho mesmo: são 22 centímetros de comprimento. E é grosso: dá 19 centímetros de circunferência. Tanto que uso uma sunga apertada pro negócio ficar preso pro lado de cima. E no palco, depois da apresentação, elas vem me cumprimentar, abraçar, alisar. Nem sempre aguento e fico excitado, fica muito visível. Isso morreu de boca entre elas e...

PLAYBOY- Você foi um dos precursores da prótese peniana, não é? Funciona?

NELSON- Claro que funciona! A libido está na cabeça. Só não dá certo se o sujeito não tiver tesão aqui em cima. E isso eu tenho demais.

PLAYBOY- Ficou famosa uma história com a Elba Ramalho. Como foi?

NELSON- A gente foi gravar junto. No estúdio, quando cruzou as pernas, falei: “Minha filha, você está gostosa demais”. Um cara lá disse: “Ô Nelson, daqui a pouco você está passando a mão nas pernas da mulher”. Ela disse: “Deixa ele passar, o que é que tem?” Passei e disse, brincando:  Faço isso como profissional” (risos). Mas foi uma brincadeira, sem qualquer malícia.

PLAYBOY- Qual é a melhor mulher do Brasil?

NELSON- Vou de preferência nacional: Vera Fischer. Pelo tchan dela (risos). E quanto mais o tempo passa mais ela fica bonita.

PLAYBOY- Houve alguma artista por quem você tivesse se apaixonado?

NELSON- Teve a Lurdinha Bittencourt, cantora, com quem fui casado. A Beth White, americana, que foi uma paixão muito grande e que se suicidou.

LENINHA- (Retornando e aproveitando a oportunidade.) É bom ele contar, porque houve gente, na época, que achou que foi ele quem a matou.

PLAYBOY- Nossa!

NELSON- Acontece que ela tinha muito ciúme de mim. Uma noite eu disse que ia sair. Pediu: “Não sai”. Mas expliquei que voltava logo, só ia bater um papo e logo estava de volta. Ela concordou e eu saí. Quando estou na porta ouço aquele barulhão – bum! Corri pra dentro de casa e quando vi ela estava com o corpo todo em chamas. Tinha jogado álcool e ateado fogo. Peguei o cobertor, enrolei, mas ela já havia se queimado toda. Levei para o Hospital São Sebastião, mas depois de cinco dias ela não resistiu. Morreu segurando a minha mão e dizendo: “Que bobagem que eu fiz, não foi, amor?”.

PLAYBOY- Bem, mas isso já foi aqui no Rio. Por que você retornou para cá?

NELSON- Voltei em 1969 porque o Rio, na época, ainda tinha grande importância para a carreira de um artista.

PLAYBOY- Qual foi o maior público que você já enfrentou?

NELSON- (Pensativo.) Não estou certo, mas acho que foi em São Luís do Maranhão, numa praça. Disseram que tinha mais de 20.000 pessoas. E pra complicar, naquele dia havia greve dos músicos. Ninguém podia tocar um violão, nada. Tive que cantar durante 1 hora e meia batucando numa caixa de fósforos. Em Recife, no Teatro Guararapes, foi um problema também, porque ficou abarrotado. No Brasil todo é assim – casa lotada.

PLAYBOY- Você tem ideia de quantos shows já deu em toda a carreira?

NELSON- Não, não dá pra saber. Já subi em jegue pra me apresentar numa cidade, no Ceará, já andei dezenas de quilômetros pra ir de Icó a Natal, no Rio Grande do Norte, já percorri este país todinho. Conheço mais o Brasil do que qualquer caminhoneiro. Olha, não dá nem pra dizer o número de vezes que fiquei sem dormir, sem comer, pra não cancelar um compromisso.

PLAYBOY- Mas isso ás vezes acontece com um artista. Adiar show não é coisa tão rara.

NELSON- Comigo, não. É muito difícil. Me lembro que uma vez ia fazer uma apresentação no Norte ou Nordeste. Cheguei ao aeroporto, olhei o avião e cismei. Disse: “Não vou, não”. Me disseram que, nesse caso, teria que pagar uma multa pesada. Disse que pagava, mas não ia. Vim pra casa. O avião decolou e logo depois caiu, matando todo mundo.

PLAYBOY- Além de uma peça de 1986 sobre a sua vida, com o Diogo Vilela, o Agnaldo Timóteo está homenageando você com um disco só com músicas suas. Como você se sente?

NELSON- Encabulado. Gostei da peça, embora só mostre uma parte da minha vida. O grosso, mesmo, não conta. E com relação ao Agnaldo Timóteo fico muito feliz: agora ele está conseguindo vender disco (risos). Falando sério, ele canta bem. Conseguiu gravar minhas músicas sem deformar, como eu cantava. Ficou muito bonito.

PLAYBOY- Para encerrar: como você se definiria?

NELSON- Não sou melhor do que ninguém, mas não sou par: sou ímpar.

Publicado originalmente na revista Playboy em março de 1998

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