Playboy entrevista Carlos Heitor Cony
Uma conversa franca com o autor de Quase Memória sobre quase tudo, inclusive sabotagem comunista, vizinhas dadivosas e um avô bandalho
Nos cinco primeiros
anos de sua vida, informa a crônica familiar, Carlos Heitor Cony foi completamente
mudo. Nem uma palavra. No máximo, chorava. Até que, certa manhã, na praia de
Icaraí, em Niterói (RJ), vendo aproximar-se em sua direção, voando cada vez
mais baixo, o avião vermelho de um piloto apropriadamente apelidado Mello
Maluco (o futuro brigadeiro Francisco de
Assis Correio de Mello, que viria a ser ministro da Aeronáutica do governo
Juscelino Kubitschek, 1956-1961), o menino se pôs a correr – e, no sufoco,
berrou suas primeiras palavras, das quais não se guardou registro. Desandou a
falar, e foi o bastante para que se revelasse a existência de outro infortúnio
fonoaudiólogo: antes que o médico e ex-prefeito carioca Pedro Ernesto lhe
operasse a língua, aí pelos 15 anos de idade, ele esteve condenado também ao
constrangimento de apresentar-se ao mundo como “Tarlos Heitor Tony”. Operado,
precisou penosamente como Demóstenes, o orador grego, que para destravar a
gagueira discursava com a boca cheia de pedras.
Tanto obstáculo no
caminho do desembaraço verbal explique a sofreguidão com que o escritor e
jornalista carioca, hoje com 71 anos de idade, costuma falar, grudando pedaços
de palavras numa acelerada pasta vocabular, como quem quisesse recuperar o
tempo perdido. O mesmo se diga da sua copiosa produção literária e
jornalística. Cronista há quatro anos da
Folha de São Paulo, Carlos Heitor Cony não gasta mais que 10 minutos para
produzir seu palmo diário de prosa. Como escritor, já escreveu um romance – A Verdade de Cada Dia, de 1959 – em nove
dias para vencer, e venceu, um concurso literário. Para ficar apenas nesse
gênero, ele tem seu nome na capa de uma dúzia de romances – além de um “quase
romance”, o premiado Quase Memória,
que parido em três semanas, há dois anos estourou como best-seller, tendo se
multiplicado até agora em sete edições e 45.000 exemplares vendidos. Mas nem
mesmo ele sabe dizer quantos livros já escreveu, pois é autor, também, de
várias dezenas de histórias e adaptações de clássicos, com títulos como
Pinóquio da Silva, que já anos se vendem aos milhares de exemplares.
Da imaginação de Cony
já brotaram novelas da TV Manchete como Kananga
do Japão e pornochanchadas como Bacalhau,
erotizada versão tupiniquim do filme Tubarão.
Como ghost writer, pôs no papel as memórias de Juscelino Kubitschek, amigo
temporão com quem trocava confidências e batia pernas na noite carioca, no
final da vida do ex-presidente. Funcionário da Bloch Editores desde 1968, com o
breve interregno de uma separação que não deu certo, Cony ocupa até hoje, no
prédio da empresa, no Rio de Janeiro, as instalações que JK – amigo muito
próximo do fundador da casa, o falecido Adolpho Bloch – usou até a sua morte,
em 1976, e nas quais Juscelino volta e meia ia se abrigar, de mala e cuia, no
fragos de seus entreveros conjugais com dona Sarah Kubitschek. A carteira
profissional informa tratar-se de um modesto redator, mas na realidade Cony é
bem mais que isso no dia-a-dia da Bloch, algo como um executivo com redação
própria, cujo talento, habilidade e prestígio a diretoria recorre até mesmo
para espinhosas negociações bancárias e comerciais.
A entrada na Folha de São Paulo e a publicação e Quase Memória significaram pouco menos
que a espetacular ressureição, aos olhos do país, de um profissional que, tendo
experimentado gloriosa notoriedade nos anos 60, mergulhado em duas décadas de
semi-obscurosidade. Jornalista desde os 32 anos, Carlos Heitor Cony, um
intelectual que tem moderadíssimo apreço pelos políticos e que se diz, num
certo sentido, “alienado”, converteu-se num herói das esquerdas brasileiras ao
atacar, desde o primeiro dia, voz praticamente solitária, o golpe militar de
1964, em sua coluna no extinto jornal carioca Correio da Manhã.
Suas crônicas reunidas
no best-seller O Ato e o Fato, lhe
deram visibilidade nacional, ao mesmo tempo em que lhe valeram cinco prisões e
uma dezena de processos – num dos quais, movido pelo então ministro da Guerra,
general Arthur da Costa e Silva, foi condenado a três meses de cadeia, com
direito a sursis. Cioso de sua independência, não tardou Cony a se indispor
também com as esquerdas que o haviam entronizado num desconfortável pedestal.
Cansou-se, explicou, de ser o “gigolô das esquerdas”. E publicou, em 1967, o
romance Pessach: A Travessia,
história de um escritor que o acaso precipita na luta armada, no final traída
pelo finado Partido Comunista Brasileiro.
O livro, diz ele, foi
sabotado dentro da própria editora, a Civilização Brasileira, reduto de
intelectuais do chamado “Partidão”, entre eles o poeta Ferreira Gullar e o
teatrólogo Dias Gomes. Fato talvez, sem precedentes, a orelha do volume,
assinada pelo filósofo marxista Leandro Konder, fazia restrições ao romance que
deveria recomendar. O relançamento de A Travessia, em março passado, agora com
apresentação de Paulo Francis, veio reabrir as feridas de trinta anos atrás,
com o autor trocando pescoções litero-ideológicos com os antigos membros do
Partidão, como Ferreira Gullar, em réplicas e tréplicas no jornal O Globo.
A conspiração do
silêncio que, segundo o romancista, se armou em 1967 contra seu livro tornou-se
ainda mais espessa quando, no ano seguinte, ele aceitou convite de Adolpho
Bloch para trabalhar na revista Manchete, o que, aos olhos da esquerda
puritana, “pegava mal”. O iconoclasta Cony não passou recibo das murmurações
canhotas, mesmo porque a essa altura atravessava o terremoto que foi o grande
amor de sua vida, o terceiro de seus seis casamentos, paixão que chacoalhou de
ponta a ponta as suas certezas e convicções. O ex-seminarista de 44 anos despiu
velhos hábitos, vestiu calça vermelha com paletó verde e se permitiu um
rabo-de-cavalo – ao mesmo tempo que dava um paparote na literatura, da qual se
demitiu com um romance escatológico, Pilatos,
que ele (e mais ninguém) considera o melhor livro, sobre um homem que perambula
pelo mundo com o pênis amputado a boiar num fraco de formol.
Voltaria à literatura
23 anos mais tarde, num tom completamente outro com o delicado e terno Quase Memória, em que acerta as contas
do coração com o pai, o jornalista Ernesto Cony, morto em 1985 aos 91 anos,
maravilhoso personagem em sua inventividade delirante. Prêmios, aplausos,
louvaminhas e até lágrimas de leitores comovidos – só o autor parece não ter
gostado, não se tratasse de alguém assumidamente do contra. Ele diz que os
admirados estão gostando do livro errado, já que o melhor é o Pilatos. Parece
fora de dúvida, em todo caso, que está hoje reconciliado com a literatura:
depois de Quase Memória veio o romance O Piano e a Orquestra, a respeito do
perpétuo atrito entre o indivíduo e a sociedade, e em outubro virá mais um, A Casa do Poeta Trágico, sobre a relação
entre um homem maduro e uma adolescente.
Para entrevistar Carlos
Heitor Cony, PLAYBOY escalou o editor sênior Humberto Werneck, que trouxe estas
impressões:
“Quem lê Cony na Folha de São Paulo pode supor ás vezes
que por trás do texto há um sujeito de maus bofes, sobretudo quando o assunto é
o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. O mais breve contato, porém,
dissolve a impressão, revelando um homem simpático e bem-humorado que o tempo
adoçou sem lhe tirar o corte. Elegante em seus suspensórios, fiel à bigodeira
da juventude, está em boa forma física, quem sabe graças à caminhada matinal em
torno da Lagoa Rodrigo de Freitas, com a mulher, Beatriz, comerciante paulista
com quem está casado há vinte anos. Os três filhos – Regina Coeli, Maria
Verônica e André-, já criados, são de casamentos anteriores e a primeira, que
vive em Roma, lhe deu uma neta, Sabrina, de 17 anos.
“Diz que rico não está,
mas admite que poderia deixar de trabalhar. Vive bem, num apartamento de quatro
quartos de frente para a Lagoa, com rede na sala e livros por toda parte. No
escritório há lugar de honra para as correntes com que levava a passear as
falecidas Mila e Títi, mãe e filha, da raça setter
irlandesa. É ali, vigiado por fotos de Ernesto Cony, sósia do compositor
Giacomo Puccini, que ele desencava sua crônica todas as manhãs, antes de seguir
num na Golf verde para a sede da Manchete, na Praia do Russel. Na sala que
pertenceu a JK, o toque pessoal fica por conta de fotos tristonhas de Mila uma
semana antes de morrer e, sobre a estante, o chapéu romano que o seminarista
Carlos Heitor Cony, hoje um ateu hesitante, devoto de Santo Antonio, usou até
se devolver ao mundo leigho, em outubro de 1945.
“Em geral almoça no
restaurante da Manchete, com vista esplêndida para a Baía de Guanabara e
decoração nem tanto. (Duas cabeças de metal, uma delas uma desconcertante bonbonnière, homenageiam Manchetinha, a
cadela que semanalmente aparecia ao lado de Adolpho Bloch nas páginas de Manchete). Cony toma o caminho de casa
pelas 4 da tarde e pouco sai à noite. Se tem visitas, bebe uísque. Sozinho,
abre um champanhe, a seu ver o acompanhamento ideal para a música barroca de
Vivaldi e Corelli. É fumante de meio maço diário e não dispensa três charutos obrigatoriamente
cubanos, um deles para arrematar o dia.
“Durante nossa
entrevista, que se desdobrou em vários encontros e teve 7 horas de conversa
gravada, eu o vi atender a um telefonema nervoso de Márcia Kubitschek, filha do
falecido presidente, que, de Brasília, queria saber quem vazara para a revista
VEJA as passagens mais picantes do diário discreto secreto do seu pai. Cony
precisou repetir, incontáveis vezes, que a Bloch, depositaria do diário por
mais de vinte anos, em respeito à vontade de dona Sarah e das filhas de JK, mas
que o advogado da própria Márcia fizera uma cópia. Durante o mesmo encontro,
tomado ele inveja benigna, eu o vi receber, também por telefone, a notícia de
que era o ganhador do mais disputado e valioso prêmio literário do país, o Nestlé,
pelo romance O Piano e a Orquestra. Nunca tinha visto alguém ganhar um cheque
de 50.000 reais e, no minuto seguinte, retomar o papo comko se nada houvesse
acontecido”.
PLAYBOY-
Você diz que passou várias vezes pela prisão política sem lá encontrar um só
comunista. É uma provocação?
CARLOS HEITOR CONY- De
fato não encontrei. Havia era ex-comunistas, como o (falecido teatrólogo) Flávio Rangel.
PLAYBOY-
Seu companheiro na primeira prisão, em 1965, na porta do Hotel Glória...
CONY-...Durante aquela famosa
reunião dos chanceleres da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ideia,
aliás, do Partido (Comunista Brasileiro): uma manifestação para mostrar ao
mundo que havia uma ditadura no país. O PCB tinha prometido mandar 5.000
manifestantes mas só apareceram nove – nós (um
grupo de intelectuais e artistas de que faziam parte, entre outros, o escritor
e jornalista Antonio Callado e o cineasta Glauber Rocha). Quando as
autoridades começaram a chegar, nós levantamos as faixas e fomos em direção ao
carro do (então presidente Humberto de
Alencar) Castello Branco, que estava desembarcando. Ele já não tinha
pescoço, e ainda fez assim (enterra a
cabeça nos ombros). Pensou que ia ser agredido. Logo em seguida pegaram a
gente, com certa violência. “Esse aí armando!” Era um cachimbo que eu levava no
bolso.
PLAYBOY-
Foi a cana mais longa?
CONY- A mais longa foi
a do AI-5. Fui preso no dia 13 de dezembro (de
1968, data da promulgação do Ato Institucional número 5) e fiquei até 8 ou
9 de janeiro. Me apanharam outra vez no Carnaval de 1969, depois no meio do ano
e por fim em 1971 ou 1972. Aí a diferença no tratamento foi muito grande. Nas
prisões anteriores os militares não tinham o know-how, do AI-5, o coronel era
uma dama, no Natal e no Ano-Novo mandou ceia da casa dele para a gente...O (jornalista e escritor) Joel Silveira
chegou a ser fiador de um capitão que ia se casar. Mas a última prisão foi
terrível, aí eles eram profissionais...Nessa época já havia terrorismo, o
Exército estava preparado para combater a duro para combater a subversão. O
tratamento foi muito duro. A gente comia com metralhadora apontada para nós.
PLAYBOY-
Um de seus processos foi movido pelo então general Costa e Silva, que era
ministro da Guerra. Você chegou a se encontrar com você?
CONY- Tivemos um
encontro, sim, no Ministério da Guerra (denominação
que tinha, na época, o atual Ministério do Exército), no dia em que
prestamos depoimento, eu como réu e ele como testemunha. Veio para mim, me
apertou a mão, se apresentou, “General Costa e Silva!”, e disse: “Imaginava-o
mais alto!”. E eu: “Gostei do pronome bem colocado...” (risos). Me tratou muito bem. E, depois, era um homem simples, viu?
Eu me lembro de um detalhe curioso. Quando começou a audiência, o juiz auditor
disse que era preciso abrir a porta, “porque a Justiça se faz de portas
abertas” (risos). Aí o próprio Costa
e Silva se levantou e foi abrir. “Está bom assim, meritíssimo?” O juiz: “Está”.
E ele voltou e se sentou. Fui condenado, mas tenho uma simpatia pessoal,
humana, pelo Costa e Silva. Um sujeito que gostava de cavalo...(risos). No Correio da Manhã eu recebia muitas denúncias contra ele, de que
comprava a prestação e não pagava, bem brasileiro...(ri). Não usei porque não ataco pessoalmente, estava atacando a
estrutura do poder e não o cidadão Arthur da Silva, que comprou um rádio e não
pagou.
PLAYBOY-
Você era, nessa época, um herói da esquerda. Como foi que caiu do galho?
CONY- Foi em 1967,
quando lancei Pessach: A Travessia. O
PCB, que aparece no romance como traidor da guerrilha, me puxou o tapete. Mas
eles não podiam fazer muita coisa, porque seria uma forma de chamar a atenção
para o livro. Adoram uma postura de desagrado contra ele e contra mim, mas
ficaram quietos. Comecei a notar que estava sendo discriminado.
PLAYBOY-
É verdade que o PCB sabotou A Travessia “esquecendo” a segunda edição no
depósito da editora?
CONY- Não só isso
aconteceu como o meu nome foi vetado em todos os suplementos, em todos os
jornais. Passei vinte anos sem ter meu nome neles.
PLAYBOY-
Mas o partido tinha esse poder todo?
CONY- Tinha. Havia um
documento do Comitê Central com instruções para o setor cultural. Quem não
fechasse com eles deveria ser tratado com o silêncio, o ridículo ou o ataque
direto.
PLAYBOY-
Trinta anos depois, seu livro é reeditado e você bate boca em O Globo com
intelectuais do PCB, em especial com o poeta Ferreira Gullar, que teria ajudado
a sabotar o romance quando foi lançado. Como ficaram suas relações com ele
depois disso?
CONY- Não tenho mágoa
nenhuma do Ferreira Gullar. Admiro e gosto dele, acho divertido, inteligente
pra burro. Agora, foi realmente uma pessoa que patrulhou, foi um Beria (Lavrenti Pavlovich Beria, 1899-1953,
sanguinário ministro do Interior do governo de Josef Stálin na União Soviética).
Um Beriazinho – não foi Beria total porque o PCB não tomou o poder. Se tivesse
tomado, ele seria candidato a Beria. Que o PCB teve essa participação (no patrulhamento intelectual), não há
dúvida. O Gullar, ao me atacar agora, fez a sua obrigação, na medida em que
agredi o partido. Acusei o PCB de traição. Naquela época, se houvesse uma
tentativa a sério de tomar o poder, não digo que o partido chegasse à traição,
mas ia fazer tudo para me sabotar. E, afinal de contas, quem fez movimentos
contra o regime militar no Brasil foram grupos como o MR-8 (Movimento
Revolucionário 8 de Outubro) e a VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária). O PCB, ao contrário, ficou ali
patrulhando essa gente. Discutindo isso historicamente, trinta anos depois, eu
achei que tinha de dizer: “Olha, foi assim com o livro, aconteceu isso e
aquilo...”. A reação do Gullar foi violenta. Os comunistas se esqueceram de que
eu estive ao lado deles. Quando o Gullar precisou dar um recado, me procurou e
abriguei a crônica dele na minha coluna no Correio
da Manhã.
PLAYBOY-
Gullar conta uma história diferente. Diz que você o procurou pedindo que
escrevesse, pois não tinha preparo para tratar de certas questões.
CONY- Foi ele que me
procurou. Primeiro, para dar os parabéns, “estamos gostando muito e tal”. Depois
disse que eu precisava fazer uma crônica sobre a necessidade de os intelectuais
se unirem. Falou tão bem que eu disse: “Põe isso aí no papel e manda pra mim”.
Dei o tamanho e ele procurou fazer mais ou menos no meu estilo, eu mudei uma ou
outra coisa e publiquei.
PLAYBOY-
Pouco depois do estremecimento com os comunistas, em 1967, você passou uma
temporada em Cuba. O que foi fazer lá?
CONY- Fui como jurado
do prêmio da Casa de las Américas (a mais
conhecida instituição cultural cubana). E, como não tinha muito o que fazer
no Brasil – estava sem condições de trabalho, discriminado, cheio de processos
-, fui ficando em Havana. Cheguei no começo de novembro de 1967, ainda debaixo
do impacto da morte de Che Guevara (no dia 9 de outubro), e fiquei até outubro
de 1968. Havia outros brasileiros por lá, vários deles em treinamento para a
luta armada.
PLAYBOY-
Passou pela sua cabeça entrar na guerrilha?
CONY- Não. Mas fui
convidado. O regime cubano estava investindo no projeto de transformar a
América Latina numa grande Sierra Maestra. E entre os brasileiros havia dois ou
três que estravam muito pressionados para apresentar resultados. Um deles era o
Aluísio Palhano, que tinha sido presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de
Janeiro. Morreu assassinado quando voltou para o Brasil. Pois bem, havia uma
cobrança muito forte em cima do Palhano, que estava com mordomias de chefe e
tinha que mostrar serviço. Um dia ele me levou ao lugar onde se treinava a luta
armada. Vi lá o Cabo Anselmo (José
Anselmo dos Santos, líder de uma rebelião de marinheiros às vésperas do golpe
de 1964 que mais tarde se comprovou ser colaborador das forças da repressão, ás
quais entregou vários militantes da esquerda). Estava numa banqueta,
peneirando uma espécie de areia. Quando me afastei, o Palhano disse: “Esse aí é
o Cabo Anselmo”. E explicou que aquilo era uma tentativa de fazer pólvora a
partir de um tipo der argila muito comum no Brasil. Uma tonelada daquilo dava 1
quilo de pólvora, sei lá. Vi também uma porção de brinquedinhos – me lembro de
uma bolinha de pingue pongue que eles abriam, botavam explosivo dentro e
fechavam, e que, quando caía, bum!
PLAYBOY-
Você não se animou?
CONY- O Palhano bem que
me pressionou: “Você precisa fazer alguma coisa, porque é jovem e está
motivado”. Deixei claro que não estava interessado: “Não, não estou gostando,
na realidade estou aqui fugido, e não estou satisfeito com o que estou vendo”.
O regime cubano era uma merda. Gostei muito do país, das mulheres, que são calientes e estavam dando fácil, da
música, acho o (falecido compositor)
Ernesto Lecuona um gênio, mas o regime era violentamente militarista. Depois,
aquela pregação chatíssima, as leituras...O pessoal era muito bitolado. Chamar
o (romancista francês Marcel) Proust
de pequeno-burguês! Cabeça de comunista cubano era pior que a de Filha de
Maria. Não viajei iludido, então não me decepcionei. Apenas vi quer lá era uma
merda. E disse: “Para ser merda aqui, vou ser merda no Brasil”.
PLAYBOY-
E foi trabalhar na Bloch.
CONY- Depois da
Travessia, era a pá de cal que me faltava.
PLAYBOY-
Pegava mal trabalhar na Manchete, naquela altura?
CONY- Já pegava, sim.
Ainda pega, e até hoje eu pago o preço disso.
PLAYBOY-
O que diziam de você?
CONY- O pessoal da
esquerda dizia: “Está se vendendo ao Bloch”, essas coisas que até hoje, de
certa forma, ainda dizem. Não era nada disso. O Adolpho me deu um projeto muito
bom para tocar, que era a edição das memórias de JK. Isso eu devo ao Adolpho,
com que tive uma ligação boa, de uma lealdade fora de qualquer suspeita.
PLAYBOY-
É verdade que você escrevia os artigos dele na Manchete?
CONY- Não. Ele ditava,
eu era o estenógrafo dele.
PLAYBOY-
Então Adolpho Bloch tinha um texto bom...
CONY- Eu fazia uma
correção no texto. Mas as palavras todas eram dele.
PLAYBOY-
Era fácil trabalhar com esse homem?
CONY- Era e não era. O
Adolpho tinha uma personalidade tripla: o judeo, o eslavo e o malandro de Vila
Isabel. Essa é uma mistura terrível...Você nunca sabia com qual dos três estava
falando.
PLAYBOY-
Cabe nesse capítulo a atitude dele ao levar você para a Manchete, naquele momento?
CONY- Ele me queria há
muito tempo. Mas me levou também porque sabia que ninguém ia me dar emprego,
naquela volta de Cuba.
PLAYBOY-
Você disse uma vez: “Prisão por prisão, fico aqui na Manchete”.
CONY- É, foi. Era uma
forma de prisão, não há dúvida nenhuma, e eu fiquei preso 23 anos, até sair e
voltar em outras bases. Uma prisão confortável, ganhei dinheiro, viajei, comi
muita mulher, mas me sentia preso.
PLAYBOY-
Durante mais de vinte anos a Manchete teve nas mãos o diário do ex-presidente
Juscelino Kubitschek, mas quem acabou publicando foi uma concorrente líder de
mercado, a VEJA. Por que vocês não publicaram?
CONY- Por questão de
amizade. Você tem que optar. Somos comprometidos com a memória de JK e tivemos
que vestir a camisa da dona Sarah (Kubitschek),
que sempre dizia: “Estou tranquila porque sei que vocês não vão usar esse
diário levianamente”. Quando ela morreu, no ano passado, pensamos em publicar o
diário em fascículos na Manchete.
Fizemos uma consulta formal à Márcia e à Maristela (as filhas do ex-presidente). A Márcia veio com um advogado, José
Gerardo Grossi, e levaram o diário para Brasília. Dez dias depois o Grossi
mandou uma carta em que Márcia e Maristela não apenas não concordavam com a
divulgação do diário como ameaçavam com medidas judiciais se nós vazássemos o
seu conteúdo. Pusemos uma pedra em cima do assunto. Aí vem a VEJA, faz um
levantamento bem-feito e publica os trechos mais quentes do diário. A VEJA está
certo, não cometeu erro, não tem compromisso nenhum de amizade com a família de
JK. Nós temos.
PLAYBOY-
Vazou por onde?
CONY- É aí que está o
problema. Não vazou da gente (Bloch
Editores). Nós não íamos entregar o outro ao bandido. E, se eu tivesse que
levar para alguém – nunca me passou pela cabeça -, levaria para a Folha de São
Paulo, já que escrevo no jornal e faço parte do Conselho Editorial. Enquanto o
diário esteve conosco, não vazamos. Temos uma cópia, que o Grossi me devolveu,
mas ele tem outra – e fatalmente vazou por ele. Não acredito que a Márcia tenha
vazado. Ela não ia deixar, por exemplo, que uma revista com a circulação da
VEJA publicasse o pai chamando a mãe de “jararaca”.
PLAYBOY-
Mas que interesse teria o advogado nesse vazamento?
CONY- Bom, aí é o
seguinte: você se transformar em fonte fidedigna, discreta, tem vantagens. Não
vou dizer dinheiro, mas vantagens.
PLAYBOY-
Você foi amigo de JK?
CONY- Foram quase sete
anos de convívio e a gente terminou trocando confidências. Ele tinha um problema
sentimental grave e eu estava saindo de um dos meus casamentos, numa fossa
enorme. JK dizia: “Você tem que arranjar outra mulher, ainda é jovem, não tem o
problema que eu tenho, não posso fazer isso, sou político, na sua idade eu nem
pensava...” Ele estava muito solidário, sofrendo muito porque não podia assumir
a relação com a mulher que amava (Lúcia
Pedroso).
PLAYBOY-
Chegou a pensar em se separar de dona Sarah?
CONY- Chegou e dona
Sarah também. Ela o ameaçava quando ele botava os pezinhos pra fora demais. E o
Juscelino tinha pavor disso, porque sonhava voltar à vida pública e sabia
perfeitamente que, separado, ficaria muito mais difícil. Mas sentia que estava
em perda política irreversível, e procurou compensações. Uma delas foi no amor,
outra foi (no sonho de entrar para) a
Academia Brasileira de Letras. Eu, disponível, com carro, passeando, cansei de
ficar andando por Copacabana com ele, ele não querendo ir para casa. Então ás
vezes nós ficávamos conversando até altas horas da noite. O Adolpho (Bloch) também. (Ri) Nós éramos os três mosqueteiros da noite...Nos encontrávamos
depois do expediente, íamos jantar, em seguida o JK gostava de dançar. Ele
tinha aquele problema comum do velho, de não querer dormir e perder tempo –
Tancredo (Neves) também tinha isso -,
mas dorme o dia todo, aquele cochilo, porque está sempre com o sono atrasado.
Então, depois do jantar JK queria dançar. Era um saco, ás vezes.
PLAYBOY-
Aonde vocês iam dançar?
CONY- Por aí,
Hippopotamus...Ele gostava de um lugar na Praça General Osório (em Ipanema) – em cima era um restaurante
italiano, o La Strega, muito bom de massas, embaixo tinha o Concorde. Ele
dançava, bebia um pouco, ficava assim (fecha
os olhos e deixa a cabeça pender), caindo...
PLAYBOY-
De porre?
CONY- Não, porre não.
Ficava...
PLAYBOY-...alegre?
CONY- Não, ele não
ficava alegre, não, ficava mais deprimido.
PLAYBOY-
O que ele bebia?
CONY- Uísque. Gostava
de um bom uísque. No almoço era vinho. Na hora de ir para casa, ele ranhetava –
como uma criança que se recusa a volta para casa porque não quer ir dormir.
Então ficava: “Vamos dar uma volta”. Eu levava, ia até a Barra. Até que era
bom, enchia a minha noite. Mas ás vezes era cansativo. Ele gostava de falar,
falava do passado, dinheiro, digredia muito.
PLAYBOY-
E sobre os amores dele?
CONY- Não. A gente
sabia, ele também sabia dos meus casos, mas era muito discreto. Mineiro, sabe
como é? Das coisas importantes mesmo ele não falava. Fazia um ou outro desabafo
sobre política. Tinha aquela obsessão Tinha aquela obsessão com o (ex-presidente Humberto de Alencar)
Castello Branco – muita mágoa do Castello Branco (que foi eleito com a colaboração e o voto de JK, mas cassou seu mandato
de senador por Goiás e suspendeu por dez anos os seus direitos políticos),
à noite conversávamos sobre outras coisas. Na campanha para entrar na Academia
(em 1975), aí sim, ele ficou
entusiasmado.
PLAYBOY-
O que JK esperava da Academia?
CONY- Queria ser
pretexto de notícia, ser homenageado, aclamado, queria passar na rua e todo o
mundo estender o tapete vermelho para ele. Sentia falta disso e achava que ir
para a Academia era uma espécie de retorno à vida pública. E tinha,
evidentemente, alguma veleidadezinha literária. Ele lia - mas lia Jorge Amado,
Érico Veríssimo, entende? Tinha outros interesses na vida. E o primeiro foi a
Medicina, depois a política. Nos últimos anos de vida talvez nem soubesse ar
uma injeção. Uma vez, na fazenda dele (em
Goiás), um rapaz foi mordido por uma cobra e JK foi socorrer. Abriu uma
caixa de primeiros socorros mas nem sabia mais mexer naquilo, foi preciso
chamar outra pessoa. Perdeu completamente o amor pela Medicina, a política é
que dominou. A literatura seria, digamos assim, uma regra-três. E ele fez força
para entrar na Academia.
PLAYBOY-
Você o ajudou nisso?
CONY- Não. Faço tudo
pelos amigos, menos ajudar a entrar para a Academia (ri). Ele batalhou muito, mas contava com a oposição do (então
presidente da Academia, o falecido Austregésilo de) Athayde, que não queria
desagradar os militares e chegou a manipular os votos para que ele fosse
derrotado (pelo escritor goiano Bernardo
Élis). JK estava crente que ia ganhar. Estávamos na casa da Maristela
(Kubitschek Lopes), tinha recepção, músicos, buffet...Quando veio o resultado,
Juscelino se levantou mandou a orquestra tocar o Peixe Vivo e disse: “Fechamos
a página”. Pegou a Maristela, saiu dançando e não tocou mais no assunto.
PLAYBOY-
Você acha que JK foi um bom presidente?
CONY- Sob um ponto de
vista, sim. Foi um motivador. Mas acho que o nosso melhor presidente até hoje
foi Getúlio Vargas. Ele e Dom Pedro I são os únicos estadistas da História do
Brasil – os outros todos são funcionários, bem ou malsucedidos. JK foi um homem
inquieto, com uma vontade de trabalhar terrível, mas, ao contrário do Getúlio não
se preocupou em mudar a estrutura da sociedade, ou seja, mudar o pacto social.
O que ele tinha era um bicho-carpinteiro que o leva a fazer muitas obras. Quem
viu bem a coisa foi a (cientista política)
Maria Victoria Benevides: JK não pensou nunca em mudar a sociedade, mas fez
tanta coisa, tanta obra, que a quantidade terminou virando qualidade. Pedro I
foi o maior de todos, Getúlio o grande estadista e JK, digamos assim, o grande
administrador. Foi um grande prefeito.
PLAYBOY-
Fernando Henrique Cardoso nessa galeria, nem pensar?
CONY- Não. Primeiro,
porque seu governo é muito recente. Ele pode acabar sendo o pior ou o melhor de
todos. Mas, pelo rodar da carruagem, acho a segunda hipótese muito improvável,
porque o Fernando Henrique fez tantos acordos para poder governar, para ter
essa memória, e essa maioria é tão flutuante, é tão movediça no meu sentido, é
tão pantanosa...E ele embarcou num projeto neoliberal que, acho, não deve levar
a nada. Nunca fui nacionalista, mas acho que um país como o Brasil, atrasadíssimo,
fora do circuito da economia mundial, não pode se globalizar em igualdade de
condições com os outros que já passaram por esta etapa. Todos os países que
hoje estão na vanguarda da economia mundial passaram por um estágio
nacionalista, para se preservar. A globalização atual, que é um pseudônimo do
colonialismo, imobiliza o Brasil no estágio em que está, ou seja, com uma
parcela de 25 a 30 milhões de pessoas dentro da sociedade de consumo e 120
milhões abaixo. O Estado tem que preservar alguns setores para poder melhorar
as condições de vida dessa gente, e não dar uma banana para ela.
PLAYBOY-
As coisas estariam melhores com Lula?
CONY- Não.
PLAYBOY-
Com Leonel Brizola?
CONY- Também não. O
Brizola seria ótimo se não fosse um louco, porque, me parece, ele sabe onde
está a mina. Se fosse mais político, e não um missionário...Mas votei nele (nas eleições presidenciais de 1994),
apesar de ser um mau político. Sempre voto em quem vai perder (risos). E no
segundo turno não votei em ninguém.
PLAYBOY-
Você votou em JK para presidente, em 1955?
CONY- Não votei em
ninguém em 1955. Até hoje só elegi um candidato, que foi o (compositor) Ary Barroso, para vereador (do antigo Distrito Federal, nos anos 40,
pela extinta União Democrática Nacional, UDN). Não me decepcionou. Fez a
lei do Estádio do Maracanã, que outros queriam construir muito longe, em
Jacarepaguá. Fez uma reformulação da carreira de funcionários muito boa, muito
justa.
PLAYBOY-
Como você se define politicamente?
CONY- Tenho um
compromisso humanístico que me leva a ser um pouco socialista. Mas de um
socialismo que não tem nada haver com o comunismo. Houve algumas tentativas ao
longo da História, e a comunista foi, de todas, a mais truculenta, a mais
inútil e a mais contraproducente. Mas continuo esperando essa utopia do
socialismo. Acredito que o Estado foi feito para equalizar as potencialidades.
Vamos imaginar que o avião caiu e os sobreviventes estão numa balsa onde há
água, alimentos e remédios para uma semana. O pessoal na balsa é, aleatoriamente,
uma amostra da sociedade. Os fortes vão se reunir e dizer: “Nós somos os
melhores, os que têm mais condições de sobrevivência, eu sou forte, você sabe
navegação, você pode remar, você está com a saúde perfeita...Então vamos jogar
fora os velhos, as crianças, os doentes...” Isso prevaleceu na pré-história do
homem, até o momento em que foi criado o Estado. Criado para quê? Para
equalizar as potencialidades de casa um. Esta é a minha posição política, muito
difícil de enunciar e que não me leva a nenhum partido.
PLAYBOY-
Em mais de uma ocasião você se definiu como um “alienado”.
CONY- Gosto muito de me
considerar alienado. Só não sou alienado quanto à condição humana, aí não. Há
pouco tempo fiz um artigo elogiando a (socialite)
Carmen Mayrink Veiga. É chato elogiar a Carmen Mayrink Veiga, mas elogiei.
Estive na casa dela, é uma tristeza, um luxo de um mau desgraçado. Uma perua.
Mostrou os álbuns de fotografias, e todos os amigos estão na casa dela: “Esse
aqui deu desfalque na Suíça, coitadinho”. Esse deu desfalque (rindo) na
Inglaterra, está preso, todo dia eu rezo para ele sair da cadeia...” O mundo da
Carmen Mayrink Veiga é terrível! E todo o mundo está chutando esse cachorro
atropelado. Ele está doente, tem um problema chato na perna, sente dores, vive
à base de cortisona, está enorme monstruosa de feia. Mas na hora da fotografia,
bota aquele sorriso e ainda é uma perua. Arrivista social, alpinista social –
tudo o que você joga em cima dela. Mas no momento em que a Carmen Mayrink Veiga
está na desgraça, virou saco de pancada, eu me recuso a linchar. Nunca linchei
um Judas. Agora, ela conseguiu dar a volta por cima? Aí vou em cima dela,
entendeu? Talvez eu tenha herdado isso de meu pai: adoro causas perdidas. O
Brizola, por exemplo: quando o Brizola entrou em perda, aí me aproximei muiro
dele. Os bicheiros mandando no Rio de Janeiro, um horror...Ligava para mim,
“Vem cá conversar comigo, ninguém vem conversar comigo”, e eu ia. Na campanha
presidencial (de 1994) foi uma tristeza: passei 6 horas com o Brizola e ele não
recebeu um telefonema, e era a semana da eleição.
PLAYBOY-
JK também estava pior quando você o conheceu, não?
CONY- Fui conhecer o
presidente, e conviver com ele como eu gosto, ou seja, não no poder, mas na
decadência, perseguido. Estava beirando os 70 anos de idade, cassado,
amargurado, tinha passado pela prisão. Mas ainda se sentia jovem e tinha
esperança de que de repente houvesse uma merda qualquer e ele voltasse ao
poder, chamado pelos militares, pelas forças vivas, como uma espécie de pai da
pátria. É preciso ver que o (então
presidente) Geisel (1974-1979) estava começando a fazer uma tentativa de
abertura. Havia no país três lideranças civis – Juscelino, (o ex-governador da Guanabara) Carlos
Lacerda e o João Goulart – e JK achava que, dos três o mais palatável aos
militares seria ele próprio. Pensava que ainda acabaria sendo aquilo que o
Tancredo viria a ser anos depois.
PLAYBOY-
Você mesmo não vivia uma grande fase ao conhecer JK. Recém-saído da prisão,
levando bordoadas da esquerda...
CONY- Eu não estava
interessado na esquerda. E tem uma coisa: tenho profundo desprezo pela opinião
alheia.
PLAYBOY-
Mesmo quando a favor?
CONY- (Pausa) Porque
muitas vezes é uma opinião equivocada, não é? Existem pessoas que me conhecem
da imagem pública. Eu me tornei conhecido com minhas crônicas contra os
militares, em 1964, então me tomara como aquilo, quando não sou. Agora tem
gente que está me tomando pelo Quase
Memória. Não estou muito satisfeito com a repercussão do livro, porque já
estão me tomando como aquele narrador lá, e não sou bem aquilo...
PLAYBOY-
Você é meio do contra, concorda?
CONY- Sou. Gosto de ser
do contra (ri), é uma tendência minha.
PLAYBOY-
Quando se trata de governos, então...
CONY- O poder não me
fascina, tenho um desprezo enorme por ele. Acho que deve ser criticado, para
que não se transforme em opressão, que é a sua tendência natural. Criticado,
ele é obrigado a se limitar, a pensar duas vezes. E a função do intelectual, no
sentido de produtor de inteligência, é criticar o poder. A menos que ache que o
poder sempre está certo – mas aí é um intelectual totalitário e, tomando o
poder, vai terminar em Hitler.
PLAYBOY-
Outra prova de que você é do contra: parece não haver quem goste do romance Pilatos, mas você diz que é o ponto
máximo de sua obra.
CONY- Sem dúvida. Pilatos nasceu de um grande momento da
minha vida. Eu andava pelos 44, 45 anos e estava casado com uma mulher jovem,
alegre, inteligente, de quem gostava muito. Já está morta, morreu alguns anos
depois de nos separarmos, mas talvez não se deva revelar aqui o nome dela,
porque depois se casou com um juiz – que estranhamente se parece muitíssimo
comigo – e teve uma filha. Essa mulher tinha uma vitalidade enorme e sobretudo
uma posição anti-intelectualista na vida. Gostava de Tchaikovsky, não gostava
de Bach. Adorava a subliteratura. Um dia tentei fazer com que começasse a ler
Proust, ela jogou longe. Essa mulher realmente me encheu as medidas, me
libertou de tudo. Comecei a usar roupas extravagantes, calça vermelha, paletó
verde, rabo-de-cavalo. Pensei que tinha chegado ao meu momento de verdade, ao
cume da cordilheira, como o Juscelino gostava de dizer. O que viesse depois
seria uma coisa requentada. Tinha feito A
Travessia e com ele me despojado de todos os fantasmas literários,
políticos, sociais, culturais. Achei então que teria de partir para a
antiliteratura, certo de que a literatura era um grande blefe, uma atividade de
frustrados, de ressentidos: enquanto a pessoa vivesse de fato plenamente, não
precisava escrever. Daí nasceu o Pilatos, um livro antiliterário que não deixa
de ser um testamento. Uma agressão a tudo o que é inteligente, de bom gosto. É
um livro de um homem que se despojou do caralho, literalmente, talvez a coisa
mais forte que ele tinha, e continuou vivendo. Não se separou nunca dele, mas
reduziu-o a uma insignificância. Pilatos me deu uma alegria terrível. Só uma
pessoa muito livre escreve um livro daquele. Hoje não escreveria, pensaria três
vezes, teria censuras: o que vão dizer de mim? O que meu editor vai pensar?
PLAYBOY-
E o que foi que o seu editor pensou?
CONY- O Ênio (Silveira, falecido dono da Editora da
Civilização Brasileira) passou dois anos com medo de editar: “Esse livro
vai prejudicar você...” E eu dizia: “Mas não vou fazer mais, é meu último
livro”. A primeira edição foi-se embora em três meses, tirou-se a segunda – que
está empacada até hoje.
PLAYBOY-
Demitiu-se da literatura e ficou feliz da vida?
CONY- Já estava. O
livro foi um subproduto da minha felicidade. Uma fase bonita, essa, e não se
repetiu mais. Talvez a parte mais animal da minha vida tenha sido nesse
casamento. Foi ali que tive coragem de fazer tudo o que eu queria fazer, e
deixei que fizessem tudo o que quisessem comigo.
PLAYBOY-
O quê, por exemplo?
CONY- Quero dizer que
fui para o sexo de uma forma total. A minha liberdade sexual veio muito tarde.
Até os 44 anos, de certa forma, eu fazia sexo sem alegria. Depois desse momento
me tornei meio chateado, logo depois morre minha mãe, fiquei órfão, fiquei velho...Por
essa época começou a haver uma decomposição na minha vida, eu comecei a descer
a cordilheira.
PLAYBOY-
É difícil ver felicidade por detrás de um livro duro como Pilatos.
CONY- Mas havia. Meus
livros não nascidos da felicidade foram outros rebuscados literariamente. O
primeiro, por exemplo, O Ventre
(1958). Eu era jovem, não sabia o que fazer, estava casado com a minha primeira
mulher, amargo...Uns mais outros menos, todos os meus livros nasceram assim. O
próprio Quase Memória tem uma
sinalização de fim de vida, de uma pessoa que está chegando ao filme, as
paredes vão se estreitando e ela então volta ao passado. O Quase Memória milhões de pessoas podem fazer. Mas o Pilatos, só eu, só uma pessoa que passou
por aquilo que passei naquele casamento.
PLAYBOY-
Os leitores preferem Quase Memória.
Chateia as pessoas gostarem, do digamos, livro errado?
CONY- Chateia. Como
disse, o Quase Memória qualquer um
poderia fazer. Sinceramente, eu suspeito de livro assim. E tenho impressão de
que ele só saiu por causa da (falecida
cachorra) Mila. Eu não estava pensando em escrever. Tive um sonho, botei no
computador, pensei que daria uma crônica para a Folha mas saiu grande demais.
Ficou três dias dormindo, até que de repente o negócio veio vindo. Muito por
causa da Mila: ela estava doente, exigia a minha companhia e não me deixava
parar de trabalhar – se não ouvia a batida dos meus dedos no computador,
começava a gemer. O livro saiu pela urina, em 21 dias. Agora, um romance
elaborado, como O Piano e Orquestra, não teve o mesmo retorno. Paulo Francis,
na última viagem dele ao Rio de Janeiro, me disse: “O Piano e a Orquestra é muito melhor do que o Quase Memória”. O livro equivocado realmente dá raiva. O essencial,
no Quase Memória, ninguém entendeu,
só o Paulo: eu desprezava muito o meu pai, e o livro é até certo ponto um
pedido de desculpas a ele. Mas acham que é um hino de amor ao pai. Não é bem
assim. É uma maneira de me desculpar, de ver seu lado bom, mas no fundo nunca
perdoei a ele o fato de ter me provocado desprezo. Evidentemente, depois de sua
morte, vi que não poderia ficar com isso toda a vida – e talvez até em função
do Pilatos, achei que era o momento de cortar e botar no vidro. E corte, não o
pau, mas o pai, botei num vidro e joguei fora. Quem quiser ficar com ele,
fique.
PLAYBOY-
A impressão que se tem é de sentimentos ambíguos. Afinal, você amava ou não
amava seu pai?
CONY- É difícil dizer.
Prefiro ficar na ambiguidade. Eu o via muito criticamente. Com o tempo, percebi
que ele era um grande personagem, personagem que talvez eu não precisasse amar,
mas no qual tinha de reconhecer uma humanidade até certo ponto fora de série.
PLAYBOY-
Quase Memória veio quebrar 23 anos de
jejum literário. Você não sentia falta da literatura?
CONY- De jeito nenhum!
A literatura estava viva – a dos outros. Li muito nessa época. Viajei. Entrei
mesmo na vida. Porque até então eu tinha alguma coisa de ex-seminarista. Moral,
lealdade, fidelidade conjugal, castidade, todos esses valores que minha
literatura anterior de alguma forma retratava.
PLAYBOY-
Como é que você foi parar no seminário?
CONY- Quando fui fazer
a Primeira Comunhão, senti uma atração muito grande pela beleza da liturgia,
que até hoje me toca. A igreja que eu frequentava no meu bairro, Lins de
Vasconcelos, era relativamente obre, mas aquelas luzes, aquelas festas, o canto
gregoriano, aquilo tudo me fascinava muito.
PLAYBOY-
Poderia acontecer hoje, com missa em português?
CONY- Não. Não teria
mistério nenhum. Como marketing, foi bom, mas...Acanalhou muito, não é? Agora
mesmo, em Roma, entrei numa igreja e tinha uma missa em latim, me entreguei,
deixei o sentimento vir, é uma maravilha! Depois fui a Basílica de São Pedro,
uma igreja onde nunca me comovi. Acho detestável, é carnavalesca, não pede
recolhimento. Uma boa igreja, um bom gótico esmaga o camarada, mesmo sendo
ateu. Aí vi um grupo de padres turistas, estavam cantando cantos gregorianos e
me misturei com eles, fiquei sentindo aquele clima. Esse lado teatral da igreja
me comove muito. De um lado, foi isso que me levou ao seminário. De outro, uma
certa necessidade de segurança. Aí pelos 8 anos percebi que a vida não era uma
coisa muito segura. Estava seguro porque tinha um pai que botava comida na
mesa, tinha uma mãe que me consolava, me dava beijo e tratava de mim, me botava
na cama e punha iodo nas minhas feridas. Mas sabia que aquilo podia acabar.
Meus pais podiam morrer – e, aí, como é que ia ser? Comecei a querer uma
segurança maior, e achei que ela estava dentro de uma dimensão de eternidade.
Nessa altura já estava ajudando na missa...
PLAYBOY-
É dessa época aquela sua história com Noel Rosa?
CONY- Foi por aí. Todo
dia eu acordava cedo para ajudar na missa, saltava do bonde na esquina da Souza
Franco com o Boulevard 28 de Setembro, que até hoje é o lugar quente de Vila
Isabel e onde havia um boteco que o Noel Rosa frequentava. Um dia passo pelo
botequim, com aquela carinha de anjo, menino, né? Lavadinho, cabelinho
escovado, molhado, e um camarada que estava sentado na porta mexeu comigo: “Lá
vai o filho do padre” – e jogou uma chapinha de cerveja Cascatinha, que passou
por aqui (mostra a orelha), tirou
sangue. Corri para a igreja, assustado e o padre disse: “Você é um novo São
Tarcísio” – o primeiro mártir do cristianismo, do tempo das catacumbas, morto quando
levava hóstia para os prisioneiros. Me senti um Tarcísio. Meu pai foi tomar
satisfação e, pela descrição que fiz, um camarada sem queixo, o dono do
botequim confirmou: “É o Noel Rosa”. Que estava ruim de saúde e ele morreu logo
depois (em 1937).
PLAYBOY-
Como seus pais reagiram quando você disse que ia ser padre?
CONY- Meu pai achou
meio fabulosa a história de ser pai de padre. Além disso, era ter um filho
encarreirado – padre estava empregado para o resto da vida. Mas a minha mãe,
embora tivesse uma tendência a ser carola, não gostou muito. Eu era seu filho
predileto, ela ia sentir muita falta. “Pensa bem, meu filho, você vai ficar
longe da tua mãe, como é que vai ser, você gosta de comidinha na hora...” Ao
entrar no seminário, naquele tempo, você se expulsava da vida, passava o ano
todo lá, só ia em casa três dias por ano. Visitas, só uma vez por mês.
PLAYBOY-
Quantos anos nisso?
CONY- Mais de oito.
Entrei com 10 e saí nas vésperas de fazer 19.
PLAYBOY-
Você se imaginava padre, bispo, papa?
CONY- Nunca pensei
nisso. Me bastava a vida no seminário. Tive acesso a uma porção de coisas, à
música, aos livros, ao conhecimento...O curso de humanidades do seminário era
muito bom. Não queria ser padre, queria viver naquele meio. Gostava muito de
tudo aquilo. Até hoje gosto. Não há nada que me comova mais e me faça sentir
bem como estar numa igreja sozinho. Mas não consigo ouvir pregação de padre.
Padre abriu a boca na igreja, eu saio. Quebra o meu encantamento.
PLAYBOY-
Você tem fé religiosa?
CONY- Não sei. Tenho um
apelo religioso, mas não uma fé.
PLAYBOY-
Verdade que nunca acreditou em Deus?
CONY- Talvez esteja
começando a acreditar agora.
PLAYBOY-
Mas não era desesperador estar dentro de um seminário, encaminhando-se para a
vida religiosa, e não acreditar em Deus?
CONY- Vou usar uma
imagem. Numa igreja gótica, você monta aquelas ogivas encaixotando uma pedra em
cima da outra. Quando está tudo armado, você precisa pôr uma pedra final lá em
cima, para que aquilo não desabe. É o que dá o equilíbrio e mantém as ogivas em
pé. Pois bem, eu tinha tudo, mas faltava aquela pedrada final, que seria a
humildade suficiente para acreditar em Deus. Hoje talvez eu tenha. Não que
tenha me tornado humilde, mas fiquei menos orgulhoso. Tem a ver com a
decadência física, a queda de cabelo, o emaciamento da pele, a falta de brilho
nos olhos, essas decorrências da idade para as quais a alternativa é a morte.
Você não morreu, então você envelhece – não tem por onde escapulir. Na medida,
então, em que o orgulho saiu de campo, entrou um pouco de humildade – e, com
ela, talvez a crença em Deus possa vir. Mas quando eu estava senhor de mim, do
meu corpo, da minha vitalidade, não tinha necessidade de Deus. Não tinha
humildade para aceitar Deus. E também nesse ponto aquele casamento (da época de Pilatos) foi uma coisa muito
grande, porque com aquela mulher, sentia que eu era deus de mim mesmo.
PLAYBOY-
O que ficou do seu tempo de seminário, além desse chapéu romano ali em cima da
estante?
CONY- Algumas boas
amizades, por exemplo. O bispo de Piracicaba, Dom Eduardo Koaik. Quando ele vem
ao Rio sempre jantamos juntos, nos telefonamos, choramos nossas mágoas. É uma
amizade muito boa, essa do ex-colega que saiu ateu e o outro que chegou a
bispo, os dois convivem muito bem. E tem muitos padres humildes que estão
distribuídos aí pelos subúrbios...Boas pessoas. Tenho muita saudade deles, era
um grupo muito bom.
PLAYBOY-
E o que mais ficou?
CONY- Devoções, uma
delas anterior ao seminário: Santo Antônio.
PLAYBOY-
Por que ele?
CONY- Meu pai era
devoto de Santo Antônio, fazia balões terríveis (ri), então Santo Antônio (13 de junho) era o grande dia na minha
infância. Meu pai atribuía a ele uma porção de coisas. A minha mãe perdeu um
anel de rubi na praia e, três dias depois, achou.
PLAYBOY-
Em que circunstâncias você apela para Santo Antônio?
CONY- Para ele quebrar
um galho material. Mas Santo Antônio não é para pedir dinheiro, comprar um
bilhete. Também não é casamenteiro. Mas quando estou numa enrascada...Já me
ajudou a conseguir lugar num voo impossível, em Roma. Santo Antônio é o
boa-praça que atende a gente.
PLAYBOY-
Nunca deixou você na mão?
CONY- Nunca.
PLAYBOY-
Você se julga no direito de pedir, mesmo sendo ateu?
CONY- Seis meses atrás
eu diria tranquilamente: “Sou ateu”. Hoje não posso dizer. Eu comecei admitindo
que determinados homens são fora de série. Santo Antônio, São José...A própria
Nossa Senhora tem uma história belíssima! Uma judia de 15 anos perdida lá no
meio do cafundó, aquilo era o cu-do-mundo, e vem um anjo e diz: “Você, sem
trepar, sem foder, vai ter um filho vai ser o salvador do mundo, você aceita?”
E para São José: “Sua mulher não trepou com você mas vai ter um filho, fica
quieto porque é Deus!” É a história mais bonita do mundo...Agora: não são
deuses, são de carne e osso, como nós. Tem que haver um denominador comum aos
fatos passados com eles, que não são fatos miraculosos, são casos carnais que
aconteceram. Você pode dizer: “Bom, entrou imaginação”. Sim, mas na imaginação
há sempre alguma coisa que tem haver com a verdade. Então, mesmo depurando
todas as corrupções da lenda, da imaginação humana, dos interesses pessoais e
tudo o mais, o que sobre é um nexozinho em todas essas histórias em que passa
um fiozinho maravilhoso. Você pode levar para o duende, pode levar para o
candomblé – o fato é que esse fio maravilhoso existe. Talvez seja um resíduo ou
uma projeção de alguma coisa fora da compreensão humana que alguns chamariam de
Deus.
PLAYBOY-
Em que altura da sua vida você deixou a religião?
CONY- Foi logo depois
do seminário. A minha vida mística foi muito vagabunda. Nunca tive apelo
místico de rezar, de ler, de ter transes religiosos. Gostava de chegar e ver a
igreja acesa...
PLAYBOY-
O que o seminário lhe deu?
CONY- Disparadamente,
entre os prós e os contras, ele me deu a melhor parte da minha vida. Me abriu
para o mundo que interessa, que é o mundo anímico. O seminário me deu uma
vivencia intelectual que não encontrei aqui fora. Os livros, o canto
gregoriano...O acesso que eu tive a Beethoven, ao mundo lírico...Não escutava
ópera – os padres não botavam muita ópera, afinal de contas, é uma coisa muito
sensual, os enredos geralmente têm sacanagem, amantes, o diabo a quatro. Mas os
coros principais, as introduções das óperas...Tomei conhecimento da lírica por
meio dos coros das óperas do Verdi, do Puccini, do Gounod. Tudo isso, para mim,
forma uma coisa que se chama seminário. O período mais feliz de minha vida.
PLAYBOY-
Ele não lhe roubou nada?
CONY- Ele me tirou a
capacidade de gostar da vida aqui fora, excetuando aquele período dos meus 44
anos, daquele casamento em que encontrei, digamos assim, justamente o clone às
avessas do seminário. Aquela mulher que jogou no lixo tudo aquilo, e que me
dava compensações, inclusive porque era muito boa de cama...Eu não percebia,
mas estava subindo a cordilheira, para usar outra vez a imagem de JK.
Dificilmente vou viver 88 anos, mas 44 seriam mais ou menos a metade – e os
grandes momentos são na metade da vida. Você pegar os personagens do Dickens,
do Tolstói, do Stendhal, do Flaubert, e o grande personagem que é o Dante da
Divina Comédia, vai ver que é tudo na metade, nel mezzo del camin dela mostra vita. A primeira metade da vida não
interessa e a segunda muito menos, sendo que a primeira é mais interessante.
PLAYBOY-
O melhor, então, já passou?
CONY- Ah,
tranquilamente. Hoje a vantagem que tenho é esta: já tive isso e ninguém me
tira. Fiz uma besteira, comi fulana, não devia ter comido – mas ninguém me tira
aquela trepada (risos). Essa é uma
grande alegria. Aquela mulher que eu comi ninguém me tira mais, nem ela (risos).
PLAYBOY-
Como foi, para você, a descoberta da sexualidade, dentro de um lugar onde ela
era proibida?
CONY- Os padres são
grandes profissionais, tem um know-how
de vinte séculos de tratar com a juventude e tudo mais. E sabem que a vida
sexual nasceu de um excesso de vitalidade. E vitalidade é uma energia física.
Então não é o caso de colocar aquelas famosas substâncias químicas na comida...
PLAYBOY-
Botavam?
CONY- Não. Pelo menos
que eu saiba. Não faziam isso. Pelo contrário, ás vezes até incentivavam muito
a vitalidade. Mas tem o seguinte: não deixavam você 1 minuto sem alguma
atividade, fosse no estudo, na capela ou no recreio. Se você passasse o recreio
sem despender energia, era chamado à ordem, e se continuasse começava a perder
pontos em Procedimento. Com 8, perdia o direito de andar a cavalo na fazenda (do seminário, em Itaipava, RJ). Com 7,
era um cidadão de segunda classe dentro da comunidade. Ninguém te respeitava,
nem você mesmo. Então não podia ficar parado no recreio. Tinha pingue-pongue,
vôlei, futebol, tinha brincadeira que eles inventavam – você não parava ! De
repente tocava o sino e todo mundo ficava calado, você suando na batina, aí
lavava o rosto e ia para a capela rezar, depois caía na cama e dormia. Não
havia lugar para devaneio.
PLAYBOY-
E para aqueles, vamos dizer, trabalhos manuais?
CONY- Masturbação?
Devia haver bastante. No Amarcord, do
Fellini, tem uma cena em que uns meninos estão se confessando e o padre
pergunta a cada um: “Você se toca?” Quando vê um com umas olheiras enormes, não
perde tempo: “Vai rezando umas ave-marias aí” (risos). No seminário havia uns camaradas assim. Caso explícito de
pederastia, não vi nenhum. Não vi e não tive, no seminário ou fora dele. Depois
vim a saber que havia.
PLAYBOY-
Não circulavam uns “catecismos” nada católicos?
CONY- Não. O grande
must erótico era o (escritor português)
Júlio Diniz. Li tudo dele. Eram romances amorosos, romances de moças.
PLAYBOY-
Quanto ao aluno Carlos Heitor Cony...
CONY- Eu consegui
manter a minha castidade até os 19 anos, até sair do seminário. Mas também não
tinha muito apelo. Eu tinha uma capacidade muito grande me concentrar no
estudo.
PLAYBOY-
Você está dizendo que nem ao menos se masturbava?
CONY- Praticamente,
não. Claro, tinha sonhos eróticos e, ás vezes, poluções noturnas. Os padres
diziam que não havia problema, desde que você não contribuísse para as
poluições.
PLAYBOY-
Como foi que você perdeu a virgindade?
CONY- Num puteiro da
Avenida Oswaldo Cruz (no bairro do
Flamengo), em 1946.
PLAYBOY-
O chamado baixo meretrício?
CONY- Não, era o alto
meretrício. Estava substituindo meu pai (como
repórter setorista do Jornal do Brasil) na sala de imprensa da Prefeitura,
e esse rendez-vous atendia a alguns senadores e personalidades. Secretários de
Estado, essa turma frequentava, o prefeito da época também.
PLAYBOY-
Que em 1946 era o Hildebrando de Góis...
CONY- Era, mas não vou
dizer o nome. Fui levado por amigos, no dia em que se inaugurou a duplicação do
Túnel Novo (que liga o bairro do Botafogo
a Copacabana e Leme). Depois da inauguração, aí pelo meio-dia um grupo
disse assim “vamos lá”, e eu fui. Pensei até que fosse grátis (risos)...
PLAYBOY-
A sua inauguração também foi boa?
CONY- Não foi uma coisa
boa, não.
PLAYBOY-
Loura ou morena?
CONY- Sinceramente, não
me deixou lembrança. Bom, foi á noite, nesse mesmo dia, aí com uma vizinha, uma
mulher casada, morava no mesmo prédio que eu. Já tinha percebido que ela estava
dando em cima de mim, mas eu não tinha coragem, ainda não tinha me transformado
no galinha que fui depois. Dessa me lembro, era loura, mais velha – eu tinha
uns 20 anos e ela uns 24, 25, uns dois filhinhos...
PLAYBOY-
Como se chamava?
CONY- Não vou dizer.
Mãe de um ator famoso. Mas então: havia uma festinha no pátio do edifício, de
tarde, os maridos ainda não tinham chegado, ela me convidou para subir, foi ali
mesmo. (Pausa.) Fui me lembrar disso
e agora me deu uma saudade dela...
PLAYBOY-
A história acabou ali?
CONY- Durou um ano ou
dois, até que ela se mudou, depois me casei...
PLAYBOY-
Bastante, por sinal...
CONY- Seis vezes –
quatro casamentos e dois casos paralelos em que houve combinação simultânea.
Acumulei, tinha duas mulheres em vez de uma. Passava ás vezes uma semana com
uma, uma semana com a outra. Com duas casas montadas, pijama...
PLAYBOY-
Como era que você administrava os problemas práticos dessa bigamia?
CONY- Isso coincidiu
com uma época em que eu estava muito visado pelos aparelhos de segurança e não
podia ficar muito tempo numa casa só. Precisava ter uma segunda e, para uma
mulher e para a outra, sempre tinha essa desculpa de ser uma pessoa visada. Ás
vezes exagerava um pouco, dentro daquela sacanagem do homem: “Vou ter que sair,
neste fim de semana vai haver uma repressão terrível” (risos). Aí saía numa
sexta-feira e voltava na outra.
PLAYBOY-
Deve ser coisa de família, pois conta que você teve um bisavô que era um grande
pilantra...
CONY- Avô. Meu bisavô
não tinha disso, era professor, Augusto Cândido Xavier Cony, tem nome na Enciclopédia Jackson e numa escola aqui
no Rio de Janeiro. Foi fundador da Escola Normal e escreveu gramática com
prefácio de Dom Pedro II. Teve vários filhos, um dos quais foi meu avô Ernesto
– esse, sim, um pilantra: tinha caso com uma vizinha, dona Lili Cardoso, uma
senhora muito distinta que nós chamávamos de “tia”. Para a mulher ele dizia que
estava trabalhando num invento chamado “caixa beta”.
PLAYBOY-
Por que caixa beta?
CONY- Beta era o
apelido de minha avó Albertina. Ele atravessava a rua e ia pesquisar a caixa
beta. Quando minha avó morreu, ele se casou com a caixa beta. Meu pai ficou
magoado com as pilantragens dele para o resto da vida e quando me via fazer
certas coisas e dar uma desculpa, me chamava de “caixa beta” (risos). Mas acabou fazendo a mesma
coisa: tinha uma namorada e se casou com ela, aos 80 anos, seis meses depois da
morte da minha mãe. Era casada com um amigo dele, mas meu pai passou a perna no
camarada e ficou com a garota.
PLAYBOY-
Bisavô gramático, pai jornalista, você romancista e jornalista – pode-se dizer
que os Cony já têm uma tradição no ramo das letras. Algum dos seus filhos
caminhou para a literatura?
CONY- Felizmente, não.
PLAYBOY-
Por que “felizmente”?
CONY- Nenhum exemplo de
família de escritores que eu conheço é animador. Me faz pensar naquela frase do
Nelson Rodrigues sobre o Dias Gomes e a “falecida novelista” Janete Clair: “O
Dias Gomes não é o melhor dramaturgo nem na casa dele”. (Risos.)
PLAYBOY-
Não há exceções? O Luís Fernando Veríssimo, por exemplo, que é filho do Érico
Veríssimo, ou o Ivan Lessa, filho do Orígenes Lessa?
CONY- É cruel dizer,
mas o Érico e o Orígenes foram romancistas, e o romance é algo mais sólido que
a crônica. A obra de Érico Veríssimo é um dos pilares da literatura brasileira,
enquanto a do Luís Fernando Veríssimo, muito jogada nos jornais, muito
circunstancial, em cinquenta anos, poderá ter perdido o viço, como aconteceu
com (o escritor maranhense) Humberto de Campos, que no seu tempo fez sucesso e
hoje está completamente esquecido. A mesma coisa com o Ivan Lessa, que é
cronista, enquanto o pai dele tem pelo menos um bom romance, O Feijão e o Sonho.
PLAYBOY-
Quais são os escritores brasileiros de quem você gosta?
CONY- Leio pouca
literatura brasileira. Só comecei quando me tornei escritor, aos 30 e poucos
anos. Até então só tinha lido Machado de Assis, Lima Barreto e Manuel Antônio
de Almeida. Gosto de Antônio Torres, de Autran Dourado, de Lygia Fagundes Teles
– mais contista do que romancista -, Nelida Piñon...Para não falar dos monstros
sagrados, Jorge Amado, Rachel de Queiroz.
PLAYBOY-
E do que você não gosta?
CONY- Não gosto do
romance policial brasileiro. Os detetives sempre se chamam Peixoto ou Seabra.
PLAYBOY-
Rubem Fonseca, então...
CONY- (Rápido.) Rubem Fonseca transcende o
policial.
PLAYBOY-
A crítica tem tratado você bem?
CONY- Não se falou
muito de Travessia, na época em que
foi lançado, e no caso de Pilatos o
silêncio foi total, nem uma linha na imprensa. Mas sempre fui criticado ou
elogiado. Me lembro de que quando saiu O
Ventre me encontrei com o Guimarães Rosa, que era meu vizinho em
Copacabana. “Guimarães Rosa quer falar com você” – ele falava na terceira
pessoa...(ri). E começou a falar do meu
livro, daquele jeito dele – o Guimarães Rosa falava mais ou menos como
escrevia...Lá no fim, disse o seguinte: “Pois é, tem caviar e tem pão. Teu
livro é caviar. Tem gente que não gosta...”. Tem que saber ler o Guimarães
Rosa. Ele não quis dizer que o meu livro era caviar, no sentido de uma coisa
cara, refinada, sofisticada. Era uma advertência: muita gente não ia gostar de
O Ventre. Como realmente aconteceu.
PLAYBOY-
E você, gosta do Guimarães Rosa?
CONY- Gosto. Não vou
dizer que seja maior que Machado de Assis, mas é um ficcionista de primeira
ordem.
PLAYBOY-
Nelson Rodrigues dizia que você chamou o Guimarães Rosa de “Conselheiro
Acácio”.
CONY- O dia que eu
disse foi outra coisa. No dia da morte do Guimarães Rosa, ficou todo o mundo
repetindo aquela frase dele, “a gente morre para provar que viveu”, e eu
comentei: “Essa frase é acaciana” (ridiculamente
sentenciosa, digna do Conselheiro Acácio, personagem do romance Primo
Basílio, de Eça de Queiroz). O Nelson
escreveu que eu fiquei pulando na rua e gritando: “Acácio! Acácio!” Coisa da
cabeça dele, claro.
PLAYBOY-
Você chegou a trabalhar com o Nelson Rodrigues?
CONY- A trabalhar, não.
O Nelson me detestava, tem uma crônica que diz isso abertamente. Me achava um
canalha, dizia que eu “porejava ignomínia”, “tresandava ignomínia” (ri), uma
coisa assim, que eu era abominável, fumava cachimbo...A raiva na verdade era
ciúme, porque o Mário Filho, irmão desse, me dava muito carinho. Aí o Mário
morreu, o Nelson me viu chorando e na hora que o enterro ia sair, me disse:
“Vou com você. Você agora está no lugar do Mário”.
PLAYBOY-
Você ficou sendo o irmão dele.
CONY- Ele dizia isso.
Ficamos muito íntimos. Já doente, foi várias vezes à minha casa, eu ia
busca-lo, ia trazê-lo, ficava até tarde, já não tomava café, já não tinha
coordenação motora...Eu gostava muito do Nelson. Ele era um barato. Tinha um
lado voyeur em matéria de mulher e viagem. “Você comeu a fulana? Como é que ela
é?” – e gozava...Uma vez, soube que eu ia a Paris e ficou babando. Mandei um
postal: “Nelson, estou aqui. Não venha, porque Paris é uma merda, a Vênus de
Milo tem erisipela – realmente a perna da Vênus (no Museu do Louvre) estava descascada, parece uma erisipela, não é
? (Risos). Ele adorou, pegou o postal
e fez uma crônica. Vivia repetindo isso.
PLAYBOY-
Nelson Rodrigues, que chegou a se apelidar de “flor de obsessão”, ilustra bem a
tese segundo a qual um escritor escreve interminavelmente sobre a mesma coisa.
Se isso é verdade, qual é a coisa de que vem falando, livro após livro?
CONY- Karl Marx
descobriu que o maior personagem de Balzac é o dinheiro. Toda a obra de Balzac
– os quase 100 romances da Comédia Humana
– trata de dinheiro. No meu caso, seria a incompreensão humana, a incapacidade
de um homem entender o outro. Nos meus livros muda a situação, mas o homem –
guerrilheiro, seminarista, bailarino – é sempre incomunicável. O homem não
transmite ao outro, ao próximo, ao mais íntimo, o mundo que tem dentro dele.
Daí o novo romance se chamar A Casa do
Poeta Trágico. O homem é uma casa habitada por um poeta trágico que não se
comunica com os outros. Este é o núcleo em torno do qual eu fico, como um peru,
dando voltas.
Publicado originalmente
na revista Playboy em julho de 1997
Nenhum comentário:
Postar um comentário